sábado, 17 de março de 2018

Flores roxas como o amor


Olho pela janela, para o meu entorno verde e monótono de montanha, repleto da mesma coisa, árvores e vegetação, e me encanto como sempre pelo diverso e diferente que o dia me mostra. Hoje as árvores de flores roxas estão em evidência no meio dos verdes das copas. E não há macacos dando seu sinal de passagem. Quietude. Perto de mim, apenas o zumbido de abelhas no manjericão florido. O sol momentaneamente escondido atrás de nuvens, densas, de passagem. Tudo passando com o dia.

Minha vida igualmente monótona de montanha, se preparando para o outono, vista da janela para dentro, também pontua silêncios e roxos. Posso escolher se passo ou fico, no entanto, e escolho passar. Passar como o vento que balança as folhas secas até que elas caiam. Passar como o dia, no seu ciclo de claro e escuro, de paz e zumbidos no ouvido. A vida zumbe como abelhas em flores nos dias que sucedem chuvas intensas.

No silêncio tênue que se forma de eu estar olhando a vida pela janela, entendo que nem tudo pode ser como meu desejo intenciona. Que nem mesmo quando me visto inteira dessa intenção, despojando-me de carapaças, armaduras, roupas, segunda pele, estando nua, nem assim alcanço algumas vezes o meu desejo. Parece-me que o braço é curto demais, que me falta tamanho, que meu trem não parou na estação, e fico me vendo chegar e partir sem alcançar.

Mas alcançar o quê? Um abraço, talvez. Um repasso. Nada que signifique vitalidade, mas apenas o efêmero da vida. Aquilo que amanhece e se desvanece porque segue em frente na fugacidade da emoção. O amor, enfim. Porque não há nada mais tênue que o amor. E não há nada mais fugaz que amar. Porque quem ama algo que amanhece, entardece e anoitece para tornar a amanhecer, não ama uma única vez, mas várias. Ou então, fica sozinho no instante seguinte, chorando pelo que já foi, pela aurora que é lua cheia agora.

Amar é deixar ir, é partir sem levar nada. Amar é sonhar sem nunca concretizar ou realizar, pois tudo o mais é um estado de ser, e não ser. E a própria vida é esse suceder de amares, hoje de flores roxas, amanhã amarelas. Às vezes os pássaros cantam, outras grasnam. O deus que eu sou, verde no fim do verão, tornando-se opaco no inverno, mas sendo ainda deus.

Fico melancólica nesses dias em que reconheço minha efemeridade. Eu, que preciso do encantamento para dar o próximo passo, eu que busco – como a mariposa – a luz incessante do sol, e descobrindo ser uma chama de vela, que se apaga com o sopro do vento, o balançar da minha asa. Melancólica pelo meu desapontamento em me ver no escuro, porque o escuro, como o mar alto, é um infinito de possibilidades estonteante e perturbador.

Fico melancólica e pensativa, no hiato do amor, esquecida de que tudo é ciclo, de que tudo vai e volta, insistentemente quando me recuso a ver, mas que me traz oitavas a cima quando consigo perceber a diferença de cada volta. Porque na sucessão dos dias e noites que já vivi, hoje estou mais calma e tranquila – ainda que melancólica – do que jamais estive. Estou mais feliz e reconfortada do que jamais vivi, apenas por me reconhecer sem espelho.

Minha dor de hoje é não ter flores roxas para exultar no meio do verde indistinto de que me visto, invisível, despercebida. Não, eu não precisava ser a árvore mais alta entre tantas araucárias, nem a mais flexível nem a mais exuberante. Eu não precisava aninhar famílias de pássaros nem os alimentar com insetos ou frutos. Não precisava sequer fazer uma sombra para amenizar o calor de quem se aproxima. Eu podia ser somente aquela que você esculpe iniciais ligadas por um coração, como quem eterniza uma emoção. Como quem acredita que emoções perdurem, resistam, persistam. Para além da marca deixada na casca dura.

segunda-feira, 5 de março de 2018

Quero um relacionamento


Na busca por identificar quais as características que os casais em relacionamentos duradouros e longevos têm, observo a paciência. Não só paciência ao responder ou agir, mas também ao ouvir. Porque, de modo geral, nossos diálogos internos se sobrepõem ao que a realidade se mostra, e muitas vezes já sabemos a resposta antes, já deduzimos os pensamentos que motivaram o outro, o que nos faz impor um ponto de vista (nosso) em detrimento das explicações, justificativas ou, apenas, de outro ponto de vista diferente que o outro tenta nos apresentar.

