quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Se entregar é uma arte


Olho em volta, tanta coisa por fazer. Tudo por arrumar, organizar. Pagamentos, acertos, backups, essas coisas de quem passa o dia atrás de uma mesa, na frente de um micro, respondendo e-mails, enfim, um dia bem burocrático. Ainda por cima, pelo horário, com fome. Para resgatar o humor, que, no entanto, não me havia abandonado, ouço música. Não consigo focar e não me culpo. Pesquisas por realizar, textos por escrever, responsabilidades em cima da mesa. Então, por ser um tédio, largo tudo. 

Fecho os olhos, faço yoga. Telefono para amigos, bons amigos, amigos para levantar o astral, que também insiste em se manter no alto. Alço voo em terra firme. Conecto-me com o paraíso possível em vida. Se eu pudesse sair com uma câmera na mão, olhando a passagem do tempo, a passagem do vento pelas costuras das roupas, fazendo arrepiar a pele, fazendo salivar até o mais duro coração, fazer a imagem cheirar, aquecer, beirar o abismo de si mesma, e levar assim o olhar de quem apenas passa pela vida, eu já me sentiria feliz um dia a mais. Uma hora a mais. Um instante a mais. 

Sei que não dá para ser mais nem demais o tempo todo, porque a vida precisa do menos para preencher, mas a paixão é necessária. É necessária a intensidade desnorteante de quem declara seu desejo do alto de seu medo. Medo e fascínio. O arrepio que sobe pela coluna vertebral da base até acender o cérebro, incandescer, iluminar. Coisa que o amor faz. E a arte imita. Repete. Devolve. Rodopia no tablado como uma dança circular. Como um rádio quebrado captando a frequência espacial das estrelas.

Por que procurar na vida algo além da arte? A arte alimenta, no mínimo, a alma. A arte enfeita, estreita o abraço, espera a resposta, toca, sensibiliza, inventa. Sem arte a vida é um amontoado de cenas que se sobrepõem. E se as cenas forem remontadas, adequadamente com cortes da memória infalível, então é cinema! Arte!

Eu não consumi nenhuma droga. A alucinação é decorrente da vertigem que emoções fortes e doces provocam no corpo. E o corpo é o senhor absoluto da emoção. Senhor absoluto da arte. Capitão captor da faísca cósmica que gera a vida. O corpo pede o que precisa. Escuta o que pode. E dá o que tem. Seja uma palavra escrita por mão aflita, seja um beijo de boa noite estrelada. Faça silêncio ou faça sol. Faça chuva ou amor, o corpo é o mestre cuja alma está a se converter e se recriar em outro. Onde começa um e termina a outra? Onde se esconde a alma de um corpo ansioso por expressar-se? No olhar? No brilho do olhar? No olhar que fixa, questiona, e se umedece de tanto prazer? Ou na palavra que não é dita? No intervalo entre o sim e o não, no momento da dúvida, do desejo, da preguiça?

Meu corpo pede calma. A calma de comida boa cheirando na panela. A calma de lençóis limpos e macios à espera. Calma de quem sabe o que quer e o que não quer. Meu corpo pede com alma. Pedidos assim não podem ser desconsiderados. Por esse motivo, e pelos demais, fecho os olhos para os deveres incompletos. Fecho a porta das obrigações irrealizadas e me entrego de braços abertos e soltos para a aventura de ser, de se deixar ser, de sereno sem medo. As palavras me guiam e me torno silêncio. Para ouvir o vento. Para ouvir o coração.

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

O amor é um sorriso


Gosto do sorriso que me faz no rosto o lembrar. Simples. Delicioso. Leve. É ato contínuo, como se fosse possível reviver o momento, o gesto. A verdade é que revivo na pele o que a memória me traz. Quando é ruim, faz um movimento no estômago, quase um soco. Quando é bom, faz um movimento no estômago, quase um frio, um arrepio. E quando é bom demais ainda vem acompanhado de sorriso. 

