Nesses tempos do cólera, tenho acordado de manhã, aberto a casa toda, tomado café com rosca caseira e manteiga macia, para deixar os bichos saírem e os ares entrarem. A noite foi de descanso e suor, então, o canto dos pássaros entrando pela casa faz um limpar necessário. Não consigo, no entanto, segurar que moscas perdidas entrem também. Ou uma ou outra abelha enfeitiçada e, que seja, borboletas apaixonadas brancas que em outra fase comeram todo meu nastúrcio.
Não tem sol. Mas entrevejo por trás do nublado geral que é ele o responsável pelo calor e pela sombra dispersa. Trabalho sem me importar com a bagunça do entorno. Trabalho na cozinha, pois que o que faço agora é fazer germinar os grãos acumulados no inverno. Os grãos seminais que sobraram do inverno. Os armários abertos também para que veja o momento de saídas e possibilidades onde quer que olhe.
Com o passar das horas, o calor mais intenso do fim da manhã, gatos com preguiça largados pelos lados de fora, ventos entre folhas das árvores quebrando a quietude, trabalho. Posso sentir o sangue fluindo em batidas ritmadas, piano ao fundo – sempre um piano porque minha infância pedia um piano de música de fundo – reconheço o canto do sabiá entre todos os sons. Minha vida começou a ser feita de terra quando todos os medos vieram e me assolaram num dia só. Se tivesse sido de noite, teria sucumbido.
Mudar requer força que jamais pensei ter, por mais mudanças que tenha feito ao longo do caminho. Quantas encruzilhadas, quantos atalhos, longos caminhos curtos, curtos caminhos longos, inesperadamente o erro de percurso, erro de leitura de mapas, erros os mais inomináveis. Muitas mudanças por ter fechado os olhos e acreditado que uma força maior me levaria ao lugar certo. Mas também a dúvida, o medo e o medo e o medo fazendo-me parar – por quanto tempo fiquei paralisada? – hesitando entre um pé e outro sem levanta-lo do chão, sem coragem de sair do lugar. Pode ter sido por vidas inteiras, ou horas ou segundos infinitos, pois que o segundo que se passa em paralisia não passa.
Carrego essa dor quase imaculada nos músculos das pernas, a dor de não andar de não dar atenção ao pedido do corpo de fazer movimentar sua sombra para vê-la, quem sabe, mais distante de si. No sol do meio-dia tem-se a ilusão de que não há sombras. As luzes duras ofuscam e quase não registram na memória os fatos assim desenrolados. Por isso a memória mais viva das ocorrências da noite. Quando o olhar abre mais atento para não perder gesto algum, todo o corpo desperto para os sons e vibrações ilícitas, enganos e traições.
Mas carrego também em cada célula do corpo todos os gestos ternos e doces que vivi. A delicadeza de um perfume, de uma flor, de um olhar, de um sorriso, de uma palavra, de um toque. A delicadeza não pronunciada das intenções distantes, sem gestos que a confirmem, sem testemunhas, na quietude de si mesmo, o fio invisível de Deus que nos liga um ao outro sem se embaraçar nunca. Sim, carrego em mim como uma tatuagem os nomes desses seres que me marcaram.
Nesse momento, agora, em que tomo consciência inesperada da multifaceta de quem sou, o verso e o reverso e o dentro e o fora e ambos os lados simultaneamente, magicamente como um presente divino esboçando um leve sorriso imperceptível, num encontro não marcado comigo, finalmente vivo a paz que procurava aqui. Assim, enlevada, recolho a âncora e hasteio a bandeira branca deixando que o vento me leve por essas águas calmas ao meu destino sem guia. Confiar no vento é confiar em Deus, é confiar em si. Confiar, sim, é intransitivo.