sábado, 30 de julho de 2011

Que me desculpe o sebrae


Que me desculpe o sebrae e todos os consultores de negócios, mas se eu tivesse planejado minha vida toda, em vida, não teria feito o que fiz, chegado aonde cheguei. Tanta coisa no inconsciente me ajudou muito. Tanta coisa que nunca pensei, tanta coisa, meu deus. Encontros não planejados, despedidas antecipadas, rompimentos doloridos à época, estratégicos depois. Estarei apenas seguindo um roteiro esquecido da lembrança? Ou estarei escrevendo uma história nova a cada dia?

Mal planejo o dia. Forço-me a isso, mas faço pouco. Onde está o telefone que eu tinha que conseguir por compromisso? Planejei procurar com um amigo, não o encontrei nem liguei. Fiquei imersa em um dia de trabalho absorvente. Escolhas, bem sei. Absorta num trabalho posso ficar sem comer, sem dormir, sem sentir falta. E então, apenas um sino, um alerta, um sinal marcado pode me tirar dessa concentração. Ainda assim, sou pouco persistente.

Se apenas planejo e fico projetando, é como se estivesse brincando de fazer teatro. Divirto-me escrevendo as falas, as cenas, as reações, mas nada de levar ao palco. Aí, de repente, sem plano ou meta, de repente mesmo, sem que me dê conta, fiz as malas, fui embora, peguei o trem, parti para a cena 10 do segundo ato, sem pausa, aplausos irrompendo à minha frente, mau-humor me tirando do centro, outras vezes, apenas um silêncio de não-entendi, e lá fui eu para dentro de outra peça, outro roteiro, um filme talvez.

Não, como será a vida de cada um de nós? Uma locomotiva seguindo por trilhos invisíveis? Parando em estações apinhadas de expectativas, de portas abertas e fechadas, com placas ou sem, em horários não combinados? Está parada ainda? Esperando alguém que não veio? Esperando a troca do maquinista, amanhecer o dia, ou o comboio que atrasou? Quanta incerteza; não sei se estaria aqui, sozinha uma hora dessas, se tivesse que planejar. Decidir é uma arte.

A água corre para o mar porque é o lugar mais baixo. O vento sopra para o calor, porque não tem resistência. A fruta cai da árvore por causa da gravidade. Parece sempre ter uma lei que movimenta as coisas inertes. E qual é a lei que rege a vida? Ela segue para onde? Desce a ladeira, corre para o mar, acorda com os pássaros, dorme com a lua. E eu nela, sou passageira, efêmero sonho de uma borboleta.

Ah, os caminhos que não segui, terei escolhido realmente? Ou terei chegado aqui por minhas pernas, que sei, porque elas têm mais inteligência que minha mente, e viram o que meus olhos não viram, ou não viram nada, por isso seguiram em frente. Talvez viver seja mais simples que isso, como o regato que desce cristalino sem saber para onde. Porque não importa para onde, é o caminho que importa.

quarta-feira, 27 de julho de 2011

Sou muito desorganizada

Eu sou muito desorganizada. Reconheço. Eu tento não desarrumar nada. Tiro a primeira peça de roupa que acho na gaveta, visto e pronto, não troco por nada. Guardo a carteira e coisas pequenas no primeiro zíper da bolsa para achar fácil. Coloco apenas uma camisa com uma calça em cada cabide para não tirar uma e amassar a outra, ou derrubar. Guardo os óculos dentro da caixinha de óculos, as meias na gaveta de meias. Toda roupa suja fica no banheiro. Mas cada vez que preciso de uma coisa, não acho.

Não sei onde está meu passaporte. Não sei nem se tenho passaporte. Não voltei ao médico para mostrar o resultado dos exames. Nem fiz todos os exames pedidos. Tenho um quarto inteiro, fechado, para arrumar. Um monte de caixas guardadas que nem sei o que tem dentro. Fotos antigas, papéis antigos, coisarada. Tenho micros velhos que nem funcionam mais, sem saber se me desfaço ou se esqueço, jogo no lixo. Mas pode ter algum dado que não podia ser dispensado. Tenho cortadores de grama e só usei uma ou outra vez. Tenho uma tesoura de poda que não sei onde está e a ora-pro-nobis que precisa ser podada está lá, a esperar olhando para mim parecendo uma coroa-de-cristo.