É bom passar pela vida assim, sorrindo o que se viveu com prazer. Porque viver é mais que isso, é mais que o prazer do contato, o prazer de experimentar junto. Mas não tem coisa melhor para lembrar. Aquele momento pequeno, que passaria despercebido de outra maneira, para outra pessoa, e que, no entanto, por voltar em forma de corpo, um sorriso na boca, o olhar divertido, marca mais que tatuagem. Fica mais que palavra escrita. 

É que a alegria faz o coração bater melhor, limpo, desenvolto. Faz o estômago trabalhar com bom humor. Os pulmões explodirem cheios de ar. A pele melhorar. O olhar brilhar. A alegria que pode vir de tantas formas, é ainda melhor quando vem acompanhada. Ela aquece sem precisar acender o fogão à lenha. Alimenta sem precisar cozinhar o pão. E enche de vida sem transbordar o copo. A alegria, ela mesma, ela que vem com o pulsar do sangue de haver alma no corpo, de haver emoção no toque de pele, essa alegria pode matar a fome, saciar a sede, acabar com a guerra, fazer nascer flores no peito de quem tem medo.

Eu queria poder derramar no copo de cada pessoa um pouco dessa alegria encantada de haver encantamento ainda no século vinte e um. De saber que haverá sempre encantamento possível para os que quiserem beber da confiança. Beber da certeza. E haverá certeza nos corações das pessoas? Deverá haver pelo menos uma certeza: o amor é uma realidade. Ele é o ar que esquenta com a aproximação dos corpos. Ele é a água que escorre de uma emoção pungente, de uma beleza estonteante, de um sentimento único, reconhecido.

Eu não sei o que é felicidade, um estado eterno de emoção em alta. Não sei o que é acordar todos os dias, todos os dias da vida vivida ou por viver, experimentando o que é felicidade. Não sei o que significa uma emoção perene, um sentimento inalterado, infinito, feliz. Não sei. Não sei o que é ter confiança na vida, minuto a minuto, instante por instante. Eu não sei não ficar triste ainda. Não sei ainda amar incondicionalmente. Mas sei o que é alegria fácil como a brisa do mar nos cabelos soltos. A alegria leve e descontraída de quem dormiu bem, metade a sonhar, e acordou para ver seu sonho de olhos abertos.

Nada dessa alegria romântica, exaltada, deslumbrada que idolatra o outro e lhe veste de tantas frases, de tantos gestos que, impossível se mover, faz sucumbir de cansaço. O amor romântico que prende os dedos de mão em mão, com laços de eternas promessas. Pesado demais para mim agora. Demasiado apertado para os meus braços agora. Eu quero a liberdade de ser alegre por viver, por lembrar a vida, por reviver cada minuto como um futuro a se realizar.

Posso ir dormir todos os dias da vida que virá só de lembrar a ternura, só de sorrir de novo pelo mesmo motivo, pela mesma emoção. E o que é isso senão amor? O amor que foi soprado dos lábios de deus direto para nossas narinas sedentas. O amor que é a alma do corpo, um corpo que aquece e revigora e se reconhece na fogueira que queima. O amor delicado e doce da poesia que o sangue escreve enquanto pulsa. Amor como chuva fina, silenciosa, mas que enfim molha, envolve, enternece. É dessa roupa que me visto agora. Uma seda sutil trançada de alegria. Não, não foi nenhum bicho que teceu essa seda, foi tecida do silêncio de um olhar que permanece. E me acompanha.

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Não sou da cidade grande


Eu não sou mais da cidade grande. Não sei me encontrar nela. Não sei sequer me perder. Estou fora dela como ela está fora de mim. Onde estão as pessoas? Onde elas se escondem em noites intensas? Onde elas vagueiam? Eu não as encontro, procuro, mas rodo em círculos, fico parada no tempo, até por fim sentar e tomar um café. 

Não encontro os telefones, deixo recados que nunca serão ouvidos ou reclamados, ou respondidos. Olho em volta, reconheço a rua, reconheço o lugar, fisicamente. Mas o espírito, eu não localizo. Quais os símbolos? Eu os perdi quando saí daqui para nunca mais. Joguei as chaves no bueiro do lado de fora da calçada. Eu não me entendo mais aqui.

