domingo, 22 de abril de 2018

Voar é preciso

Não tem saída, o beco, como não tem outro jeito, o pássaro, senão voar. E se tudo for minha imaginação, prefiro ser o pássaro que se perde no ilimitado céu, do que ser aquele lugar que te aprisiona. Porque um momento amanhece novamente, e, na luz, voltamos a nos vislumbrar como somos: etéreos corpos em corações partidos. Por mais que procure, os pedaços que faltam clamam por seu lugar, nas ruas, nas encruzilhadas, nas esquinas de outras vidas que se foram. 

Prefiro ser o pássaro que parte quando chega o inverno, levando consigo as sementes do calor que viveu. E assim manter-se aquecido quando não restarem senão promessas de uma nova vida. 

No esforço do voo, terei que deixar pra trás tudo ou quase tudo, levando comigo apenas o que for leve, o que marcou a pele, a retina e a língua, o que resistir ao vento forte e as alturas. Levando um pouco do pó talvez, pra me lembrar de que vivi, e do que fez secarem minhas lágrimas, antes da beleza de um por do sol. 

Eu sei que a poesia é inútil. Inútil também é o amor. Assim, entre uma e outro, vou apagando minhas pegadas, vou aprendendo a querer e a voar, porque amor que é amor, não agarra, é livre; não morre, transcende. E se sou como tudo: energia, um fragmento de luz passando pela fresta da janela feito lua cheia, se sou um fio de teia de aranha balançando na brisa esperando alcançar o outro lado da porta, o outro lado de tudo, pra fazer uma ponte, pra ir além, se sou quase invisível que não sei onde estou ao certo, então posso me reinventar a cada vez uma nova pessoa, um novo mapa, uma nova rega sobre as pétalas abertas, delicadas, perfumadas, deixando um rastro de aromas no ar.

É preciso aprender a partir, a partir sem olhar para trás, a aceitar que a vida é o caminho e não um lugar. Entender que crescer é também um pouco solitário, um pouco silencioso, e muito difícil de identificar quando acontece. Crescer é apenas seguir em frente, sem ficar batendo o pé esperando que a vida seja aquilo que desejo e não aquilo que é.

E no azul sem fim do céu, alço o voo que havia planejado antes, muito antes, quando resolvi abandonar a terra firme. E se bem que a terra me prendia e pesava, agora, que o alto é realidade, o frio me invade e estremeço. A pele quer esse vento passando apressado, mas o coração hesita. Sempre ele, sempre ele querendo ficar, querendo tudo, querendo mais. O querer é uma prisão cheia de presentes.

Quando escurece e o dia finda, como todos os pássaros, encontro um pouso tranquilo para descansar. Lá embaixo tudo continua como antes. Os gatos na janela, os cães latindo para qualquer ruído, as pessoas seguindo sua vida nas rotinas que quiseram. Consigo ouvir a música que toca na minha casa, no mesmo lugar. De noite até os macacos ficam quietos. Olho para mim, deitada na noite longa, esperando um milagre, sonhando com o porvir. Coitada de mim: não existe porvir. Enquanto ajeito as asas para me aquecer e equilibrar, sorrio por dentro. Não existe porvir, pequena.


sábado, 21 de abril de 2018

As bruxas estão de volta


As bruxas estão de volta. Agora voando soltas e leves pelas aldeias físicas e virtuais. Isso mostra que as coisas andam mudando para o lado do feminino, embora haja um nítido movimento de reatividade. É que o feminino, diferentemente do masculino, não é contundente, não compete, não entrincheira nem revida. Claro, o verdadeiro feminino. Mas era de se esperar que, depois de tantos séculos de dominação patriarcal, fosse natural uma certa contaminação desse padrão e que mesmo as mulheres assumissem o papel masculino para conseguir certa projeção.

