terça-feira, 27 de agosto de 2013

Poesia não



Poesia dói como ser abandonado na maternidade pela mãe que morreu. Dói como deixar escoar todo sangue que há nas veias até que o braço murche e o olhar apague. Sobretudo, poesia seca a língua. Faz fechar os olhos apertados. Mergulha.

No encontro de duas palavras, apenas uma sairá inteira. O restante, tudo o mais, as imagens, os pesares, as rimas, dissonantes ou musicais, tudo o mais: fragmentos de um discurso inacabado. O mundo contado em vogais, intensas. O mundo em fagulhas.

Não.

A poesia tortura dolorida o peito feito lembrança que vem à tona repentinamente depois de um perfume, de uma cena, de uma música. Umedece a palma da mão. Corta. Silencia. Gato pacientemente olhando você de cima da mesa. Você em total devaneio e torpor. Consoante.

Olho pela janela como se eu mesma não fizesse parte da encenação. Palavra perdida, falada ao acaso, ninguém ouviu. O aceno que passou despercebido. Vão. Deixada para trás quando o trem partiu. Olho e não rabisco com o dedo a intenção do gesto no vidro nublado de calor. Respiração perto demais, o lábio perto demais.

A linha da mão estendida além da palma, da calma. Crua. Retesa. Intensa. Nenhuma prosa e toda poesia. Quem pode saber? Você, minha alma, a irromper paredes e brumas e retinas esquecidas. Quem sabe a forma? Desenho nu e torso. Amargo o gosto reflexo na garganta depois de tudo.

Os olhos pesados como o som oco e estrondoso das palavras escritas. De onde vêm não ouviram falar de seu colorido, de seu jogo de luz e sombra, da extenuante sensação de continuar abraçado mesmo depois que o braço se foi. Marcado feito tatuagem. Do calor de ferros em brasa. A pena que não há mais.
Na noite barulhenta e movimentada da rua, apenas o ressoar da respiração alheia palpitando no peito. Dias que escorrem. Noites que desvanecem. Farol em movimento branco tornando vermelho. Meus olhos. Meu silêncio.

Estricnina. Cianureto. Barbitúricos. Ardor de cachaça no esôfago desavisado. E a vida que passa pela janela do prédio em frente. Cristais pendurados dançando ao vento e fazendo música. Rodopio pelo espelho que encara. A poesia me salva. Labirinto. Poço. Vou seguindo à deriva no brilho que a luz da lua faz na água. Vou, segundo a lua nas ondas do mar aberto.  Não me siga. Meus passos mal disfarçam minha intenção. E desfocam. Não dançam.

Só a vida possível na pedra. Musgo a transformar toda dureza em macio tapete verde. No entardecer sem fim do mergulho, o vento frio do sonho. Não. A poesia me abrasa marcando o sentido. Haverá um sentido? Todos os sentidos da pele. Espinho fino e invisível avisando sua presença. Ah, poesia. Poesia, não.

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Queria me exilar do mundo



Tem dia que eu queria me exilar do mundo. Da vida. Ficar olhando o azul do céu como se ele fosse apenas azul do céu. Nada a ver comigo. Nada a ver com nada. Sonhar com nuvens. Ou nem sonhar absolutamente. Ficar impassível diante de tudo, não achar lindo, nem me emocionar, nem pensar, ou sentir. Ser como a rocha. A montanha. A água que corre no rio.

São dias que a vida faz parecer que tudo é muito, é demais. Um peso. O vento move os fios dos cabelos. As flores caem dos galhos. Pássaros voam ou cantam nas árvores. Tudo igual. E tudo muito além do que posso suportar. Uma nuvem me salvaria. Uma única nuvem se transformando no céu.

São dias de silêncio intenso. Como um gole de cachaça pela manhã, antes do café. Em que o meu nome não significa nada. Nem o verde inúmero da paisagem. Nem o cheiro de fumaça que exala da chaminé. Tudo que se movimenta está alheio a mim. Um sol fazendo sombra por trás. Eu queria apenas não ser.

A existência é algo difícil às vezes. Quais são os dilemas das árvores enormes e climáticas das florestas? Com o que se emociona um pássaro no seu interior? O que significam as janelas abertas de um casebre voltado para o mato? Apenas meu tino em desatino pensa nisso. Apenas meu cérebro incansável passeia por tudo. E hoje esse cansaço.