Os sinais, que me dizem? Que não sou mais da tribo, não tenho a senha, não sei mais passar pelo portal. Cruzei a linha precipitadamente demais. Minha viagem não permite volta. Tarde demais. Forte demais. Longe demais. Desci os porões além de onde havia possibilidade de ir. Subi os telhados transparentes e quebradiços dos desejos desajeitados da minha herança. Fui. Transpus. Me perdi? De folha outonal caindo da árvore passei a borboleta subindo para o vento. Diferente? O mesmo vento a soprar. Só eu que mudei a vela, a direção.

Hoje não quero voltar. Eu só queria reconhecer as esquinas que já cruzara antes. Só queria ver a cara daquilo que me dizia alguma coisa antes. Antes do fim. Antes, quando eu era apenas mais um alguém a andar pelas ruas. Perdida em ziguezague refém do tempo, do medo, do peito frio, desconsolado. Desconsolada. Des.

Desconstrui quem eu era para poder partir. E hoje, quando me sinto, aqui longe do meu lugar, parece que nunca pudesse ter sido diferente. Encontros marcados em ruas desconhecidas, com pessoas que deixaram de ser. Fantasmas emudecidos de quem fui. Tantas.

A cidade grande é um xamã hipnótico que acompanha e encaminha os iniciados. Protege e alicia os que aceitam. Depois, expulsa quem não o segue completamente. Feche os olhos e siga em frente. É uma ordem. Não pense na vida por levar, não sinta saudade de nada que já passou, não tente entender o que aconteceu. O grande irmão existe de verdade. Ele filma no semáforo, ele grava no elevador, ele não deixa que você passe em vão. Faça parte dessa turma. Seja alguém a remar na mesma direção. E se você partir, um dia, ninguém sentirá falta. Ninguém vai ligar para ver se aconteceu alguma coisa. Porque você só existe se está na mesma maré. Subindo e descendo na mesma onda. Depois disso, bem, depois disso é bom que o que você faça lhe faça sentido. Que você suma para algum lugar que tenha coração. Que você se encontre numa casa que pulse com sua chegada. Que você durma sem turma, mas de bem com a vida. 

A vida não é um albergue lotado. Antes, é um voucher para um passeio de caiaque que leva você aonde quiser ir. Vai até onde você for. A vida pode ser silenciosa e muda como um filme antigo. E pode ser um balanço no meio da tarde, longe, tão longe que dá para ver a silhueta do sol se por. Não é barato, não. E dá um trabalhão ficar olhando para um céu azul sem fim. Não tem a comodidade de ser porta com porta, janela com janela, carro, buzina, farol. As pessoas não estão tão fáceis ao pé de uma agenda eletrônica. Sem sinais, é preciso falar declaradamente. Declarar sua falta. Declarar que importam. Em voz alta, olho no olho, expor mesmo. É, até a liberdade tem preço.

terça-feira, 7 de agosto de 2012

Monólogo logo Maria


I ato

(a luz acende, o personagem já está no palco, olha para o público.)
Eu sou o artista. Vim para cá surfar nessas montanhas bem cedo quando o sol pode me banhar o rosto com seu dourado nascendo daquele outro lado. Na verdade, eu cheguei primeiro porque o artista sempre chega primeiro. Ele sempre vem antes de tudo. É por isso que ele é diferente. É por isso que sou diferente. Esse meu olhar meio vidrado, parecendo que está apaixonado, um pouco alegre um pouco emocionado, é assim mesmo. Tenho aquela loucura indisfarçável de quem sabe tudo ou já viu tudo. Eu vi. Vi cada uma dessas sementes germinarem e buscarem a luz do céu aberto porque elas cresceram em mim. Doeu, eu vou te contar, doeu muito quando elas irromperam a minha pele para abrir aos pares suas folhas verdinhas, fraquinhas, mas decididas. Foi por mim que passaram essas nuvens fazendo uma névoa nos meus olhos. Essa terra vermelha e seca no inverno já floriu de todas as cores, com as cores do arco-íris, plural e multifacetado, já se cobriu de verde de todos os tons, e ficou amarela de folhas secas antes de voltar a ser terra em mim. E depois, montanha. Fui a primeira gota de chuva a cair fria e transparente, fui a primeira pedra a rolar na correnteza, fui o primeiro regato a matar sua sede. Porque o artista é primordial. O artista sou eu.
(apaga a luz)

