terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

Comer ou não comer carne?

Não vejo no ato de comer ou não carne uma questão ética. Acredito que essa deva ser uma escolha e decisão de foro íntimo, da consciência individual, como escolhas religiosas ou agnósticas. A meu ver, a questão ética nesse caso está no modo como são tratados os animais para consumo humano: como simples mercadoria. 

Apesar de estarmos no século XXI, ainda promovemos guerras religiosas, envenenamos o solo e a água com agrotóxicos, desmatamos florestas, aceitamos sementes transgênicas e a propriedade industrial da semente, e exploramos animais como se fôssemos os reis da criação, seres não-naturais, beirando a ignorância a respeito de nossa própria natureza animal. Não está no ato de matar para comer o ponto crucial, pois afinal não matamos o vegetal para comer, ou o comemos vivo? Se matar para comer for um problema ético, teremos que passar a comer alimentos sintéticos, tal como fazemos ao nos vestir. Ou devemos apenas comer frutas – talvez os únicos alimentos que não custem a vida de um indivíduo para se tornar alimento; mel, ovos, leite e derivados somente se o tratamento dos animais para essa produção não promover exploração e dor. 

Antes de tudo, devemos retomar uma atitude respeitosa para com a natureza, para com a vida. E, se humanizar for realmente um qualitativo, devemos humanizar nossas relações com o meio, com o outro e conosco mesmos, relações essas totalmente coisificadas pelo atual sistema econômico.

Temos justificado nossas atitudes predadoras com o argumento de alimentar uma população mundial crescente, cuja demanda nutricional exige produção intensa de proteínas. Os mesmos motivos justificaram o uso de pesticidas e agrotóxicos nas lavouras, e a fome permanece. Confinamento e tratamento abusivo de animais, para o abate ou produção de ovos ou leite (abelhas também são exploradas para produção incessante de mel ou própolis), como resposta à demanda por alimentos é mais uma forma que o capitalismo encontrou para ganho de capital. 

Assim, esses empreendedores massificam conceitos alimentares preconizando a necessidade de proteína animal nas dietas, ratificando sua importância na saúde através de modelos de consumo e padrões de comportamento (propaganda que chega a colocar em risco a sociabilidade de um indivíduo que opta por ser vegetariano, embora menos nos dias atuais). E, de repente, pessoas que são obrigados a diminuir o consumo de carne em suas dietas por motivo de saúde se vêem primeiro diante de um abismo (não terá opções) e depois, se conseguiram ultrapassar esses limites externos, se vêem maravilhados por perceber que não só há vida pós-vegetarianismo, como há uma abertura ilimitada para alimentar-se com prazer.

A maior questão ética é o uso das mídias para reforçar a ideia de que a proteína animal é um ícone da boa alimentação. Porque se o consumo da carne – e de resto, toda proteína – se reduzisse ao cume da pirâmide como afirmam os nutricionistas, não haveria a necessidade de produção intensa desse insumo, diminuindo a importância de sua exploração. Não haveria justificativa para tratar animais como coisas. Não precisaríamos dedicar tempo dos nossos filósofos para pensar se animais têm ou não alma, se sofrem ou não, se têm direitos iguais ou relativos. Deixaríamos essa questão para as diversas religiões ficarem debatendo e guerreando para decidir quais as que estão certas. Aliás, é uma outra questão entender porque o vegetarianismo não é proposta pelas religiões que pregam o amor.


Se o homem chegou a desenvolver o córtex cerebral privilegiado de hoje graças à evolução do seu modo de alimentar-se, com certeza pode também desenvolver-se de caçador a um ser em harmonia com a natureza, de predador a autoconsciente, mantendo-se como sujeito de sua trajetória de vida sem necessidade de interferir ou impactar a trajetória de outros seres viventes. Mas talvez para isso precisemos processar uma mudança na forma como vivemos em sociedade, inventar um novo sistema econômico, que seja socialmente justo, ambientalmente sustentável, e bom para todos, inclusive animais.