terça-feira, 7 de agosto de 2012

Monólogo logo Maria


I ato

(a luz acende, o personagem já está no palco, olha para o público.)
Eu sou o artista. Vim para cá surfar nessas montanhas bem cedo quando o sol pode me banhar o rosto com seu dourado nascendo daquele outro lado. Na verdade, eu cheguei primeiro porque o artista sempre chega primeiro. Ele sempre vem antes de tudo. É por isso que ele é diferente. É por isso que sou diferente. Esse meu olhar meio vidrado, parecendo que está apaixonado, um pouco alegre um pouco emocionado, é assim mesmo. Tenho aquela loucura indisfarçável de quem sabe tudo ou já viu tudo. Eu vi. Vi cada uma dessas sementes germinarem e buscarem a luz do céu aberto porque elas cresceram em mim. Doeu, eu vou te contar, doeu muito quando elas irromperam a minha pele para abrir aos pares suas folhas verdinhas, fraquinhas, mas decididas. Foi por mim que passaram essas nuvens fazendo uma névoa nos meus olhos. Essa terra vermelha e seca no inverno já floriu de todas as cores, com as cores do arco-íris, plural e multifacetado, já se cobriu de verde de todos os tons, e ficou amarela de folhas secas antes de voltar a ser terra em mim. E depois, montanha. Fui a primeira gota de chuva a cair fria e transparente, fui a primeira pedra a rolar na correnteza, fui o primeiro regato a matar sua sede. Porque o artista é primordial. O artista sou eu.
(apaga a luz)

II ato

 (acende a luz, ao fundo, sombras de movimentos de dança, uma música começa ao fundo)
A diferença entre o artista e as outras pessoas é que o olho do artista chega antes. Ele vê antes. A mão do artista abre o caminho antes que outro veja ali uma possibilidade. E, no branco estanque do lugar comum, levanta a pena e faz pingar sua lágrima que as pessoas ao passarem veem como seu espelho, se reconhecem umas as outras em suas vidas anônimas.
O pé do artista chega antes, traçando no ar um desenho que não havia, fazendo a brisa balançar delicadamente a folha da árvore tocando-se no ar, movendo-se sem pisar no chão. O pé do artista não anda, nem caminha, nem corre, suaviza o vento em sua passagem pelo corpo. É a graça. Num desenho ilógico no vazio faz pairar a dúvida, a beleza, faz parar o ar no peito de quem apenas olha. O artista coloca palavra onde antes só havia conversa. Coloca melodia onde antes só se ouvia barulho. Coloca luz onde antes só se via sombra. Em seu delicado passar pela vida, ora perdido em devaneio silencioso de adágio, ora esvoaçante em delírio soprano de um amadeus em fúria, ainda assim, o artista não passa em vão. Deixa em seu rastro a beleza incólume do que sempre foi, deixa no ar o perfume inebriante da flor que já se esquecia debruçada na cerca do quintal. E da flor que já era poesia amarela no verde da cerca faz uma poesia de flor.
(apaga a luz)

III ato

(luz difusa ilumina indiretamente o personagem)
Eu sou o artista. Não quero passar em vão. Não quero ver a vida passar. Nem passar pela vida dos que me querem bem. Eu quero ser o bem da vida. Quero ser a bem da vida. Quero ser a vida que corre nas veias de todo aquele que olha e sente e ouve e dança e perde o fôlego de alegria. Eu quero ser você como você quer ser quem sou. Você, que me escuta como se ouvisse seu próprio pulsar, que me entende como se entendesse seu próprio querer. Você.
Eu vejo você e sei quem você é. Você é a doce julieta impossível de se amar. Você é helena que raptou meu amor e me levou para a guerra. Você é iracema virgem me querendo um encantador de abelhas. Mas eu, eu sou apenas seu cantor, minha dor é ter que escolher as palavras deixando outras sem destino. E declamá-las por seu amor incerto. Você me ouvirá? Me quererá? Gostará da minha música? Mas eu só sei rabiscar na pauta do meu caderno o seu nome violeta sonhando que te agrada e assim poder tocar sua pele gabriela, perfumada. Por seu amor, ando pelas ruas desenhando nos muros as cores da alegria. A alegria que só sinto ao tocar sua mão na minha, ao trocar o olhar com o seu, a me declarar completamente desprotegido e indefeso, hasteando em cada poste a bandeira do meu querer você. E você, carmen fustigando meu amor, desdenhando minha rima, ainda assim, me ouvirá deliciada, sabendo e querendo que tudo isso fosse mesmo para você. Que seu nome fosse ouvido em cada esquina, em cada sílaba escrita ou falada, um espetáculo do seu prazer e do meu em recitá-la. Nossa união se deu no momento da pedra ainda, quando eu apenas via você no bruto da rocha inerte que vai cedendo ao meu impulso de criá-la. Vai tomando forma pela minha mão que te procura, o veio da madeira enciumado de nossa intimidade tornando-se macio como o silêncio de ofélia. Nesse momento dramático do meu entrar em cena, levanta-se o coro em uníssono em meu auxílio: “cuidado com a rosa, espinho, cuidado com a rosa”. Sim, mulher, eu sei quem você é: você é minha alma.
(apagam-se as luzes)

IV ato

(luz amarela, tremulante de fogueira)
Tenho a coragem dos loucos. E o impulso dos apaixonados. As estrelas me sabem e me sabem as colinas que desenham o meu perfil nas encostas ao pôr do sol. Sou feito o telhado das casas em quatro águas olhando para todos os pontos cardeais e reverenciando o céu de sete véus. Nunca estou só, mesmo em meus passos únicos, galhos espalhados para todos os lados. Quando sigo só, minha solidão é repleta de companhia. Não, não são de gnomos ou fadas madrinhas os meus dias ensolarados. Nem de fantasmas e olhos vermelhos brilhando no escuro as minhas noites sem lua. Me agrada a companhia das palavras febris que despencam em minha cabeça de quebra-nozes. Como um estilingue de lançar pedra num alvo, vou pescando palavras e sons e cores como um personagem de alice. Você quer ser minha namorada? Pergunto para a borboleta. E ela, colorida e exuberante, me responde sem pestanejar: quero ser sua glória, o aplauso de pé com a cortina fechada, o bis do bis do bis. E eu, que só queria sentir tudo completa e de todas as maneiras, me vejo no palco de suas intenções. Os refletores nos meus olhos, não vejo mais onde você está por trás do escuro de tudo o mais. Você se foi? Ou ainda vive em mim esta outra vida que recito para ser você? Lavo a minha cara para tirar as máscaras da cena, e na água que cai vão junto suas marcas. Um pouco das sobrancelhas grossas vai na água, fica um pouco do vermelho da boca, e assim eu, artista da minha vida para a sua vida, vivida em mil papeis reescritos, preso nas paredes da memória, sobre o tablado de madeira xadrez, vou contar uma história para você: era uma vez uma menina que sabia recitar...

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