sábado, 27 de dezembro de 2014

Um quarto que seja seu

O que procuro num relacionamento é que ele seja um lugar maior do que o meu lugar sozinha. Que ele amplie meu universo, que traga novas perspectivas, um novo olhar para o meu cotidiano. E se não trouxer, que permita. Que seja um espaço de trocas, de aberturas, de aceitação. Para ir além dos meus limites, um relacionamento não pode me tolher a liberdade, a coragem ou a vontade.

Não procuro um quadrado. Previsível. Demarcado. Com papeis definidos e repetitivos. Preciso fazer todos os papeis da peça. Trocar de vilão para herói. Trocar de herói para vítima. E depois, na hora dos aplausos, ser a cortina que fecha, para o suspense. Para o próximo ato. Fazer isso a dois tem que ser mais divertido do que fazer sozinha. Tem que ter mais nuances, mais complexidades. Tem que fazer diferença.

Não quero ninguém ao meu lado como eu quero. Quero que haja surpresas, não porque ignorasse, mas porque é múltiplo. Quero que me tire do conforto, não porque dispense, mas porque é novo. Alguém que não abra mão de nada na sua vida. Nem de ficar sozinho, se assim for necessário. Que não engula nada do que eu diga, mas que ouça, reflita, digira. Alguém que me aguce a curiosidade para saber por que as coisas não são como quero ou como espero.

Um relacionamento tem que ser um espaço mais amplo do que a somatória de duas vidas. Tem que ser elástico, sem regras rígidas, sem regras limitadoras, sem regras. Porque não há motivo algum para buscar solidez num relacionamento. E sim, flexibilidade. Para que os momentos tensos e difíceis da vida possam ali encontrar calor, encontrar o abraço, o descanso para a atitude.

Traga-me o café na cama apenas se assim quiser, não para me agradar ou conquistar. Não sou um país para ser conquistado. Não sou um prêmio para ser ganho. Traga flores, se quiser trazer flores. Ou não traga nada, se não quiser trazer nada. Não há como ter paz num lugar de cobranças. Nem harmonia onde se instala o escambo. Quero poder ser inspiradora de gestos inesperados e espontâneos.

Espero, sim, do outro que negocie, regateie, dialogue. Que não se conforme com meu jeito de ser, mas ao mesmo tempo, que não sofra com isso. Como viver com alguém que sofra e se magoe com o que sou? Como acordar todo dia com alguém que se submeta a mim? Como amar ao que morre aos meus pés?

Talvez não seja fácil viver um relacionamento realmente verdadeiro, realmente intenso sem tensão, sem esbarrar nas individualidades e nos padrões já estabelecidos. Um relacionamento que consiga seguir em paz apesar das diferenças – outrora encantadoras – sem transformar os pequenos quereres cotidianos e rotineiros em argamassas duras e pontiagudas. Aliás, nada fácil a tarefa, constante e renovada antes de apagar as luzes no final do dia, a tarefa de fazer da vida em comum um mundo bom para se viver sem guerras.

Um mundo em que não sejam precisos gritos ou brados para se fazer ouvir. Em que o perdão não seja entendido como um jogo de certo e errado com lugares fixos. Em que a alegria seja constante, ainda que haja discordâncias, ainda que haja dúvidas, ainda que não seja consenso. E, sobretudo, que a verdade colorida ou dolorida possa ser enfrentada, sem medo, sem truques; possa ser encarada, escancarada, ouvida, aceita. Possa ser um remédio, e não veneno. Possa ser a cama onde dormiremos toda noite. Em paz.


Esse mundo pode existir. Basta acreditar. Pode haver magia e encantamento numa vida cotidiana. Onde sonhar não seja uma brincadeira de criança. Ou que a criança seja uma faceta do adulto. E se é possível nos relacionamentos de amizade sincera, por que não seria nos amorosos? O problema não é querer assumir o controle sobre alguém, o problema é não controlar essa vontade. Basta trocar o controle por confiança. Confiar não é uma crença. É uma atitude. 

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Não sei do amor

Do amor sei que pede provas como se fosse uma competição, como se necessitasse de nortes, feito bússola. Sei que não dorme quando não durmo. E sei que dorme profundamente quando apenas quero, e não digo.

Do amor, na verdade, sei muito pouco. Cheguei tarde. Cheguei no lugar errado. Deixei de ir. Parece um trem que nunca atrasa quando não vou. Mas, se espero, não vem. Estendo a mão para tentar atingir, busque-me, e ele passa ao largo, do outro lado do rio.

Talvez eu tenha que me empenhar mais. Pagar um bilhete melhor. Chegar bem antes. Deixar as malas prontas. Uma surpresa sem susto. Um susto sem horror. Talvez eu vá de navio.