II ato

 (acende a luz, ao fundo, sombras de movimentos de dança, uma música começa ao fundo)
A diferença entre o artista e as outras pessoas é que o olho do artista chega antes. Ele vê antes. A mão do artista abre o caminho antes que outro veja ali uma possibilidade. E, no branco estanque do lugar comum, levanta a pena e faz pingar sua lágrima que as pessoas ao passarem veem como seu espelho, se reconhecem umas as outras em suas vidas anônimas.
O pé do artista chega antes, traçando no ar um desenho que não havia, fazendo a brisa balançar delicadamente a folha da árvore tocando-se no ar, movendo-se sem pisar no chão. O pé do artista não anda, nem caminha, nem corre, suaviza o vento em sua passagem pelo corpo. É a graça. Num desenho ilógico no vazio faz pairar a dúvida, a beleza, faz parar o ar no peito de quem apenas olha. O artista coloca palavra onde antes só havia conversa. Coloca melodia onde antes só se ouvia barulho. Coloca luz onde antes só se via sombra. Em seu delicado passar pela vida, ora perdido em devaneio silencioso de adágio, ora esvoaçante em delírio soprano de um amadeus em fúria, ainda assim, o artista não passa em vão. Deixa em seu rastro a beleza incólume do que sempre foi, deixa no ar o perfume inebriante da flor que já se esquecia debruçada na cerca do quintal. E da flor que já era poesia amarela no verde da cerca faz uma poesia de flor.
(apaga a luz)

III ato

(luz difusa ilumina indiretamente o personagem)
Eu sou o artista. Não quero passar em vão. Não quero ver a vida passar. Nem passar pela vida dos que me querem bem. Eu quero ser o bem da vida. Quero ser a bem da vida. Quero ser a vida que corre nas veias de todo aquele que olha e sente e ouve e dança e perde o fôlego de alegria. Eu quero ser você como você quer ser quem sou. Você, que me escuta como se ouvisse seu próprio pulsar, que me entende como se entendesse seu próprio querer. Você.
Eu vejo você e sei quem você é. Você é a doce julieta impossível de se amar. Você é helena que raptou meu amor e me levou para a guerra. Você é iracema virgem me querendo um encantador de abelhas. Mas eu, eu sou apenas seu cantor, minha dor é ter que escolher as palavras deixando outras sem destino. E declamá-las por seu amor incerto. Você me ouvirá? Me quererá? Gostará da minha música? Mas eu só sei rabiscar na pauta do meu caderno o seu nome violeta sonhando que te agrada e assim poder tocar sua pele gabriela, perfumada. Por seu amor, ando pelas ruas desenhando nos muros as cores da alegria. A alegria que só sinto ao tocar sua mão na minha, ao trocar o olhar com o seu, a me declarar completamente desprotegido e indefeso, hasteando em cada poste a bandeira do meu querer você. E você, carmen fustigando meu amor, desdenhando minha rima, ainda assim, me ouvirá deliciada, sabendo e querendo que tudo isso fosse mesmo para você. Que seu nome fosse ouvido em cada esquina, em cada sílaba escrita ou falada, um espetáculo do seu prazer e do meu em recitá-la. Nossa união se deu no momento da pedra ainda, quando eu apenas via você no bruto da rocha inerte que vai cedendo ao meu impulso de criá-la. Vai tomando forma pela minha mão que te procura, o veio da madeira enciumado de nossa intimidade tornando-se macio como o silêncio de ofélia. Nesse momento dramático do meu entrar em cena, levanta-se o coro em uníssono em meu auxílio: “cuidado com a rosa, espinho, cuidado com a rosa”. Sim, mulher, eu sei quem você é: você é minha alma.
(apagam-se as luzes)

