quarta-feira, 25 de maio de 2011

Coisas que acontecem para mudar

Às vezes as coisas acontecem só para a gente poder mudar. Mudar de idéia, mudar a cabeça mesmo. Por exemplo, eu sempre pensei que cerveja e vinho fossem bebidas para se beber junto, em grupo, fossem bebidas coletivas. E que para beber sozinho o melhor seriam os destilados. Descobri que o vinho tem um gosto diferente sem companhia, mas é tão bom quanto. E que cervejas boas podem ser servidas em noites frias sem nenhum problema. Ao contrário, proporcionando tanto prazer como uma festa.
Eu, na verdade, não gosto lá de festas. Prefiro conversas com amigos. Prefiro encontros. Mas se vai haver uma confraternização, que seja uma festa, divertida, descontraída. Não dá para querer ser peter pan o resto da vida e parar de crescer, dá é para dar folga ao adulto de vez em quando, sair do sério, não mover um dedo para arrumar a bagunça, não se incomodar um centavo pela obrigação deixada para amanhã. Se deixarmos, o dia não termina, o sol não se põe, e nunca dá tempo para nada.
Enquanto penso essas coisas, meu gato se aproxima. Bichos são um pouco previsíveis. Previsíveis e lindinhos, claro. Então, enquanto como brusquetas preparadas com carinho de mãe – é, jargão do jargão, mães cuidam, mães fazem com carinho – mesa posta acompanhada de cerveja – outra quebra – ele chega na minha perna. Conheço-o. Não posso pegá-lo, pois ele não suporta ser apertado e confinado. Então, puxo a cadeira em que ele está e aproximo da minha. Ele se debruça na minha perna esperando atenção. Chega a fechar os olhos enquanto passo os dedos por seu pêlo macio.
Gosto de saber que tenho animais sadios na minha casa. Cães barulhentos têm saúde certamente. É que já vivi coisas diferentes com animais domésticos. Já tive plantas morrendo em seus vasos, e um bichinho que precisei dar para não secar também. Foi uma época em que não sabia de mim. Estava ausente. Obscura, desacreditada, descompassada. Não sabia me cuidar, não cuidei de nada. Naquele tempo via o tempo passar sem me dar conta. É possível? Alguém que não levanta um dedo para si mesmo? Que se abandona? Que não se vê ao espelho pela manhã, que não se reconhece na fome, na falta de sono, de dia, de noite, não está? É possível, dolorosamente possível.
Foi uma época que vivi tantos altos e baixos que cheguei a acreditar que assim era a vida. Intensa. E tinha que ser assim. Então, tudo aquilo que fugia da intensidade, emocionada ou emocionante, não tinha graça. Chamava isso de viver com paixão. Acreditava que vida sem paixão não era vida. Era preciso viver vertiginosamente ou ir embora. Fui embora diversas vezes mesmo quando me arrependesse no dia seguinte. Fui embora e não voltei porque quem vicia na emoção não pode simplesmente se arrepender e voltar atrás. Tem que deixar no caminho aquilo que não pode levar. Isso é apaixonar-se. Engatar seu vagão na primeira locomotiva que passar para sentir o vento no rosto, o coração bater desatinado, mas bater sem parar.
Pode ser um pecado capital, mas preciso comer os frutos da árvore proibida. Preciso entender sempre. Preciso transformar toda minha dor em algum conhecimento, em metafísica, em palavras bem traduzidas. Preciso ver inteligência em tudo, nos gestos impensados, na doença, no silêncio. Tudo tem um porquê compreensível. Enquanto não compreendo, a dor é maior, quase insuportável. Algumas pessoas preferem não saber do que encarar uma verdade incômoda. Muitas vão odiar uma verdade dolorida. A desilusão tão difícil de ser vivida. E por mais que seja cortar a própria carne, seja dissecar o corpo vivo, pulsando, doendo, eu preciso entender. Não me dê anestesia, não me tampe os olhos, não me impeça de ver o porquê. Porquês são o sopro que acompanham o remédio que arde.
A cerveja me deu sono. Agora, que toda aquela dor de ausência é apenas uma lembrança distante, vou me deixando dominar pela síndrome das pálpebras pesadas. Cansada, penso se acordarei cedo amanhã. Sim. Acordarei. Num dia marcado por quebrar rotinas, vou acordar cedo e com gosto.