Ou quem sabe, alguns como eu não foram feitos para o amor. Acordar dia após dia no mesmo afeto. Saber de nós num horizonte plausível, reconhecível. Eu, que olho para o por do sol outonal e ele que me rebate dourado na face. 

Será que quero o dia seguinte? De verdade anseio por uma calma nas noites enfeitadas de rosas vermelhas? Quero o descalabro, o inoportuno. Morrer de fome e de dor como os antigos românticos. Morrer na rua, na sarjeta, no abandono dos cárceres. Completamente dramático.

Não.

No silêncio da noite, eu tenho medo. Medo de ouvir até mesmo o som da folha seca caindo lá fora. Medo de não haver tempestade, de não haver tempo de gritar, a perplexidade grudada na garganta, a boca aberta sem ar.

Uma angústia sem lugar aperta o peito. Qual a saída? Para onde ir? Mas por que ir? Para que toda essa gente passando na rua? Para que tanto encontro e desencontro? O movimento. A vida.

Não sei o que é amor, não sei o que é a vida. Essa sucessão de horas e emoções que descortinam esse vai e vem, como água em corredeira espraiada. Como uma pena desgarrada de um pássaro para sempre caída no chão. Eu não sei o que é viver.

Minha mão estendida perdida no ar vazio. Acenando, esperando, sem encontrar resposta. A sombra apenas agitando na parede. Onde? Onde esqueci por descuido a linha da vida? A linha que na mão estendida falseava a rota que seguiria? Sem direção, em silêncio de quase morte, perdi-me dentro de mim.

domingo, 21 de dezembro de 2014

Tudo morre

E tudo morre um dia. Morre no peito a flor arrebatada por outras mãos e entregue nas suas sofregamente. Morreria mesmo se não tivesse sido colhida. Morre a batida forte do coração que insiste, ainda assim, na vida. Morre o brilho no olhar. O sorriso ao acordar para além da manhã que nasce. Morre. O sol, o calor no rosto, o corpo aquecido pela luz de um dia, tudo morre.

No eterno que é a vida, a palavra prometida será esquecida. A promessa, cujo beijo selou em silêncio, passará como névoa, com o vento. Todos os sonhos sonhados em noites em claro, conjugados, compartilhados pelo olhar inocente de quem acredita. Todas as músicas assobiadas no íntimo, que remetem a gestos largos, transbordantes. A intimidade conquistada sob os lençóis, o arrepio da pele, o revoar do estômago. Até mesmo a dor de uma ausência repentina, tudo passa, morre, fica para sempre no esquecido de um canto escuro, na dobra de um tapete, atrás da porta.

Seca a lágrima escorrida do reencontro, seca a língua depois do adeus. E a fala rouca, engasgada, arrependida, fica presa na garganta. O ar, fazendo oco o peito, falta como uma conta que não fecha, como uma janela para a parede, um sono de pé dentro do metrô. Toda a vida morre tal qual o rio que escorre pela pedra. Só não morre mais o que não é vida.

E depois, ainda doendo pelo calor que falta, ter que sacar da pá e terra, ir enterrando de mansinho cada morto que ficou presente, grudado no sangue, na ponta dos dedos. Cada morto que insiste em se prender nos pés, feito sombra. E sim, todos os fantasmas de emoções perdidas no deserto sem fim que é o adeus.

Não. Não estenda a mão para tentar tocar o que já não há mais. Não procure sentir o cheiro de café com beijo das manhãs fugidas. Vire a cabeça para outro lado. Faça de conta que não é com você. Sorria. Siga em frente.

Porque à frente uma esquina, uma alameda larga arborizada, cheia de carros, óculos escuros para não ver mais o que não quer ver, logo alí, já terá esquecido o que fez doer no peito tantas noites mal dormidas, tantas palavras cruas, duras, desruborizadas, descoloridas. Terá deixado como um rastro indelével a gordura do olhar insustentável.

Sobrará pouca coisa. O apertado do rosto no último abraço. Ou um resto de perfume na passagem da aragem. Ficará, talvez, o zunido do carro que se foi, partindo sem volta para o infinito. Ficarão as folhas amassadas nos últimos passos. E um pouco do seu quebrar permanecerá nos sapatos. Só isso e nada mais.

Poucas palavras para guardar na memória. Pouco do brilho que um dia cobriu a pele toda. Tudo muito pouco, como esmola que caiu do bolso.


Depois, só muito depois, poderá rever as fotos, rever os fatos, refazer a história. Poderá contar como não fora, e o que fora poderá tornar a colorir. Muito tempo ainda correrá pelo ralo antes de poder voltar a falar com naturalidade do dia que cortou de si o beijo que quis eterno. Poderá – talvez – entender a finitude, a morte, o estilhaço. Ou talvez não.