IV ato

(luz amarela, tremulante de fogueira)
Tenho a coragem dos loucos. E o impulso dos apaixonados. As estrelas me sabem e me sabem as colinas que desenham o meu perfil nas encostas ao pôr do sol. Sou feito o telhado das casas em quatro águas olhando para todos os pontos cardeais e reverenciando o céu de sete véus. Nunca estou só, mesmo em meus passos únicos, galhos espalhados para todos os lados. Quando sigo só, minha solidão é repleta de companhia. Não, não são de gnomos ou fadas madrinhas os meus dias ensolarados. Nem de fantasmas e olhos vermelhos brilhando no escuro as minhas noites sem lua. Me agrada a companhia das palavras febris que despencam em minha cabeça de quebra-nozes. Como um estilingue de lançar pedra num alvo, vou pescando palavras e sons e cores como um personagem de alice. Você quer ser minha namorada? Pergunto para a borboleta. E ela, colorida e exuberante, me responde sem pestanejar: quero ser sua glória, o aplauso de pé com a cortina fechada, o bis do bis do bis. E eu, que só queria sentir tudo completa e de todas as maneiras, me vejo no palco de suas intenções. Os refletores nos meus olhos, não vejo mais onde você está por trás do escuro de tudo o mais. Você se foi? Ou ainda vive em mim esta outra vida que recito para ser você? Lavo a minha cara para tirar as máscaras da cena, e na água que cai vão junto suas marcas. Um pouco das sobrancelhas grossas vai na água, fica um pouco do vermelho da boca, e assim eu, artista da minha vida para a sua vida, vivida em mil papeis reescritos, preso nas paredes da memória, sobre o tablado de madeira xadrez, vou contar uma história para você: era uma vez uma menina que sabia recitar...

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Dançando com a vida


A alegria me tomou. Arrebatou-me, levou-me a nocaute. Fez com que eu passasse de peso pesado para leve. E me tirou das cordas. Não é incrível? Um olhar, bastou um olhar para que eu reconectasse com a alegria intrínseca da vida. A alegria fundamental, visceral, quase mística, ou mística mesmo; alegria da certeza, da confiança, do prazer. Muito prazer. Me too.
Havia uma música. O ar pode fazer sinfonias, basta o movimento de um arco, um movimento de dedos, as cordas vibrando, o silêncio da nota perfeita. Sim, havia música. Era um dançar colorido nos olhos que se cruzaram e não tiveram medo de ali ficar. Quietos mas intensos. Intensos mas leves. Leves mas reconhecidos. Como mãos que se dão em passeio. Como presenças que dispensam palavras. 

Meu deus! Era a presença divina? Angelical? Mas e o prazer presente? Era o inverso disso? Lilith zombando de minha fragilidade? A lua negra oculta me fazendo expor sentimentos que desconhecia? Uma peça, uma armadilha, um chamariz? Terei virado presa? Terei perdido o senso? E que senso pode ser melhor que esse sentimento me fazendo flutuar em meio à montanha de pedras e árvores enraizadas buscando o silêncio incógnito do frio? Sofrerei? O que virá depois?

Não sei. Não sei se preciso saber. Não sei se é possível saber. Parece que quando tentamos prever o futuro estamos apenas com medo do por vir. O por vir é o outro lado da rua. O outro lado da esquina. E por hora a paisagem que me descortina é encantada. Voo encantada por entre os dias e noites trazendo nos bolsos pedras para que não me perca, não fuja, não desapareça no mundo dos sonhos. O sonho alegre de uma vida que começa. Um novo começo.

Todo novo começo me encanta. Assombra mas encanta. Porque traz em si uma certeza de mudança. O velho sempre remói antes de partir. O antigo finca garras no peito para não deixar de ser. E tudo se transforma, ainda assim. Eu sei bem. Eu, que sou puro fogo queimando lentamente numa dança amarelenta e quente, sei que transformar não é fácil, mas é simples. Queimar como brasa que troca o carvão opaco pelo vermelho brilhante da vida. E derreter. Verter lágrimas de emoção seja ela qual for. Seja ela qual dor. Seja ela de amor. Sim, porque o amor também lacrimeja os olhos, emudece a voz, estanca o gesto. O amor é a expressão sem necessidade de excessos, de movimentos, basta um olhar, basta deixar.