terça-feira, 24 de maio de 2011

Por falta de mar

Por falta de mar, preparei uma sopa. Nada de verde, assim, puro. Fiz uma sopa de tomate com chuchu e vinho branco, picante. Comi me sentindo perdoada, renovada, revivida. E foi bem rápida e fácil, o tempo da minha fome, que veio sem aviso porque o frio dá fome dessas que não avisam, que chega de repente, tarde da noite.
Já tinha acendido o fogão a lenha para aquecer a casa e meus pés, congelados. Já tinha feito compras antes de vir para casa, pois já adivinhava que a noite prometia. Então, esperei com paciência. Quase sorrindo, sabendo de sua aproximação. Quando chegou, fui atendê-la imediatamente. Meia cebola refogada em azeite bom. Meia pimenta picante com alho espremido para refogar bem. Meio chuchu picadinho e três tomates vermelhos. Depois, vinho branco torrontés para perfumar o ambiente já defumado. Por fim, na cumbuca para servir, um bocado de cheiro-verde e queijo parmesão ralado na hora. Se não for ralado na hora, dispense. O queijo, como as especiarias, desperta com o movimento. E cerveja para beber, claro. Hoje dei ao frio a resposta gelada da cerveja, amarga e suada. O vinho seria óbvio demais.
Um gato no colo completa o pensar que a noite já vai profunda. Que bom que é o frio e poder aquecer-se. Que bom que é a fome que pode ser saciada. Deus olhe por aqueles que na vida passam sem poder remediar suas dores. E possa lhes dar entendimento um dia dos seus porquês, pois não há angústia pior que não entender. A fome do espírito, insaciável e voraz. Que engole todas as palavras sem lhes sentir o gosto. E palavras têm gosto? Cada uma o seu próprio sentido.
Meu quarto não tem nenhum tipo de aquecimento, é uma pena não poder dormir na cozinha. Mas o que é isso? Já não bastasse passar tanto tempo na cozinha, olhando o fogo e vendo-o derreter-se como gelo vermelho, os cheiros dos temperos rodeando tudo, feito música, como se não bastasse esquecer de tudo e ficar mergulhada num clima de montanha, ele próprio já temperado, ainda penso em dormir na rabeira do fogão. O problema é que o fogo apaga uma hora, como a paixão. Tem que aproveitar quando ainda está bem quente para que o frio depois não faça ressentir sua pele. Ou alguém terá que ficar alimentando a cada pouco.
Depois, vou dormir ouvindo os estalos de cristais que a brasa vai emitindo, me embalando para o sono divino que chega. Que nome daria à vida? Nome de mulher? Ou de bicho? Talvez de flor? Ou de pedra? Eu diria que ela é chama: bailarina, quente e voluptuosa, e frágil, vulnerável à menor brisa ou à falta dela. Ah, as intrigas criadas para distrair a mente e que libertam a alma para seu vagar de volta ao reino do sem-sentido (eu, que nessa vida, mudei tudo que podia para encontrar sentido, dia após dia, ao olhar para o espelho, de manhã). E que outro sentido poderia haver no azul do céu que amanhece quase lilás, quase anil, que azul é esse? É a vida plena.