Guardo garrafas de vinho vazias porque tenho dó de jogar no lixo. Acredito que ainda possa ter algum uso. Guardo revistas de gastronomia, milhões. Talvez tenha uma receita que queira recuperar. Guardo roupas velhas, mas que ainda podem ser usadas. Quase sempre, quando me desfaço de roupas são as mais novas, as velhas, que gosto de usar, ficam. Será que sou compulsiva? Nem vou falar para nenhum médico senão serei diagnosticada e terei que tomar remédio.

Em geral, quando tenho arroubos de organização, são de pôr a casa a baixo, não fica nada fora do lugar. Mas dura só um dia, a desorganização tem que ser pouca, se ficar para o próximo dia, ficará para a próxima vez. Tenho fôlego curto para arrumações. Aliás, acho que não sou persistente o suficiente. Aprendi tudo que quis aprender, mas não fiz tudo que precisava. Quero dizer, aprender é um ato para dentro e para esses não tenho problemas. Meu problema é quando o ato é para fora, quando tenho que transpor montanhas de problemas, quilos de papéis, que não sei por onde começar. Tenho vontade de fechar todas as portas e ir embora. Acho que é assim que funciona a depressão. A gente fecha todas as portas e fica lá dentro.

Tenho uma natureza mais contemplativa. Gosto de passear, viajar, conhecer lugares e pessoas. Trago um monte de cartões de visitas e folhetos de todos os lugares que já passei. Todas as feiras que vou, trago todo tipo de coisa. Mas não tenho paciência de procurar, organizar, catalogar e guardar. Nunca acho o telefone de alguém que tenha conhecido se for um cartão. Se não for a agenda do meu celular, não sei nenhum telefone. Preciso constantemente de uma inteligência artificial extra, uma agenda inteligente.

Acho que por causa dessa desorganização interna é que gosto de espaços amplos. Nada de casas pequenas, quartos apertados, camas estreitas. Gosto de roupas largas, sapatos cômodos, mesmo que não sejam lá essa beleza toda. Dispenso a beleza pelo conforto. Aliás, não vejo muita graça na beleza que seja só estética, só se for artística também. Belos são pinturas, jardins, fotos, músicas, livros, esculturas. Pessoas são ou não são interessantes, inteligentes, bem-humoradas, divertidas. E a beleza vem do sim, não do que elas vestem. Agora, por exemplo, quero conhecer pessoas que sejam sim.

terça-feira, 26 de julho de 2011

Gosto de Cavalgar

Tem gente que, para se divertir, fuma ou bebe, alguns tomam comprimidos, outros comem muito. Eu ando a cavalo. Não tem nada igual. O cavalo ainda é selvagem mesmo quando domado. Ele é livre, você não pode deixá-lo com ração sem fim, pois ele come até morrer. Ele não se acostuma com ração, tão civilizada. Nada disso. Ele continua num tempo em que a vida valia pelo que se vivia, pelo que ofertava. O mato farto, o vento farto, a água em corredeira. Ele olha para você, aceita o cabresto, as rédeas e o freio e vai onde você comandar. Mas assim que você vira as costas, ele volta a ser o que sempre foi e será: livre.

Também vim buscar a liberdade nessas montanhas. A liberdade de ser quem sou com o mínimo de esforço e civilidade. A civilidade doma os espíritos. E um espírito domado é como a grama que só cresce no sol. Perdeu a rusticidade do mato que cresce na floresta, na sombra. E a rusticidade é a capacidade de continuar onde parecia o fim. A água da cachoeira, a pedra da montanha, o pássaro que voa longe. Isso é rusticidade.

Cavalgar é um ato de meditação também. Deve rejuvenescer, deve renovar os neurônios, deve fortalecer o coração. Só porque faz a cabeça parar um pouco de sua habitual lógica e falta de lógica. Parar de pensar em tudo que é limitante e enquadrado. Pode ser um perigo, como comer ração sem parar até morrer. Mas um perigo para a vida dos que se acomodaram em rotinas sufocantes e extenuantes, rotinas de propósito repletas de prateleiras para arrumar e gavetas entulhadas para distrair a mente daquilo que realmente importa. Tanto empecilho no dia a dia que quando viu, o dia passou, a vida passou.

Às vezes, quando volto dessas cavalgadas, é noite. E quando não tem lua, como hoje, as estrelas se refastelam. Fico em silêncio, como se falasse com elas e elas me ouvissem. Todos que estão perto fazem um pouco de silêncio. Os olhares perdidos no infinito, já não se cruzam. Um silêncio rápido, pois logo sobe no ar aquela vontade enorme de galopar, que chega pela mão que segura a rédea, e agora é o cavalo a comandar. Disparar no escuro sem se preocupar com nada. E por que se preocupar?