E no olhar, a incerteza pungente e intrínseca, a incerteza que faz tremer o corpo como se morresse de frio sob a cachoeira. Descer em corredeira fazendo onda e levando tudo num redemoinho vertiginoso, o próprio coração na batida do tambor. Batendo, batendo, batendo no ritmo de atabaque. As mãos sem pensar batendo, batendo, fazendo o transe do resto. E os passos, ah, os passos da dança que movimenta o olhar, prende o olhar, impregna, enlaça. 

Não penso, entro na dança sem tirar os olhos dos olhos. Olhos que me envolvem – foi de propósito? – que me fazem perder a mente, que deixam voar as notas, escorrer o coração, deslizando embaraçada entre pernas e braços, o corpo todo tomado por uma tensão que esquenta, que me ergue o tronco, me arrepia a nuca, me faz dançar. Dançar como nunca. Como a cortina ao vento. O cabelo entre os dedos. Como se não restasse senão esse caminho, entre pedras e seixos, os pés em ziguezague de valsa, dois para lá, dois para cá, apertando contra o corpo o corpo que não é meu. Não importa, é apenas uma dança. Apenas uma dança e nada mais.

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Eu passei por ela e não olhei


Eu passei por ela e não olhei. Não virei, não toquei a mão dela inadvertidamente. Não cumprimentei, não olhei para trás, só passei. Não puxei conversa, não perguntei sobre os periquitos na janela, não tentei nada insólito, como falar do frio na montanha, nem qualquer clichê tipo que surpresa. Não era surpresa. Eu saí de casa para isso. Eu sabia que aconteceria. Sabia que nos encontraríamos. E na hora, bem, fui firme.

Não, não se trata de nenhuma promessa, não é timidez também – ainda que eu seja, comprovadamente, meu deus, – nem sacrifício ou renúncia. Afinal, me troquei, peguei o carro, desci a estrada, quase tarde da noite para encontrá-la, encontrei e sequer olho para ela? Ainda assim, não foi sacrifício algum. Fiquei feliz porque entendi a conexão. Havia uma conexão. Eu sabia que encontraria. Eu sabia que deveria descer.

Então? Eu vi sem olhar. Senti sem falar. E minha alegria imensa terá sido porque minha intuição estava certa? Ou porque pude estar assim tão perto, tão perto a ponto de poder falar olá, a ponto de sentir o perfume, sentir a onda de calor que faz uma pessoa quando passa bem perto de nós? Eu olhei para frente, pisei com certeza a calçada do alheio. Caminhei como se soubesse a direção. Eu, completamente sem noção. Discretamente no meu gesto contido, sete ou oito na escala Richter, não deixei que meu desejo me perturbasse ou enganasse.

Não, não, não. Sou muito sinestésica para ser platônica. Mas é que não estou assim, vamos dizer, por acaso passando pela sua atmosfera. Sua órbita já me capturou e estou apenas dando um tempo para corrigir a rota, para evitar uma colisão, para não me perder. Se é que ainda tenho escolha. Estou esperando um sinal. 

Como são essas coisas, de ter um bilhete para um trem que está atrasado. Ou de não ter o bilhete para o trem que chegou. Na dor que me sufoca a garganta, me faz tirar o excesso de roupa de frio, respiro e aceno com o bilhete para o taxi que está passando. É só dar tempo para que ele me veja e pare. É só ter certeza de que ele me verá. É assim. É assim que são essas coisas.

Não olhei também porque fechei os olhos. Fechei e me deixei sentir a presença tensa e quente se aproximando. Terá me visto? Terá desviado? Olhou? Sorriu? Quis dizer alguma coisa? Mas não dei tempo. Fui logo para casa. Vim acender a fogueira para aquecer o quintal e ficar olhando hipnótica para a labareda quente e vibrante. O fogo me liberta. 

Você acha que foi medo? Mas foi coragem. Coragem de aceitar em mim a vontade de não querer ser passageiro. De não querer me aventurar apenas na noite silenciosa para encontrar qualquer companhia. Coragem de se dizer que quer uma verdade. Uma vontade verdadeira, mais que desejo. Uma diferença muito mais que um gesto. Anacrônico demais para esses tempos modernos e ficantes? Talvez. Talvez sim, porque nesse momento a alegria toma conta de mim. De lembrar, de querer, de saber esperar. Eu nunca soube antes.