Sinto falta do mar

Sinto falta do mar, porque no mar posso mergulhar. Mergulhar é como deve se sentir deus no universo: total, silencioso e integrado. É como deve se sentir a criança ainda imperturbável na barriga generosa da mãe. Tudo à volta fica um pouco turvo, mas nítido, profundo, vagaroso. E de estar assim entregue, ainda assim, dá para ouvir o coração batendo calmo. É um contato íntimo consigo mesmo.
A montanha é um outro silêncio e outra intimidade. É aéreo, tem perfumes, tem mais cor. Remete a repensar a vida, é externo. É lindo. O frio traz recolhimento e azul, como o mar, mas azul rendado de copas de árvores. É mais parecido com memória de infância. Tem vacas pastando, galinhas no quintal e tem a música sem fim dos pássaros. Eu gosto da montanha. Mas hoje eu queria o mar.
Já estive perto de unir o mar à montanha, muito antes de escolher morar nessa montanha. Mas abri mão de ter tudo para ter bem uma coisa de cada vez. Escolhas. Já me arrependi de ter feito escolhas. Não eram escolhas erradas, eram apenas aquelas que depois trouxeram resultados de que não gostei. Faz parte da vontade, às vezes, errar e faz parte da consciência perdoar sempre.
Como o fogo que não escolhe o que queima, o perdão também não deve ser seletivo. Varrer a mente feito o vento que passa. Varrer o coração e deixá-lo menos dolorido. O perdão ameniza as dores, ameniza as lembranças, é um carinho na ferida aberta. Aliás, o perdão cicatriza. Perdoar é uma oitava acima de amar.
Eu não sei o que é mais difícil, perdoar ou pedir desculpas. Tudo absolutamente necessário, tanto um como o outro. Em geral dá para ter dois pesos e duas medidas para muitas coisas quando se trata de si mesmo e os outros. Parece até uma regra. Tão difícil entender o ponto de vista do outro como aceitar os próprios erros. Receber críticas, então, parece o fim do mundo. Era melhor ter acabado o mundo, inclusive. Mas eu acredito que quem não perdoa não sabe se perdoar. E quem não sabe se perdoar não perdoa.
Perdoar é esquecer de verdade. Deixar para lá de verdade. É de verdade. Não é mais ou menos, nem é um pouquinho só. É inteiro. Você consegue contar quando perdoou alguém? Então não perdoou. Porque se assim fosse, já teria esquecido. Perdoar é uma felicidade clandestina. Não se mostra. Não levanta bandeiras. Não recebe obrigados. Não fica para ver o que aconteceu. A flor é um perdão. Uma coisa linda que não se guarda porque murcha e perde a graça, perde o perfume, se tinha algum, só fica na retina de quem viu. E às vezes ninguém viu. Foi um passar pela vida. Leve. Delicado. Imperdível, e mesmo assim, se perde no passar dos dias.
Eu queria muito mergulhar, ainda que esteja tão frio. Eu queria voltar para quando tudo começou. Só remotamente viva. Num espaço sem gravidade. Queria um dia sem gravidade. Imersa. Eu, que não tenho água no meu mapa astral, queria a água do batismo, a água que fecunda, que envolve tanto que afoga. Mas tem que ser salgada, tem que ser o mar.

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Se é verdade

Se é verdade que o que temos mais a aprender é aquilo que mais nos incomoda nas pessoas, então devo ser uma pessoa muito egoísta. Porque não tem nada que me incomode mais numa pessoa do que a insensibilidade. Eu até gostaria de ser menos sensível, de não me ressentir por tão pouco, às vezes, mas insensibilidade é demais. É insuportável. Ou quase.
A insensibilidade faz as pessoas andarem sem se preocupar em esbarrar com você. Faz elas se preocuparem consigo mesmas como se fosse a coisa mais importante do mundo. É. Mas não precisa destratar os demais importantes do mundo. Sim, porque quando se tem a devida consciência de que se é um ser divino, não dá para pensar que é o único, não é mesmo?
Quando penso nesses seres, penso como parece ser mais evoluído ser um animal doméstico, como um gato ou cãozinho. Porque esses animais dão-se tremendamente, é um amor quase intransitivo, quase de mãe, que não pede nada em troca – algumas mães, obviamente. Eu sei bem o que é isso. Tenho sete cães, dois gatos, uma égua, os macacos de toda a manhã não contam porque não trato deles diretamente. Só estão no quintal. E a raposinha que passou correndo outra noite e quando chegou do outro lado da estrada parou e me olhou, esse serzinho lindo, frágil e selvagem ao mesmo tempo, que consciência pode ter de si mesma?, não importa, é tão lindo que quando parou e me olhou, me emocionou.
Eu sei que tem aquelas pessoas que pensam que tudo que há no mundo está ali para servir-lhes. Que deve ser mimada, cuidada, sem nunca precisar retribuição. Esse é um problema da constância de papéis no teatro do dia-a-dia. O bom é de vez em quando ser o vilão, outras ainda ser a vítima. O herói é lindo, mas é muito previsível. Quem consegue ser o tempo todo um herói? Herói de si mesmo? Vencer o cansaço quando o que mais queria era deixar para lá? Vencer a falta de humor quando o que mais queria era ficar quieto no seu canto? Vencer a vontade quase sobre-humana de ser melhor que os outros? (ai, acho que tenho tanto a aprender ainda...).
De vez em quando é bom usar a mão esquerda para fazer as coisas. É bom tomar vinho em copo de cachaça, como se fosse um bourbon. Sair do que você mesmo espera de si. Gritar quando o mais fácil era calar. Calar quando o melhor seria falar, convencer, manipular. Que bom que é o espelho do outro refletindo nossa face naquilo que mais temos a aprender. Porque por mais que a vida tente nos mostrar de forma direta e simples, fazemos por merecer essas respostas a perguntas que nunca faremos. Assusta tocar o telefone no meio da madrugada. Mas o pior é nunca poder atender a ligação.