Sempre me intrigou como é que esse padrão masculino era perpetuado se quem educa e passa a ideologia dominante é a mãe, uma mulher. Cadê a bruxa? Como é que ela não via que estava sendo usada para manter o status quo? Então, um dia, ouvi de uma amiga que, certa vez, flagrou o marido passando a mão na empregada e, imediatamente, mandou embora a moça. Fiquei intrigada: por que a moça e não o marido? Independente da reação dela, se aceitou ou não, foi ele que tomou a atitude. Mas a ideologia patriarcal declara que sempre, nessas circunstâncias, a mulher – e sobretudo a mulher solteira – é responsável pelos descalabros do homem macho. Sim, porque macho que é macho não pode perder uma oportunidade de mostrar quem domina.

Comecei a entender. É essa a forma de manter todas as mulheres sob o regime patriarcal: colocando-as umas contra as outras. É verdade que bruxas e núcleos familiares fortemente matriarcais protegem suas mulheres. Mas somente as suas. Qualquer outra que se aproxime é um risco, representa um perigo, é desarmoniosa, desagregadora. E assim, essas mulheres, umas contra as outras, olham-se com desconfiança. Elas vêm roubar seus maridos e filhos. Elas seduzem, articulam, manipulam.

O pior é a figura masculina desse desenho: ou um grande tonto ingênuo, ou um grande palerma, no final e no mesmo, infantilizado, que não sabe ou não pode ou não quer resistir aos encantos sedutores dessas megeras, que em outros tempos também eram chamadas de bruxas. Assim, colocando os homens na posição de vítimas, precisando de proteção que só mulheres conseguem dar, invertendo os papeis, o patriarcado coloca a mulher como salvadora e algoz de si mesma. Ao invés de reconhecer o aprisionamento de um tal papel, ela se vê atacando outra igual.

Não é que o machismo é perpetuado espontaneamente pelas mulheres – embora algumas o façam para obter vantagens, como, aliás, muitas pessoas em geral fazem – mas é o que resulta quando uma mulher põe a culpa em outra pela infantilidade dos homens. Sempre que você souber de um homem casado que se envolveu com outra mulher saberá que a culpa é dela. Claro, ela é solteira, não tem nada a perder e ele, que tem família, compromissos, responsabilidades, não pode resistir a essa tentação.

O que, talvez, as bruxas estejam descobrindo novamente é que sim, elas são tentadoras, sim, são encantadoras e poderosas, podem sim, virar a cabeça de outra pessoa porque dominam os sentidos, porque reinam no oculto, porque sentem além dos axiomas, e pressentem os caminhos que devem seguir para atingir seus objetivos. Mas também, talvez, estejam agora entendendo que não lidam com um tão frágil homem.

Não se trata de uma declaração de guerra. Apenas um reconhecimento de que o inimigo não é outra mulher, mas uma ideologia profundamente arraigada na religião e nos papeis desempenhados em sociedade, perpetuados pela invenção do casamento, do sentimento de propriedade que se estende às pessoas da família e do entorno.

As bruxas talvez deixem de ser queimadas em praça pública – como ainda são hoje em dia – com a formação de novos núcleos familiares, sem a estrutura patriarcal, sem a dependência financeira dos membros (a mulher trabalhar fora é uma falácia financeira), sem propriedades (que foram a contrapartida mais evidente para essas mulheres manterem o status quo).

Eu anseio por um mundo em que Camilles Claudels não sejam trancafiadas em manicômios apenas por manifestarem sua genialidade. E que tantas outras mantidas discretamente anônimas possam brilhar para além de seu papel de mãe. Para além de seu papel protetor e mantenedor. Para além dos limites impostos a todos os cavalos selvagens que foram levados para domesticação, em redondéis cor de rosa. As bruxas voltaram, e que voltem a ser apenas mulheres.

sexta-feira, 6 de abril de 2018

O agora e o sempre


Quanto tempo dura o agora? E quanto do que foi “antes” permanece nesse agora? Como seguir em frente, crescer, ampliar a consciência no que sou hoje sem o peso do que já foi e já fui? Como olhar para frente sem sentir o vento do que passou soprando na nuca, cochichando na orelha? Afinal, o que é ressurgir? Renascer? O que é renovar-se?