Isso me faz refletir sobre outra característica: como diferenciar essa imaginação própria – fecunda e cheia de eu sei – da intuição – aquele saber que não tem explicação, decorrência ou causa, mas que é instantâneo – ambas, imaginação e intuição, surreais e suprarracionais. Como identificar quando estamos contando – ou recontando – uma história para nós, entremeada de insegurança, passagens passadas ainda muito à superfície da pele, decorrentes de outras experiências doloridas, semelhantes, e quando uma nova história se apresenta de fato, inesperada e pontualmente, um aprendizado de verdade?

Talvez, antes de tudo, eu tenha que refletir por que haveria de desejar um relacionamento duradouro e longevo para minha vida, já bastante repleta de causos, pequenas histórias magníficas, grandes fracassos insistentes, muitos amores e eu te amos? Por que um relacionamento deve durar no tempo para mim, que tenho que desenvolver paciência – a qual poderia ser uma herança, um presente, um achado – e que não sei separar dos meus dias e noites a imaginação fertilíssima e insondável dos meus sonhos? Por que haveria de querer para minha vida o desafio, mais do que ir dormir e acordar com a mesma pessoa, de viver com ela os dias e as horas e os minutos, nos vazios de me encontrar longe, e nos repletos de entender que me basto para minha vida? Na minha arrogância de pensar que sei do que preciso e quero, e na singeleza dos momentos lindos e simples de não querer mais nada. Por que vou atrás daquilo que não tenho, como se procurasse ouro onde não há lavra?

Quem sabe eu seja ambiciosa, ousada, e precise desesperadamente me superar nos limites mais evidentes, ao menos. Ou essa seja a fase da vida que toda pessoa reflete sobre o que fez até o momento, tentando explicar o que não deu certo e o que deu – às vezes, esse último é o que mais carece de explicações. E embora desconheça efetivamente minhas motivações, anseio por um relacionamento que possa durar além das dificuldades em lidar com diferenças, além das restrições que a vida conjunta impõe à liberdade individual e, sobretudo, à curiosidade premente de querer saber se há vida nesse planeta e de que tipo. Eu, uma astronauta muitas vezes presa nas atmosferas alheias.

Propositadamente não me refiro ao amor. Amor é aquele sentimento que permeia os contatos, às vezes intensamente, às vezes nem tanto. Não. Quero ver os relacionamentos naquilo que não os liga, mas naquilo que faz querer ligar. Porque não é o amor que mantém os relacionamentos. E nem é a maturidade, pois muitos são os encontros da vida toda que começaram no primeiro – para aqueles que souberam levá-los adiante. Também não falo de paixão, aquele arrebatamento que anula regras, contraria contratos, ridiculariza a razão. Pode até ser que a paixão seja uma isca, mas não é o jantar, não é sequer o peixe. O viver compartilhado – talvez não no mesmo teto, mas sintonizado – requer objetividade.

Por fim, mas não menos importante, preciso encarar outra questão: quero um relacionamento, qualquer que seja? Quero casar com o casamento – eu, que não tenho bens para deixar, que não tenho senão incertezas – ou quero alguém em particular? Porque procurar alguém para caber na casa que construí é mais restritivo do que abrir mão da liberdade própria e alheia. No infinito das possibilidades, procurar alguém que caiba nos meus sonhos de relacionamento, naquilo que trago pronto, desenhado no papel marcado pelas tantas vezes que apaguei e corrigi, colorido nas cores dos meus anseios, hoje, essa busca se parece com o procurar uma agulha no palheiro. Ou me contentar com o que está ao alcance do braço, adaptando uma vez mais o projeto.

E, afinal, o que é relacionar-se senão um contínuo adaptar-se ao que se apresenta de novo e velho nos dias que se sucedem? O que é senão um cotidiano encarado com generosidade? Senão a rotina que amanhece sem flor um dia, ou nublado outro, mas que em geral traz um olhar cúmplice no que quer que façamos de certo ou errado? Pode haver emoções fortes e surpreendentes até mesmo quando planejamos com detalhes. E o enfado é mais resultado da falta de vontade do que dos acontecimentos. Isso é viver, e relacionar-se é mais ou menos como viver, só que a dois.




domingo, 4 de março de 2018

Eu te Amo


Eu já disse Eu te amo a diversas pessoas, diversas vezes, algumas repetidamente, outras nem tanto. “Eu sei que vou te amar por toda minha vida” foi um sentimento que permeou todos meus encontros, com todas as pessoas com quem vivi ou compartilhei afeto. Foram pessoas que se sucederam nos meus dias, ou eu nos delas, como se fossem únicas, absolutas, ímpares – e assim, talvez, tivessem sido naquele momento. Não havia falsidade nessa expressão, ao contrário, havia muita sinceridade, havia inclusive o desejo de que isso se realizasse. Antes de ser uma declaração de amor, era uma oração ao universo, para que aquela felicidade momentânea perdurasse ao infinito, até o fim das nossas vidas.