Talvez seja tão bom porque cavalgar tem um aspecto místico, parece que a gente se torna um semideus, assim como o centauro. Ou talvez porque é muito mais alto, dá para olhar o caminho por um ângulo mais elevado. Ou talvez, simplesmente, porque por instantes dá para retornar àquela época da vida humana que não era preciso ser herói, porque todos eram. Que não era preciso ser perfeito, porque não existia imperfeição. A liberdade inconsequente de quem não erra. O cavalo, imagino, é pura intuição. É um tapete mágico. Abre-se um caminho pela árvore e todos se arremetem para o mundo de alice. Eu não queria uma vida de sonho, mas por que não viver um pouco de enlevo no meio da semana?

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Eu que já fui paciente psiquiátrica

Os loucos da idade média deveriam ser bem mais loucos do que os de hoje em dia. Até bem pouco tempo o modo tradicional de se tratar gente maluca era prendê-los longe da vista de todos os demais, família, amigos, sociedade, para não constrangê-los com sua insanidade. Eram confinados e submetidos às mais cruéis formas de torturas a que chamavam tratamento. Eletrochoques, alucinógenos, tranquilizantes, uma parafernália.

Agora, não mais. Eu, que já fui paciente psiquiátrica, sei bem que mudou muito. São comprimidos com uma tecnologia quase imperceptível. Tudo fica melhor. A realidade fica melhor, aceitável. Toda a sua incoerência, toda a falta de sentido que sua vida tinha, repentinamente, toma um novo colorido. E não importa muito se você apenas amortizou tudo, transformou todas as suas emoções em um purê insípido. Ao menos você continua produtivo, receptivo, socialmente aceito. Ao menos para os outros, por alguns momentos, você é normal.

Conheço pessoas que são completamente transtornadas, compulsivas. Algumas imaginam uma realidade e contam para si e para todos os que a rodeiam a tal ponto convincente que todos acreditam nessa ilusão. Até a própria pessoa. E conheço alguns que se fecham num mundo isolado, escondem-se em casulos, morrem de medo de tudo. Trancam-se em casa, não respondem e-mails, não atendem o telefone, e ficam horas pensando se há algum perigo em levantar da cama.

É um mundo repleto de dor porque pessoas em geral têm consciência de seu estado caótico. Reconhecem-se naquele papel de prisioneiros de um destino que não lhes pertence, que não têm controle, não entendem. Quem não sabe o que é isso pensa que é apenas fraqueza. Não consegue ver que tem uma sensibilidade insuportável sob essa pele fina de paranóia ou medo.

Mas por que? Por que insistir em se degenerar, recusar buscar o sentido que a vida exige para pagar apenas o preço por uma negação? Quanta sensibilidade desperdiçada tentando desesperadamente ser o que não é, respondendo com silêncio e inaptidão ao chamado da vida social? Hoje acredito firmemente que tudo isso é resultado da falta de expressão, seja qual for, de uma sensibilidade que não tem espaço em geral na vida moderna, como ela é desenhada. Talvez, apenas talvez, se essa pessoa tentasse escrever – qualquer coisa - , tentasse pintar, desenhar, colar, amassar, recortar, costurar, emendar, serrar, fundir, quebrar, e expor, essa dor seria menor. Expor necessariamente. Mostrar-se. Quanta dor represada poderia ser aliviada apenas nesse gesto. E quantos comprimidos a menos seriam abreviados das prateleiras!

quinta-feira, 21 de julho de 2011

Resolvi preparar um jantar rico

Resolvi preparar um jantar bem rico e saboroso para terminar o dia diferente de como começou hoje. Deixei a irritação cansada de lado e preparei o capellini mais perfumado que podia fazer, com os ingredientes de que dispunha. Capellini ao molho de berinjela e pimenta doce recheada de tomate seco e castanhas, no azeite extra virgem, vinho branco e creme de leite fresco. Depois de tudo isso, parmesão ralado na hora e, claro, uma taça de vinho carmenére.

Mas o que pretendia ser uma noite calma e degustativa acabou se tornando uma turnê musical pelo melhor do repertório que poderia imaginar. Mais vinho e água para aguentar a noite toda. Muita conversa e diversão, e uma quarta-feira normal já ficou diferente. A vida é repleta de momentos incomuns que podem ser tirados da cartola até quando já se foi para casa terminar o dia. Eu, que estava cansada, que falei o dia inteiro, pensava que ia descansar. Só a mente, o corpo continuou na ativa.