domingo, 15 de maio de 2011

Batatas e toxinas

Li uma vez que batatas que começam a brotar devem ser descartadas porque liberam uma toxina. Portanto, se amanhã ou depois alguém der por minha falta, saiba que era a única coisa que encontrei na geladeira. Toxina. Bem, depende do que seja tóxico. Passar nervoso libera toxinas no organismo e não precisou nem brotar. De qualquer jeito, ou era a batata ou era pipoca. Eu adoro pipocas, com manteiga e pimenta. Mas vou deixá-las para quando não tiver nem batatas. Não fui abandonada numa ilha, nem estou presa na minha casa. Apenas voltei para casa cedo sem pensar no que comer.
Essa noite descobri que lagartas são muito parecidas com gatos. Peludas, fofinhas e perigosas. Não, não acredite nos estereótipos de gatos ladrões ou gatunos. Falo apenas de suas unhas. Precisei dar remédio para meu gatinho e ele não entendeu que é para o bem dele. Foi uma guerra e ainda por cima ele cuspiu o remédio. Nisso eles devem ser diferentes das lagartas.
O certo é que peguei a lenha para pôr no fogão. Já consegui trocar o gás, só acendi o fogão a lenha para assar a batata e esquentar a casa. O inverno finalmente chegou. O frio seco cheio de estrelas mesmo com a lua crescente. Então, como novidade de inverno, acendo o fogão a lenha toda noite. E, veja só, usei luvas de couro para pegar na lenha, claro. Por esse motivo tive minhas mãos poupadas do fogo da lagarta. Ela caiu na rabeira do fogão. Para ver que nem tudo são flores na vida da roça (eu a recoloquei lá fora, obviamente).
Quero me aproximar do fogo, mas fico numa distância segura. Hoje em dia todas essas roupas sintéticas não são muito favoráveis à chama. Inflamáveis e impróprias para mexer com fogo. Já perdi calçados por esse motivo: estendi as pernas perigosamente sobre a rabeira do fogão, o tal calçado era de plástico termoincolhível ou coisa parecida. Ficou um número menor. E tudo isso para ilustrar o desejo de voltar a ter uma vida simples. O aquecimento é dos mais antigos, a batata está assando como se fazia antigamente, mas o restante é cenário.
Não estou desmerecendo a vida que levo. Pelo contrário, gosto muito disso tudo. Eu quero a simplicidade, não a volta à pré-história. Posso acender o fogo com fósforos, usar luvas de couro, e ficar sonhando com a luz que crepita e estala, parece bailar à minha frente enquanto escrevo em um microcomputador. Do que a vida prescinde? Não se pode descartar todo o supérfluo, afinal, a poesia é supérflua, a arte é uma futilidade necessária e a beleza é desnecessária, ou melhor, não é precisa. Agora, o calor que estou recebendo de haver tanta lenha em meu quintal esse sim é a natureza que se dá em troca.
Fico pensando quando tudo isso começou. Quando foi que um ser humano olhou para o mundo e disse: é meu. E se apropriou do que pôde pegar com seu polegar opositor. E pôde assim o declarar por que não teve oposição. E se é verdade que a energia não se perde, se transforma, então que o calor que se irradia do meu corpo agora possa retornar ao mundo que não é meu, mas de que me presto. Que a batata que vou comer por empréstimo possa se fazer valer por meus gestos. E que as palavras que saem da minha boca possam atingir outras pessoas de uma forma generosa e reconfortante para que nada se faça vão, embora passageiro.
(faria tudo outra vez? Não, a cada vez faria diferente, como um prato que se faz sem receita. Como o olhar que se lança ao sair de casa: a mesma coisa, dia após dia, diferente).

