Poesia dói como ser abandonado na maternidade pela mãe que
morreu. Dói como deixar escoar todo sangue que há nas veias até que o braço
murche e o olhar apague. Sobretudo, poesia seca a língua. Faz fechar os olhos
apertados. Mergulha.
No encontro de duas palavras, apenas uma sairá inteira. O
restante, tudo o mais, as imagens, os pesares, as rimas, dissonantes ou
musicais, tudo o mais: fragmentos de um discurso inacabado. O mundo contado em
vogais, intensas. O mundo em fagulhas.
Não.
A poesia tortura dolorida o peito feito lembrança que
vem à tona repentinamente depois de um perfume, de uma cena, de uma música. Umedece
a palma da mão. Corta. Silencia. Gato pacientemente olhando você de cima da
mesa. Você em total devaneio e torpor. Consoante.
Olho pela janela como se eu mesma não fizesse parte da
encenação. Palavra perdida, falada ao acaso, ninguém ouviu. O aceno que passou
despercebido. Vão. Deixada para trás quando o trem partiu. Olho e não rabisco
com o dedo a intenção do gesto no vidro nublado de calor. Respiração perto
demais, o lábio perto demais.
A linha da mão estendida além da palma, da calma. Crua. Retesa.
Intensa. Nenhuma prosa e toda poesia. Quem pode saber? Você, minha alma, a
irromper paredes e brumas e retinas esquecidas. Quem sabe a forma? Desenho nu e
torso. Amargo o gosto reflexo na garganta depois de tudo.
Os olhos pesados como o som oco e estrondoso das palavras
escritas. De onde vêm não ouviram falar de seu colorido, de seu jogo de luz e
sombra, da extenuante sensação de continuar abraçado mesmo depois que o braço
se foi. Marcado feito tatuagem. Do calor de ferros em brasa. A pena que não há
mais.
Na noite barulhenta e movimentada da rua, apenas o ressoar
da respiração alheia palpitando no peito. Dias que escorrem. Noites que
desvanecem. Farol em movimento branco tornando vermelho. Meus olhos. Meu silêncio.
Estricnina. Cianureto. Barbitúricos. Ardor de
cachaça no esôfago desavisado. E a vida que passa pela janela do prédio em
frente. Cristais pendurados dançando ao vento e fazendo música. Rodopio pelo
espelho que encara. A poesia me salva. Labirinto. Poço. Vou seguindo à deriva
no brilho que a luz da lua faz na água. Vou, segundo a lua nas ondas do mar
aberto. Não me siga. Meus passos mal disfarçam
minha intenção. E desfocam. Não dançam.
Só a vida possível na pedra. Musgo a transformar toda dureza
em macio tapete verde. No entardecer sem fim do mergulho, o vento frio do
sonho. Não. A poesia me abrasa marcando o sentido. Haverá um sentido? Todos os
sentidos da pele. Espinho fino e invisível avisando sua presença. Ah, poesia.
Poesia, não.