quarta-feira, 16 de março de 2016

Pela Paz

Hoje, finalmente, tomei a primeira cachaça do ano pela paz mundial, pela erradicação dos preconceitos, pela intolerância, pela paz de espírito. Tomei com júbilo. Com fervor. Em prece, em agradecimento, em sinal de reconhecimento pelo que a vida me dá: amplitude, liberdade e horizonte. Hoje, depois de ter escorregado muito subindo a montanha, alcanço o topo, onde o limite do meu olhar é o céu, e, abaixo, uma terra verde de encosta generosa.

Sim, brindei com cachaça boa. Daquelas que fazem esquecer todos os percalços do caminho, todas as pedras em falso, todos os falsos paraísos que ficaram para trás. E não pelo excesso, mas pelo prazer. O prazer, assim como o amor, faz neutralizar as dores, faz rir os dramas e, sobretudo, deixa um sorriso duradouro no rosto.

Não é mérito da cachaça trazer esse prazer. O prazer vem de haver ultrapassado os limites. As fronteiras auto impostas das crenças restritivas. Você pode acreditar por muito tempo que basta retirar as pedras para o rio virar mar, mas antes terá um longo percurso a percorrer.

Hoje, no marco da minha pegada no chão, eu comemoro. Fiz pastel de meia cura com tomate. E sopa de lentilha. Cardápio que me regozija apenas pelo fato de ser o que eu queria comer. A paz é isso. É chegar ao ponto de equilíbrio entre o que há para comer e o que você quer. Basta ser flexível. Basta abrir a geladeira e aceitar.

Embora você possa dizer que paz é muito mais e vou concordar. Isso é muito mais, também. Soltar os grilhões que prendem seus pés ao chão, saltar da imaginação leve para o sonho, como um gato, transcender a nuvem, a foto do celular, ir além do olhar, isso é paz.

O mundo gira sem pressa quando você sabe para onde vai. E o melhor de tudo, gira na mesma direção que você seguir. A isso, brindo. E aproveito para saldar os novos ventos, e os novos eflúvios, todo o ar que me salva de ter estado sufocada pelo simples fato de paralisar. Às vezes é difícil dar um passo quando tudo em volta não nos atende, ou até mesmo quando tudo no entorno é duro como pedra ou frio como a solidão. Dar o passo de acreditar que pode ser diferente, ainda que precise mudar o jeito, o traçado, ou o olhar.

Não dar o passo para deixar de doer. Parece absurdo. Mas às vezes, a dor faz crer que seja necessária, como a margem do rio que limita e restringe seu acesso. Até você entender que seu destino não é ser rio, mas nuvem.

sexta-feira, 11 de março de 2016

Não Levarei Nada

Não. Não tenho como devolver o que levei. Sobretudo, não tenho como recuperar o tempo que levei para entender que não havia saída, que não havia opção, e todas alternativas eram um erro. O tempo que o espetáculo ficou no ar, fazendo estripulias num trapézio sem rede embaixo. Que meu coração ficou em suspenso, querendo acreditar que, se houvesse amor, bastaria.

Talvez não houvesse. E minha teoria continua válida. Bastaria amar, amar verdadeiramente acima de todas as incertezas, de todas as coisas fora de lugar e da ordem. Amar, independente das datas, dos dias marcados, das regras. Amar nos salvaria.

Talvez o amor fosse pouco. Precisaria mais energia ao acordar, mais disposição ao levantar, mais alegria no passar do dia. Precisaria parar de chover, e toda lama secar. Os cães deveriam ficar quietos, e o guarda-roupa precisava deixar de cheirar, o mundo pararia de girar para acertar o passo errado. O meu.

Quando o amor é pouco, todas as diferenças são grandes demais para serem superadas. E o que é igual, não extasia. As noites não descansam, os dias não alegram. Sequer a beleza das árvores é notada no entardecer, sequer o caminho encontra um rumo de prazer. As flores desabrocham para nada.

Mas o que é pouco? O que é bastante? Pouco é o tijolo que não chega a erguer a casa, que não sustenta o telhado. Pouco é o ficar esperando que um trem pare por aqui, mesmo que não haja trilhos, mesmo que não haja estação. Pouco é o amor que espera pelo outro, sem dar sinal do que quer. Pouco é aquilo que não mata a sede, não apetece, não desmancha na língua, não deixa as pálpebras descerem lentas e confiantes.

Agora, pouquíssimo é o amor que mendiga promessas, gestos dramáticos, e, acima de tudo, que precisa de sacrifícios. Não atitudes abnegadas e generosas, mas sacrifício mesmo, com dor, com peso e sangue. O amor que cobra tributos e impostos, que cobra pedágio.

Por isso, porque sei o que levei, e levei muito pouco, também sei que não deixarei muito. Não deixarei rastros pela casa, nem meu olhar ficará gravado no vidro da janela. Talvez um livro me aponte o dedo, ou talvez uma árvore plantada no meio do quintal ainda possa dar muitos frutos, frutos que não colherei, mas que serão sumarentos e doces. Talvez coisas que não me chamem pelo nome, que poderiam ser de qualquer um, fiquem pelos porões, nas gavetas, ou em vasos espalhados por todo lado. Mas meu coração não deixará parte alguma. Não ficarão cacos do que se partiu. Nem sob o tapete.

A vida não parou para eu nascer, nem pararia para eu descer. Eu pulei e saí nadando, quase sem fôlego, quase sem acreditar na água fria. O bom do frio é que ele faz você se mover, sair do lugar cômodo, tentar alguma coisa diferente. Sim, porque repetir é demais. Agir como se estivesse sempre à frente da mesma pessoa ou situação, em confronto com o mesmo inimigo, dançando com o mesmo par, é, dentre tudo que posso viver aquela que mais me cansa, me desanima, me faz cair os braços e os ombros, sem tentar segurar o pão que estava ali antes.

Eu vou seguir assim, sem levar nada por ora. Sem levar sequer a lembrança do que foi, maculada que está acorrentada com cadeado sem chave, para ser lançada ao fundo do rio. Um pouco da lama da estrada vai junto. E a chuva, que cai sem trégua, vai lavando todas as marcas, todos os registros e sinais que poderiam indicar quem sabe uma porta possível para um depois. Ao invés, pisoteada com a lama, a grama encobre os passos e as direções. Vou rumar para longe. Olhar para o horizonte, contemplar a paisagem renovada. A hora é do vento levar, de se deixar levar.