Hoje posso queimar todas as dores de amores passados,
perdidos, deixados para trás na estrada por serem pesados demais para carregar.
Todas as lembranças que me imbuíram de pesar e remorso vão. Todo remorso é vão.
Todo fim de tarde é mais triste que o amanhecer porque é o fim de uma jornada.
E toda a dor que há no fim de qualquer dia, de qualquer tempo, de qualquer
ciclo é o que é: um fim.
Não há o que fazer se a semente não brota, se a água não
corre, se o pássaro não canta. Não há o que chorar quando já não há mais
lágrimas para derramar. Tudo já foi. Já foi o dia, já foi o boi para longe da
cerca, já desaparece a lua na noite escura. A fumaça anuncia o fim do fogo.
E o mundo não acabará por isso.
Hoje posso arremessar na brasa todas as ilusões, as fantasias
mal realizadas, os sonhos acordados demais para ser verdade. Posso ficar vendo
a chama consumir a tristeza de não haver espaço para mais nada, entulhado que
está de pó e cinza. Posso ver na chama amarela um pouco do gás que restara de
alguma felicidade remanescente e fugidia.
E quando queimo assim minhas dores também eu me transformo.
Também me queimo na chama que corrói. Quero a vida que corrói as veias para que
o sangue se espraie para todo lado, sem forma, sem fronteira, desembestado e
desassossegado. Porque não é só a insatisfação que faz mover, mas a paixão.
Na chama que me faço habitar agora, danço um novo gesto, uma
nova alma, revivida e renovada da semente dos dentes de leão esvoaçantes. Como
o vazio introvertido das flores que se dão no mato. Amarelas, azuis, vermelhas,
pouco importa, pois que nenhum olhar vai vislumbrar. Dar-se em vão.
No gosto da boca um bolor de casa fechada, aberta recente,
para ver entrar a luz que há no mundo. O mundo é o acender de todas as
fogueiras desperdiçadas em noites frias. Largadas quando ainda nem sequer
avermelhavam, e depois, sim, ao virar as costas, eclodiram em labaredas pela
mata. Nesse fogo descontrolado e desamotinado eu verto minhas quimeras. Aquelas
que se apegaram à tábua do assoalho, pela janela mal fechada, pelo buraco da
fechadura. E depois de vê-las assim, derretidas em fogo brando, consumidas em
luz, então, posso dormir em paz.
Posso voltar a dormir em paz porque a paz é um oco no peito.
É um coração voltando a bater singelo e delicado como o beijo do colibri. É o
silêncio da noite quando todos já se foram. A paz é um sujeito esparramado no
verbo. Eu. Na volta da lua. Com chuva de meteoros.
Depois de tudo, quero uma comida picante, uma pimenta
vermelha, rude no trato, capaz de arrancar suspiros exaltados ainda muito
depois de tê-la engolido. Quero uma lufada de vento forte, que faz quebrar os
galhos das árvores escuras e invisíveis da noite. Quero uma tromba dágua, uma
tempestade, o voo rasante de um gavião capturando algum inocente descuidado,
quero a fúria da natureza imoral se lançando contra si mesma para arrancar a
casca ressequida, podre, escamoteada, para não sobrar senão uma lembrança
brumada do que um dia fui. Para me perder a tal ponto que nunca mais me
encontre.
Então, sim, nascerei para outra vida, outro tempo, outra
encosta onde o mar rebate forte espirrando espuma para todo lado. Para ser a
espuma branca que, sendo mar, foi ser céu azul num minuto infinito em que
encontrou o rochedo. Para nunca mais voltar a doer. Seguir em frente, simplesmente,
e nunca mais voltar.