A vida por levar é apenas fruto de minhas decisões. Como a sombra que não existe sem luz. E tem dia que não queria entender nada, não saber de nada, não escolher nada. Ser menos complexa na vitalidade que me dá tônus, que me estimula. Ser uma só coisa, uma só saída, uma só direção. 

Tem dia que não queria ser deus. Não queria criar nada. Não me criar em nada. Apenas vicejar na vida que passa. Para onde? Para que? Sem sentido. Sem porque. Ficar invisível. Totalmente invisível. Não fazer diferença.  E acima de tudo, não pensar sobre isso. Não concluir nada. Nada. Pessoissimamente.

Ao invés, numa peça que me prega o destino, hoje sinto tudo em dobro, no máximo, no limite. Extrapolo o horizonte, explodo o peito além do fôlego, além das batidas descabidas do coração. Tudo numa intensidade muda. Jorrando como seria o sangue se não corresse em veias. A pele capturando tudo, o cheiro de tudo. O universo passeia por meus olhos em segundos. Para onde vou? Para onde quero ir?

Sem esperar respostas, viro a página para o pôr do sol. Quero ter a alegre inocência dos que nasceram ontem, perplexos e espantados com tudo, sem entender ou querer entender, sem precisar senão de um peito que os alimente. Quero o caminho do meio. Simples. Dar a mão ao balão de ar colorido que sobe sem pensar, balançando.

Nesses dias de muitos sabores e aromas, de um cardápio de cores sem tamanho, de um tapete de arabescos infinitos, nesses dias eles mesmos cheios de ar e luz, eu queria ser apenas a criança que há ainda. Distraída, descuidada, brincando com a formiga, um pouco de areia, concentrada. Imperturbável no meu sonho de viver.  Hoje, num tempo sem clima e sem estação, eu queria apenas não querer. Mas dá para viver sem querer?

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Tatuagem



Não. Eu não sei o meu nome, não sei qual o meu rumo. Sem documentos, sem sapatos, apenas sede. A boca seca. Um pouco de cabelo caindo nos olhos. E passos lentos sob uma postura firme. Sem direção. Ou sentido. Ou sinal aberto para seguir em frente. Eu e todos meus neurônios supostamente funcionando andando para lugar algum. Quem ganha não conquistou nada. 

Sei, meu nome é aquele que se perdeu no deserto sob o sol do meio-dia. Sem deixar sombra. Sem deixar rastros. O vento ininterruptamente desmarcando minha trilha. Quando não se vai a lugar algum, nunca se está atrasado, e nem perdido. Também não surpreende ninguém, ou faz feliz alguém. E quem quer a felicidade? Um amontoado de impressões abrindo a boca e mostrando os dentes? Não, não e não. Quem não canta a bola e não mostra a caçapa, não ganha nada.

Porque a vida não é uma coincidência. Não é um caminho à toa, tomado por sorte. A vida não aparece no espelho quando você apenas acorda e diz bom dia antes de abrir a torneira e lavar o rosto. A vida, sobretudo a boa vida, a vida que se espalha por todo lado e em todas as direções, a vida realmente grande, não está esperando no ponto, ou na esquina para que você dobre sem olhar e lhe caia nos braços.

A cada passo seguro ou não, a cada balanço dos pés no ar antes de pisar o chão firme, um a um, uma decisão ou escolha fará tudo mudar, girar, correr ou escorrer. Fará uma criança ou talvez uma história passageira. Deixará marcas ou apenas cicatrizes sem rosto. Permanecerá além do tempo e do espaço ou piscará duas vezes antes de apagar para sempre.

Enquanto isso, enquanto o dia não chega, na noite que atravesso, vou fazendo meu espetáculo. Leituras dramáticas. Gestos vibrantes. Passos de valsa. Sapateado, nariz pintado, e a voz rouca. Sob a luz de holofotes e o calor da cena, vou arrancando risadas, tropeçando e andando, e mantendo a cabeça ereta. Se tenho que flexionar, que seja o joelho. Se tenho que voltar, que seja o olhar.

Na distância que a cada dia fico de chegar em mim, vou deixando recados para quando enfim me encontrar. Um bocado de estrelas aqui, um acompanhamento sonoro de pássaros ali, vou deixando palavras, histórias, vou registrando cenas que já se foram, já não são mais, porque o tempo engana. O tempo não existe. Escrevo agora minha última frase antes de encontrar o vento do outro lado da porta. Escrevo no vidro embaçado por eu ter chegado tão perto, escrevo minha passagem por esses lados. Assim, amanhã ou depois, quando então eu voltar, saberei quem fui e o que fiz. Saberei apenas. E bastará.