É interessante como a vida pode dar voltas. Passei mais ou menos a metade da vida prometendo a mim mesma mudar. Mudei. E agora fico procurando aquelas coisas que fazia antes. Às vezes é mais fácil mudar o lá fora do que o aqui dentro. O aqui dentro continua querendo o mesmo lugar quentinho e confortável de antes. O lugar que já havia esquentado demais até, que tinha feito um jeito de incomodar para fazer mudar.

Assisti um filme em que a personagem tinha que mudar, ir embora, a cada mudança dos ventos. Pode ser uma forma de nunca se acomodar. Mas também pode ser uma forma de nunca se fixar. Tanta gente tem medo de se fixar. Comprometer-se. Fazer parte. Parece que fazer parte é uma acomodação. Porque amar é assim. Tem o dia seguinte. Não é como a paixão, descontraída e passageira, efêmera, que pode ser uma noite, um dia, talvez. Amar tem o dia seguinte, acordar e continuar querendo. Querer é uma atitude. E toda atitude é comprometida, caso contrário é apenas um movimento.

Passa o tempo e continuo querendo fazer da minha vida algo que realmente valha a pena. Fazer a diferença onde quer que eu esteja. Olhar todo dia pela janela e me reconhecer na paisagem. Sentir o calor do sol na pele e entender meus limites e aceitá-los, e ainda assim, conseguir sorrir. Porque rir da vida é um bom significado para ela. Ouvir uma música boa, bem cantada ou tocada, tomar um bom vinho. E seguir em frente, seja para onde for. Seja como for.

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Eu gostava mesmo era de beijar você

Eu gostava mesmo era de beijar você. O resto, não lembro não. Não me lembro do que conversávamos nas horas intermináveis que faziam o tempo não existir. Não me lembro do que ríamos tanto. Mas tudo era muito divertido. O que tínhamos em comum? O que nos entretinha? Eu não sei mais. Foram assuntos que esqueci. Foram dias que não me deixaram marcas. Só dos beijos, dos beijos me lembro bem.

Eu gostava de receber flores, as flores que você me dava, não sei porque. E nunca apanhei nenhuma, deixava-as nas árvores, nos canteiros, onde estavam. Porque esse era um amor que se dava como as flores, fugazes, efêmeras, lindas. E de tanto se dar, ficou lá trás, no caminho que passa rápido, sem tempo de olhar de novo, sem lembrar onde ficou, gastou.

Do abraço forte eu também gostava. Apertava, às vezes doía, eu reclamava e era mais um motivo para rirmos sem fim. O pôr do sol, a lua cheia, a rota dos aviões nas estrelas que não reconhecíamos. Disso eu me lembro. Que nome eu daria para aquilo? Aquela brincadeira de adivinhar, de pensar com os olhos, de cantar com sorrisos, de pôr o mundo de cabeça para baixo, inverter as tramas, de não saber mais o que era e o que não era. De tanto não saber, acabei por esquecer.

Esqueci seu nome, esqueci os versos todos que eu fiz para cantar você. Esqueci nas paredes onde estavam os seus retratos, nenhum que eu tenha tirado, esqueci como era sua voz. Perdi o sinal de adeus e perdi a curva antes que se virasse. E onde antes havia seu olhar me olhando fixamente, agora tenho um espelho a me perguntar: quem? Quem era você e o que queria? Terei dado o que esperava ou terei deixado na espera?

Eu mesma não esperei. Qual seria o mundo das escolhas que não fizemos? Mais colorido? Mais aberto? Com que palavras se construiria? Você falando de amor nas promessas que não me fez. Eu sonhando quimeras de claras batidas em neve para um doce que não fiz. O vento assoprou até cair.

Hoje, cismando, não sei se foi bom ou não. Não sei o que passou, porque passou. Eu nem sabia que gostava desses romantismos todos, desses trejeitos, dessas histórias que ouvia de sua boca que me beijava. Mas disso, só disso é que me lembro. Você me beijava bem.

quarta-feira, 13 de julho de 2011

Tenho cães no quintal e gatos em casa

Tenho cães no quintal e gatos em casa. Os cães não têm como sair, o quintal é grande, com grama, árvores, área coberta e água corrente, mas é completamente cercado. Os gatos ficam mais ou menos soltos. Saem e voltam quando querem. Um deles, que era de rua, sai para além do quintal e depois volta. Isso me preocupa, mas ao mesmo tempo não posso tirar dele essa liberdade. Quando fica em casa, trancado, porque chove, por exemplo, ele anda de um lado para o outro, nervoso, estressado. Terei o direito? Por uma preocupação que é minha? Não sei.