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Hoje comi sobremesa

Hoje, apesar de todas as garrafas com bilhetes lançados na noite, continuo ainda sem gás para cozinhar. Por isso, fogão à lenha! Com direito até a sobremesa: uma delicada banana, no ponto como gosto, a casca já toda pintada, diretamente na chapa do fogão, inteira. Quando descasquei a banana, tinha o cheiro de infância, tinha cara de infância, meio feiosa, dourada e branca, caramelizada no seu próprio açúcar. Mesmo assim, despejei um pouco de geléia de cravo e canela e creme de leite fresco. Depois do último gole de vinho, foi a melhor coisa da noite.
Mas é difícil qualificar assim as coisas. O fogão simplesmente aceso, sem nem cozinhar nada, já era tão bom por me esquentar ao mesmo tempo em que defumava a casa levemente, misturando o cheiro da lenha queimando com a banana assada. O fogo aceso foi outro prêmio. É tão lindo, hipnótico e crepitante que já é uma diversão em si. Uma taça de vinho para espantar o frio – que gosto também – acompanhando fatias de pão integral aquecidas com manteiga de alho para acompanhar um queijo - mas não é qualquer queijo – um queijo que fiz apenas de esperar por ele. Um queijo que se fez sozinho de leite bom escorrido e salgado tenuemente.
Foi por esse motivo que mudei de cidade, de trabalho, de vida. Para poder viver noites como a de hoje. E naquela época eu jamais imaginara que viveria assim. Acho que em geral a gente mira no que vê e acerta no que não vê. Eu procurava significados. Procurava algo para dizer que era viva. Que minha existência fazia sentido. Que eu podia fazer diferença. Na verdade, isso mais se parecia com um olimpo, um paraíso, um ideal de sonho. Era como ser herói de meu próprio destino, dona do meu nariz. Enfim, essas coisas inúteis, externas e passageiras como a idade que se tem.
É que o sentido das coisas vem sempre depois delas. Na hora em que se vive, apenas se vive. Sente, chora, gosta, não gosta, quer mais, esquece, ama. Quem sabe dizer na hora que está ali, com meio corpo para fora do parapeito da janela, que estava com medo, que não sabia, mas que queria ter ido, queria ter partido, queria não ter perdido o trem. Quem sabe na hora que está errando, instantaneamente, consciente, que era um erro? E quando soube, quanto isso lhe deixou de sofrer?
Eu não sei. Mas reconheço que meu esforço foi recompensado. Porque cheguei mais cedo em casa e pude coletar garras de pinheiro e trazer para dentro de casa um bocado de lenha. Não cozinhei, no entanto. Hoje tive noção do que é comer por gula. Apenas por uma atitude estética. O fogo pedia comida e eu não podia desperdiçá-lo. O queijo pedia pão dourado e não pude dizer não. Não era fome na verdade. Não tinha a menor necessidade. Foi um dar-se de graça, como as flores, como a arte. A arte de saber receber.

sábado, 7 de maio de 2011

Mudar devagar...

Mesmo quando sua mudança seja mais ou menos como se você ganhasse uma luta de boxe numa categoria superior à sua, você ainda pode voltar a errar. Errar feio, como se nunca antes soubera o que fazia e que era errado. Nem sempre tem chance para pedir desculpas e nem sempre consegue voltar atrás o que foi feito. O erro está ali mostrando os resultados, apontando o dedo para você.
Então, se tiver um mínimo arrependimento, sinceramente você vai se perguntar “por que?”, por que tudo tão errado, por que tudo tão difícil se o que parecia ser o mais difícil você fez, mudar. Mudar às vezes significou cortar sua carne, suas crenças, cortar a lágrima no meio do caminho, cortar a frase, a boca aberta, o ar não sai, e todos olhando para você.
E assim ainda, tendo ganhado o campeonato, tendo chegado em primeiro lugar – mudar é sempre chegar em primeiro lugar – tendo ultrapassado todos os obstáculos, uma vez mais volta a ser – por instantes – o que sempre fora até então. Volta a ser um passado que já esquecera (esquecera?), que já havia abandonado, que não faz sentido, não faz senão doer sua vontade, doer seu estômago.
É quase frio, é quase como se tivesse acabado a água no meio do banho. Apenas para fazer lembrar o quanto você mudou. Então você pode praguejar, maltratar-se, blasfemar, pode até pôr a culpa em alguém, mas no íntimo, sabe que foi você. E o que é errar? É ter agido? Agir ainda é a melhor resposta. é não ter pensado? Mas pensar demais também é um problema. O ser emocional brigando com o ser racional. E o que você gostaria de ser? O meio do caminho sempre o mais difícil. Entre um e outro, um abismo com uma corda estendida, não dá para olhar para baixo. Tem que acreditar e passar.
Ah, mudar é pôr o primeiro pé na corda transposta sobre duas margens. Vai escorregar, vai doer como se faltasse o ar debaixo dágua. Mas não dá para tirar o olhar do outro lado da margem. É preciso acreditar no paraíso. É preciso acreditar.
Eu sei agora que não há seguro para medidas provisórias, e toda mudança é isso. Não é um momento, é um passar entre um momento e outro. Porque continuar agindo como sempre agiu? Um norte é apenas um norte, não é a direção. É apenas um gesto, não é a vida toda. Graças a deus.