Eu consigo andar no mesmo caminho todo dia encontrando algo de novo nele, uma flor que não havia, um pássaro que voa, inesperado, com rabo amarelo e preto, um entardecer vermelho, uma lua escondida nas nuvens, mágica. Eu consigo ver diferente o mesmo livro já lido, consigo entender o que não havia entendido antes. Eu percebo a diferença entre quem já fui e quem sou hoje (penso que melhorei muito). Mas também sei que não mudei tanto. Mudei de casa, de profissão, de cidade para roça. Mudei meu paladar, passei a comer coentro, a gostar de cerveja, cachaça, deixei de comer carne. E ainda assim, continuo sendo a mesma, como um parafuso que gira e gira e vai entrando na madeira, parecendo diminuir.

Se eu tivesse que escolher um tempo que não existe, para mim, esse tempo é o futuro. Será? Quando será? O futuro é como esperar que o leite ferva: quando você vê, já derramou. Se você sair correndo, nunca alcançará. Se não fizer nada, já passou. Nunca chega. Não existe, é apenas uma possibilidade, um alento. É como acreditar em deus.

Mas o passado é algo que não é mais. Também não existe. O que sou é uma constante transformação, como o fogo que come a lenha para ficar tremeluzindo lindo e quente. A vida é um movimento, não um estado. É o vento que passa, o sangue que corre, o coração que vibra. A vida é um ritmo, a batida de um tambor, às vezes forte, às vezes nem tanto.

Se eu quisesse viver o presente, apenas o presente, esse agora que me acorda, me dá sentido, olhando para as pessoas que conheço, conversando com elas, como não me deparar com quem conheci um dia, em outro momento, e sim o que elas são agora? Quem são agora? O que elas mudaram enquanto eu não prestava atenção? O que ficou diferente? Se eu mudo a todo instante, elas também mudam. Mas o que sei eu do que mudou? Quando penso em alguém, penso em quem conheci, alguém que já não é mais.

O meu presente – o agora – é uma mistura de quem sou e o que penso que é o mundo que passou, posto que tudo muda. Você é uma imagem que conheci, e não a pessoa que é agora, porque eu ainda não sei quem você passou a ser. Sempre que aprendo uma coisa, ela já não me serve mais. Quando aprendo a lidar com uma situação, ela já acabou. Quando aprendo a lição de um relacionamento, e estou pronta para seguir em frente, já não estou mais no mesmo trem, vejo pela janela a estação ficando para trás.

Então, se sou também como o rio que passa, sempre outro por baixo da ponte, sempre é outra a ponte que vejo passar. Nada é igual, mas tudo se repete. Quando penso que atingi o mar, eis que estou presa numa curva, carregando tanta bugiganga que parece que fiquei ali, no mesmo tempo, sólida. No entanto, o rio é a curva, é o mar, é a nuvem, e é a queda barulhenta, fumacenta, que alisa as pedras, e não volta jamais. O rio é também a lágrima que escorre, e a boca que se enche de água só de pensar. O instante. O átimo. Aquele momento em que nem sei o que aconteceu ainda. Porque, quando sei, já parou de doer.

No momento em que penso, continuo sentindo, e assim, tudo se amplia, tudo se espraia e fica sem palavras. Mas, de tudo que passa e se move, de tudo que muda ou transcorre, de toda essa vida que se derrama como se corresse fora das veias, no mesmo sem tempo de entender, no ritmo vertiginoso do piscar dos olhos de brahma, eu procuro por um “porque”, por uma razão, eu procuro desesperadamente ter calma para não me perder, para responder à minha insatisfação com um movimento acolhedor, de aceitação e afeto, porque toda insatisfação é um motor de arranque, não é uma lição ou um aprendizado, é apenas uma energia que não pode ser ignorada. E talvez porque, por entre as brumas surreais que há em todo relacionamento, haja quem sabe uma mão estendida me esperando para ser descoberta.