Outro dia, infelizmente, houve um desaparecimento de alguns cães de rua. Veneno. Foi muito triste. Alguns tinham donos que os deixavam sair, em liberdade. Nesse dia, não voltaram. Óbvio que quem colocou veneno para esses animais só vai encontrar o perdão de deus, porque é difícil aceitar uma coisa dessas. Eu nem sei o que faria se um desses fosse meu. Tenho uma dificuldade enorme em me conformar. Mas, estaria certo deixá-los soltos quando correm esse risco? E estaria certo também trancá-los em casa?

Quando se mora em apartamentos, não se tem esse tipo de dúvida. A vida é mais fácil quando não se tem escolhas. A liberdade é um aprendizado. O que você faria se ganhasse muito, mas muito dinheiro? Depois daquelas respostas fáceis e bobas tipo irresponsáveis, você se daria conta que o mais difícil é escolher, decidir. Bem, pode haver pessoas com mais facilidade em decidir. Ou talvez eu seja a única a ver desta maneira.

O que falo é sobre responsabilidade sobre mais alguém. Alguém que dependa de você por algum motivo. Saúde, cuidados, atenção. Bichos, crianças, idosos. Decidir por alguém porque o que quer que lhes aconteça afetará você. Olhar pelos olhos de outra pessoa, pensar pela cabeça de outro. E tentar ao máximo ser invisível. É claro, pois não estou me referindo a fantoches, bonecos manipuláveis, seres sem vida própria. Não é porque dependem de terceiros que deixaram de ter sua própria vida. Não é porque parecem não ter clareza sobre suas atitudes que posso excluir deles seu direito a liberdade.

Mas existe essa coisa? Liberdade para animais domésticos? Se são domésticos, é que foram domesticados. Nesse mundo que criamos não há lugar para outros seres terem sua própria liberdade, senão a que decidimos por eles. Você vai deixar uma vaca entrar no seu quintal e comer sua roupa? (alguém tente explicar para ela que não se deve comer roupa) Ou deixaria que um cão entrasse em sua casa e comesse o primeiro pedaço de pão que encontrasse? (coloque placas: não mexa). E crianças não ficam longe disso, é um longo processo até que sejam totalmente domesticadas...

No final, parece que o que se quer é um mundo perfeito. Ninguém erra, ninguém pode errar. Ninguém pode morrer. Ninguém pode mentir, esconder, articular, manipular. E, onde nada pode, tudo pode. O que vejo o tempo todo é um mundo do faz-de-conta às avessas. Homens e mulheres tentando ser o que não são. Querendo ter o que não têm. Falando do que não sabem, a terceira pessoa ausente. Liberdade. Quero uma definição que possa ser tão transparente que eu me veja nela. Eu, que abandonei o relógio quando mudei de vida, achando que soltava algemas, sei bem que ainda estou longe de encontrá-la. Aliás, a única coisa que sei é que vacas não comem roupas do varal.

quarta-feira, 6 de julho de 2011

Algumas vezes as coisas não saem como planejado

Algumas vezes as coisas não saem como planejado. A batata não cozinha, o creme de leite talha, acaba a lenha antes de terminar o jantar, o ovo quebra errado, o gosto não era esse. Simplesmente o resultado não sai como esperado. Tinha tudo para dar certo e não deu. Outro dia isso aconteceu comigo. Preparei todos os ingredientes para comer batata assada com recheio de manteiga temperada com alho poró e catupiry e eis que acabo por comer purê. Decepcionante. Dá para tolerar não ter azeitonas pretas para pôr no molho de tomate idealizado. Mas não dá para aceitar um molho alla rabiatta sem pimenta.

É por isso que tem gente que nem declara suas intenções: para não se frustrar caso não as alcance. E depois, ter que aceitar os resultados, mesmo os inesperados, mesmo os adversos. Difícil. Como lidar com um não daqueles impossíveis? Um rompimento quando você ia dar a chave de casa? Todo dia seguinte é difícil porque significa começar de novo.

Mas é bom começar de novo. Não a mesma coisa novamente. Apenas uma novidade na vida. Nova vida. Você, o outro dos outros, num novo momento e com novas soluções. Uma nova estação, ainda que prenuncie o retorno do inverno. O risco é sempre o mesmo: errar. E se você for virginiano o suficiente para temer errar mais que qualquer coisa na vida, então cada recomeço é um tormento, repleto de difíceis escolhas. O caos é o início de uma nova ordem.