Sexta-feira à noite

Sexta-feira, à noite, hora de jantar. Acendo o fogão e coloco água para ferver. Destino: uma massa ao molho vermelho, que remédio. Um queijo recém-preparado, salguei um pouco para ver que gosto terá. Coloco os ingredientes sobre a pia, vou preparando tudo pré-calculadamente. E eis que surge um problema: o gás acabou antes mesmo da água começar a ferver.
Depois de hesitar um pouco, escrevo um bilhete pedindo socorro e coloco numa garrafa, lançando na noite. Mas não espero. Pego minha lanterna, luvas de couro e saio em busca de lenha no quintal. Minha munição estava baixa. Nenhuma garra de pinheiro para um fogo rápido. Então, junto todos os papéis que encontro pela casa, bilhetes, velhos recibos, cupons de compras, e coloco tudo bem ajeitado no fogão à lenha.
Dizem que tudo que queimamos se realiza. Por esse motivo, vou intencionando o fogo à medida que o alimento. Continuo acreditando que é necessário cozinhar para alguém, na intenção de alguém. Nada dessa coisa de cozinhar para alimentar. Nada de boas ações, funcionais e lindinhas como alimentar cães e gatos que dependem de você. Quero dizer, cozinhar com prazer, por querer, por generosidade verdadeira. Não há outra ação tão grandiosa como cozinhar.
Sei que isso me coloca na desconfortável posição de pouco modesta. Mas não é nada disso. Estou falando de entrega. Entrega de verdade. De quem não se arrepende não por ter feito, nem de não ter feito, mas de ter acreditado; que não teve medo de fazer papel de ridículo quando a situação era crítica, que não teve medo de se desapontar, porque a situação era de risco, que não teve medo de ficar sozinho, porque o momento era delicado, era pessoal demais. E cozinhar, bem, colocar um pouco de azeite de oliva extra virgem na panela e esperar encontrar um ingrediente à altura numa noite de pouca sorte, é um ato de bravura que merece um brinde.
Por isso, claro, me sirvo de vinho. E, porque me dei conta da importância deste gesto, coloco também um gole de vinho branco no molho de tomate que preparo refogando um alho-poró que encontrei perdido na geladeira. Vou ser mais amável ainda, vou colocar um catupiry de verdade no molho, assim que a massa cozinhar, para que não se derreta todo e eu possa comê-lo junto, derretendo na boca, espalhando seu sabor por inteiro enquanto vou comendo alegremente.
Sempre achei que simplicidade despertasse um sentimento de confiança e familiaridade, mas desconsiderei e acrescentei uns fundos de alcachofra – não é época, nem é fresco, mas eu tinha trazido para casa premeditamente para momentos fundamentais como o de hoje. Eu não me engano, quero dizer, não engano a mim mesma com falsas promessas. A vida pode ser reconfortante se soubermos tirar dela o que ela nos oferece, nem mais nem menos, porque a insatisfação é nossa humanidade querendo mais do que temos no momento. Ou depois.
Apesar de toda minha evidente felicidade em me prover, lanço um olhar ainda para a frigideira em que misturei a massa com o molho e vejo com melancolia que sobrou uma porção. Desaprendi a cozinhar? Esperava por alguém? Deixei a água fervendo no fogão para encher de umidade o ar da cozinha. Não recebi de volta nenhuma resposta ao meu bilhete lançado a esmo. Mas continuarei lançando garrafas na noite com bilhetes sinceros.