Não vejo no ato de comer ou não carne uma questão ética.
Acredito que essa deva ser uma escolha e decisão de foro íntimo, da consciência
individual, como escolhas religiosas ou agnósticas. A meu ver, a questão ética
nesse caso está no modo como são tratados os animais para consumo humano: como simples
mercadoria.
Apesar de estarmos no século XXI, ainda promovemos guerras
religiosas, envenenamos o solo e a água com agrotóxicos, desmatamos florestas,
aceitamos sementes transgênicas e a propriedade industrial da semente, e
exploramos animais como se fôssemos os reis da criação, seres não-naturais,
beirando a ignorância a respeito de nossa própria natureza animal. Não está no
ato de matar para comer o ponto crucial, pois afinal não matamos o vegetal para
comer, ou o comemos vivo? Se matar para comer for um problema ético, teremos
que passar a comer alimentos sintéticos, tal como fazemos ao nos vestir. Ou devemos
apenas comer frutas – talvez os únicos alimentos que não custem a vida de um
indivíduo para se tornar alimento; mel, ovos, leite e derivados somente se o
tratamento dos animais para essa produção não promover exploração e dor.
Antes de
tudo, devemos retomar uma atitude respeitosa para com a natureza, para com a
vida. E, se humanizar for realmente um qualitativo, devemos humanizar nossas
relações com o meio, com o outro e conosco mesmos, relações essas totalmente
coisificadas pelo atual sistema econômico.
Temos justificado nossas atitudes predadoras com o argumento
de alimentar uma população mundial crescente, cuja demanda nutricional exige
produção intensa de proteínas. Os mesmos motivos justificaram o uso de pesticidas
e agrotóxicos nas lavouras, e a fome permanece. Confinamento e tratamento
abusivo de animais, para o abate ou produção de ovos ou leite (abelhas também
são exploradas para produção incessante de mel ou própolis), como resposta à
demanda por alimentos é mais uma forma que o capitalismo encontrou para ganho
de capital.
Assim, esses empreendedores massificam conceitos alimentares
preconizando a necessidade de proteína animal nas dietas, ratificando sua
importância na saúde através de modelos de consumo e padrões de comportamento (propaganda
que chega a colocar em risco a sociabilidade de um indivíduo que opta por ser
vegetariano, embora menos nos dias atuais). E, de repente, pessoas que são
obrigados a diminuir o consumo de carne em suas dietas por motivo de saúde se vêem
primeiro diante de um abismo (não terá opções) e depois, se conseguiram
ultrapassar esses limites externos, se vêem maravilhados por perceber que não
só há vida pós-vegetarianismo, como há uma abertura ilimitada para alimentar-se
com prazer.
A maior questão ética é o uso das mídias para reforçar a ideia
de que a proteína animal é um ícone da boa alimentação. Porque se o consumo da
carne – e de resto, toda proteína – se reduzisse ao cume da pirâmide como
afirmam os nutricionistas, não haveria a necessidade de produção intensa desse
insumo, diminuindo a importância de sua exploração. Não haveria justificativa
para tratar animais como coisas. Não precisaríamos dedicar tempo dos nossos
filósofos para pensar se animais têm ou não alma, se sofrem ou não, se têm
direitos iguais ou relativos. Deixaríamos essa questão para as diversas
religiões ficarem debatendo e guerreando para decidir quais as que estão
certas. Aliás, é uma outra questão entender porque o vegetarianismo não é proposta
pelas religiões que pregam o amor.
Se o homem chegou a desenvolver o córtex cerebral
privilegiado de hoje graças à evolução do seu modo de alimentar-se, com certeza
pode também desenvolver-se de caçador a um ser em harmonia com a natureza, de
predador a autoconsciente, mantendo-se como sujeito de sua trajetória de vida
sem necessidade de interferir ou impactar a trajetória de outros seres
viventes. Mas talvez para isso precisemos processar uma mudança na forma como
vivemos em sociedade, inventar um novo sistema econômico, que seja socialmente
justo, ambientalmente sustentável, e bom para todos, inclusive animais.