Houve um tempo em que acreditei que concluir uma coisa fosse sinal de morte, final. Então, queria somente começos, queria sempre o novo, um novo dia. A paixão que faz bater o peito em disparada e disparatada sintonia. Era o medo da estabilidade, medo da repetição, da mesmice. Hoje sinto falta de viver a harmonia das horas que passam. Viver a tranquilidade de concluir tudo que inicio. Apostas? Porque somente apostas me estimulavam. E, claro, acreditava apenas na vitória. As frustrações das derrotas eram tão secas que era difícil demais engolir. Precisei tomar remédios para digerir fracassos. Eu achava impossível ser expulsa do paraíso. Direito adquirido. A evolução como uma linha reta, sem volta. Tudo na mais completa ilusão.

Mas é assim, algumas vezes o arroz fica duro e papa, o vento muda e derruba a pipa, o sonho vira pesadelo, e depois de tudo, amanhece. Simplesmente amanhece. Nasce um novo sol, e tudo volta a aquecer. E tudo volta a ter vida. Tão simples, mas tão simples que chega a ser clichê, chega a ser óbvio como uma declaração de amor. Porque a lição não é nascer ou morrer, mas saber seguir de um a outro, todos os dias.

terça-feira, 5 de julho de 2011

Eu não canso de me surpreender

Eu não canso de me surpreender. Uma flor abre uma vez no dia. Outra dura apenas um dia. E é linda. Efêmera como a vida. Num dia, tudo amanhece branco de gelo, deixando a paisagem com atmosfera silenciosa e quieta. Tudo em volta cristalizado, refletindo o sol nas várias facetas da água congelada. Um brilho, uma luz única. No outro dia, parece que as plantas passaram por uma queimada: as folhas caem, os galhos secam, as flores ficam escuras, a grama doura. Um mundo inteiro mudado num sopro. Até a pele gelada de um dia fica queimada no outro.

No meu quintal sobrou apenas a cerejeira, resistente, cor-de-rosa, tomada de abelhas e zumbidos. Tudo o mais queimou até a última folha. O alecrim também restou, florido e mais aromático do que nunca. O estresse faz a planta dar o seu máximo. Diferente das pessoas que, sob pressão, espanam, doem, fogem ou batem. Os orientais estavam certos, a vida se completa nos opostos. O difícil é conciliá-los. Aceitar as diferenças como quem aceita o troco de uma compra. Aceitar o diferente como quem aceita que nem tudo é espelho no mundo real. As diferenças trazem possibilidades inéditas, soluções inesperadas, um gosto daquilo que de outra forma não imaginaríamos.

Olho o luar lá fora. Lua crescente em sorriso que ora foge ora retorna dourado por trás das nuvens. Olho o luar por trás da árvore que agora é só galhos. Se tudo muda, serei eu também a mesma? Amanheci com fome e agora estou tomando vinho no meio da noite. Passa o tempo enfileirado de folhas caídas como faz o inverno quando chega. Primeiro amarelo, dourado, vermelho e, por fim, marron terra. A mesma terra que vai voltar a ser verde um dia na folha que vai nascer, e que já está brotando. Os ciclos em dança de roda. Terei um lenço atrás? Terei que sair correndo atrás de quem me escolheu? Precisa ter humor para brincar com a vida a brincadeira que ela quer. Como um jogo de lenço-atrás.

Vai esfriando cada vez mais um frio que vem do chão. O inverno é minha estação preferida. O dia é ensolarado, a noite é translúcida, as estrelas aparecem mesmo quando há lua, e as pessoas, ao contrário, desaparecem sob casacos, gorros e cachecóis, mas ficam mais charmosas, elegantes, cuidadas. Algumas ficam resfriadas, sem voz, ou com febre. Faz parte. É preciso saber flexionar também. O inverno é a inflexão da vida. Qual é o alcance das minhas mãos, a altura dos meus pés, a largura das minhas pernas? Até onde posso seguir quando amanhecer o dia e tudo voltar a ser verão? Enquanto isso, enquanto não tenho respostas para perguntas simples, vou me aquecendo e aquiescendo no retiro de minha casa, sabendo que um dia terei que sair, que um dia terei que abrir a porta e sair sem proteção, sem desculpas, sem medo, como quem apenas acorda e abre os olhos. Naturalmente.