E, embora algumas dessas pessoas não tenham permanecido mais que alguns meses, outras anos indecifráveis (terão sido felizes todos?), a simples lembrança delas hoje mostra sua importância – e que tenham sido importantes por sua dureza, sua tristeza, ou pelo colorido dos dias, não diminui a importância ainda assim – a simples referência de terem passado pelos meus braços, ou por eles se lamentarem por isso, são marcas do que o amor traz, constrói, transforma.

Talvez seja muito romantismo de minha parte acreditar que o amor seja tudo, absolutamente tudo, de que precisa uma pessoa para viver sua vida em paz, feliz, em harmonia, com crescimento (nessa última parte incluo o que não está explicito, mas que promove crescimento: dores, discussões, divergências, tempos diferentes, hormônios, e uma gama de outros sentimentos tais como medo, insegurança, orgulho, vaidade, e que tornam a vida compartilhada tão dinâmica e diversa). Mas mesmo os amigos queridos precisam ouvir Eu te amo de vez em quando. E atualmente até mesmo as relações profissionais carecem dessas declarações e aceitam demonstrações com prazer.

Mas já acreditei piamente que amar fosse um verbo intransitivo, bastando apenas que eu amasse para sentir-me plena, feliz, fluída. Que o amor platônico fosse tão bom e tão significativo que dispensasse declarações faladas ou expressas. De que bastava tão somente a visão do ser amado, observá-lo em seu dia, sua normalidade cotidiana, no seu gesto simples, espontâneo, para que me sentisse um ser especial, amado por deus.

Isso foi há muito tempo. No tempo em que eu não havia experimentado ainda o contato dos lábios que se desejam, do olhar que penetra. No tempo em que eu não sabia o que era sofrer por amor. Em que não entendia ainda o que era esperar em vão por um sinal, qualquer sinal, de reconhecimento. Num tempo anterior de eu descobrir no corpo o que uma presença causava, e de como sua ausência doía. Antes de perceber no peito que amar é um verbo complexo demais para ser conjugado apenas na primeira pessoa.

Hoje sei que não foi em vão nenhum desses Eu te amo que expressei e expresso. Porque entendo ser o amor como é – fogo - precisar de mais dele para ser. O fogo se alimenta do fogo como o amor se sustenta no amor. Não há como viver o amor sem cantá-lo. E não há como ser amor sem o colorido de todas as cores que puder haver. O amor se vive de corpo inteiro, em todos os sentidos, até naqueles surreais como imaginação, como o sonhar.

Além do mais, algumas dessas pessoas apenas passaram pela minha vida para, amorosamente, me permitirem que transpusesse a margem, para que eu saísse de um relacionamento definhado e sem forças, ou para que ambas pudéssemos nos atirar ao desconhecido, em detrimento do medo ou da insegurança que nos oprimia. E, pelo desejo de manter algo que nos libertou, cremos na continuidade de algo que teve o propósito apenas de ser passageiro, de ser uma ponte, de ser uma companhia na estrada das mutações. Às vezes, a presença de alguém na nossa vida pode ser tão somente uma vibração para o próximo passo. Mais nada que isso. E, se é difícil entender, é difícil deixar ir.

Por que não é só a parte do Eu te amo que cria um constrangimento na hora de olhar-se ao espelho e ver-se naquela estranha posição de acreditar mais uma vez nessa emoção. Tem a outra, quase mentirosa, quase apenas sedutora, que é o para sempre. Quanto tempo durou meu último para sempre? Mas sei que isso é possível porque vejo muitas pessoas vivendo nesse gerúndio. E que, sim, para sempre pode ser muito feliz. Eu vejo esses exemplos e deduzo que não é uma imaginação, uma ilusão, um sonho. Um relacionamento pode ser continuamente reconfortante e ao mesmo tempo desafiante, inspirador e terno, pode ser uma noite de dormir de conchinha e outra de espalhado pela sala.

Olhando agora pela janela, para a lua que se depreende atrás das nuvens, ouvindo o vento passando pelas folhas das árvores, no tempo que é só meu, que não preciso dividi-lo com mais ninguém, no infinito das horas que uma vida é, penso em que sono calmo ou luxúria você se encontra enquanto estou acordada. Nesse momento em que reconheço a presença do amor também nos desencontros, como o silêncio faz parte da música, é que entendo que o amor é o tempo que passa.