segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

Eu quero a salvação

Eu não vou mentir: tem horas que eu gostaria de ser salva. Assim mesmo, um príncipe ou um cavaleiro mágico, uma feiticeira ou um santo, alguém para vir em meu socorro e salvar minha alma, ela que muitas vezes se engana e toma direções erradas. Até é mais fácil falar dela – minha alma – na terceira pessoa, para quase não me identificar com ela.

Uma salvação fácil: acreditar que exista alguém disposto a me tirar de onde me encontro – numa encruzilhada – e que possa decidir por mim. É esse o maior fardo, o mais difícil da vida: decidir. Seguir em frente ou virar à esquerda? Apressar o passo ou parar para descansar? Pegar a descida ou a subida? Sigo pelas alamedas de sombras frescas ou permaneço ao sol? Eu queria muitas vezes um mapa para seguir, uma receita pronta, uma solução acabada.

Depois, relembro que já tive essas coisas todas às mãos. Herdei algumas, negociei outras, troquei a maior parte. A verdade é que, me identificando com o sujeito da oração, nunca me deixei passiva para acatar resoluções de outrens. Fui fazendo combinações mais ou menos ajambradas, costurando aqui e ali, um caminho com uma direção, chegando em algum lugar inesperado às vezes, às vezes não chegando em lugar algum.

Ainda assim, o mais difícil é estar só. Quando se escolhe, como eu escolhi, seguir seu próprio caminho saindo da estrada principal, pegando vias sem placas, apenas entendendo a direção, quase não se encontra outras pessoas caminhando junto. E quando encontra, é por pouco tempo, enquanto não surge nenhuma bifurcação ou trilha, ou algo incontrolavelmente desejável, interrompendo a caminhada, fazendo trocar de margem, atravessar uma ponte.

Eu juro que nesse exato momento estava esperando um milagre. Quem sabe uma visita inesperada? A batida na porta que dispara o coração, um pouco de medo, um frio na barriga, um salto quântico, uma tempestade carregando tudo, um buraco negro sugando toda a luz vorazmente, e eu em turbilhão sendo carregada para uma praia distante, desconhecida, com uma areia grossa, água cristalina molhando meu corpo, morna, até que eu desperte para uma nova vida.

Mas a vida essencialmente é uma escolha e não mágica. Tem lá seus encantos, muitos às vezes, às vezes nem tanto. O encanto é quando abro a janela e deparo com o dia, aberto e aceso pelo sol da manhã, esplêndido como um cavalo alado rompendo a paisagem. Momentos doces como tomar café com pão e manteiga. Como uma lembrança que um perfume traz de repente de volta. Como um sonho.

A vida e o sonho. Uma é a carruagem, o outro o cavalo que vai puxando tudo, rumando para além da estrada. Abrindo clareiras onde era só picada na mata. Gosto de pensar na vida assim, romântica e idealista, como quem desenha com carvão na parede dos muros, escrevendo o próprio nome, sem sujar os dedos.  E depois, ver a chuva lavar indolente com a água escorrendo, devagar e fria. Não dói ver perder tudo pela calçada, o que dói mesmo é a lembrança do que foi lindo e não é mais.

Além do milagre das soluções sem escolhas, também queria que fosse para sempre. Queria que tudo durasse o tanto que fosse necessário para nunca esquecer como foi, nunca esmaecer a cor vibrante inicial, nunca, nunca, nunca perder o caminho de casa, deixar de voltar, deixar de querer. Querer é sonhar. E o sonho é um combustível infindável. Move mais que combustão, explode mais que hidrogênio, e mantém a chama de uma vela eternamente acesa no altar da deusa.

Preciso do sonho porque preciso crer. Preciso acreditar em cada pedra do caminho, em cada gota da chuva que cai, em cada momento em que a garganta secou. Preciso do fôlego que sonhar me dá só por existir. Só por eu sonhar.

Sim, sonhar o que é? Talvez um ar novo entrando pela janela, entrando pelas narinas até quase sufocar. Ou um banho de cachoeira, gelado e intenso como um abraço. Sonhar é não aceitar apenas o que amanhece, mas desejar que a tarde glorifique esse amanhecer. É ansiar pela escuridão da noite acompanhada de estrelas. É como comer suflê de chocolate: delicioso e quase nada.


Na minha noite, eu queria poder me mostrar assim frágil e despreparada a tal ponto que a vida fizesse um sinal para o motorista e me deixasse contemplar um pouco mais antes de dar a partida. Não. A morte não é o fim. O fim é deixar de sonhar.

sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

Escrever me reinventa

Comecei a escrever quando tinha 12 anos. Não porque gostasse, e gostava, mas porque precisava. Era um jeito de me expressar, eu, que era tão tímida e completamente convencida de que esse perfil não combinava comigo. Era um jeito de me mostrar de um modo que era possível, terceirizado, distanciado, desapegado. Nessa época eu muitas vezes levantava no meio da madrugada para escrever na sala, algumas vezes sem acender a luz para não acordar minha mãe que, ainda assim, levantava, assustada no início, e ia ver o que era. Com o tempo, ela passou a achar normal, embora por via das dúvidas, tirasse as chaves da porta. Ela nunca sabia se eu estava sonâmbula ou insone.

Escrever sempre foi uma saída perfeita para as emoções desencontradas demais dentro de mim. É que emoções não correm em circuito fechado, como sangue. Têm uma válvula propulsora própria, em cada neurônio da pele, em cada sentido e em todo sem sentido que a vida possa ter. Escrever é como passar um pente no cabelo de manhã, antes mesmo de você tentar saber quem é. Antes mesmo de entender porque.

Escrevo a cada momento que preciso, mais fácil do que ir comer quando estou com fome, ou mais cotidiano e rotineiro do que ir dormir quando já parece muito tarde. Me alimenta mais, me relaxa muito mais. Às vezes dá para perceber claramente. Mas nem sempre. Porque escrever é insólito. É como fechar os olhos quando criança para se esconder. Ou rezar para ter dinheiro. Ou dizer “vá embora” quando quis dizer “eu te amo”. Escrever é para os que não sabem.

E eu não sei nada, nada. Eu não entendo nada. Por que mãos espalmadas e perplexas quando o que queriam era entrelaçarem-se? Por que bocas crispadas e duras quando apenas um sorriso salvaria tudo, o dia, o momento? Por que os olhares se desviam para tentarem desesperadamente não dizerem o que estão dizendo? E por que derramar a água do chá ao pé de quem traz a erva que lhe daria sabor?
E por não entender, as palavras escorrem dos meus olhos e se prendem sob a língua, a boca cheia dágua, afogando-as. Eu quero dizer, mas não digo. Não sei como dizer. Não sei o que quero dizer. No final, sobra um pouco de gosto pegajoso e deserto insinuando que haverá continuação, que não foi possível escorrer tudo. E a sensação de liberdade disparando o coração.

Talvez eu seja apenas viciada nessa coisa adrenalinada que é expressar uma emoção, não com clareza, mas como porta que se abre de repente com um vento, com uma chuva, com um susto.
Com o tempo eu me deparei com o dizer alheio. Descobri que escrever era como sentir o que não precisava viver, assim como se contasse da sua dor, do gosto que você sentiu quando experimentou, da lembrança que você tinha quando apenas abriu os olhos e percebeu que sonhava. Comecei a entender que a palavra pode funcionar como uma vacina, um antígeno, algo que penetra a veia, inocula o sangue, e volta através de um risco no papel branco, trazendo na boca que conta ou lê aquilo que viu quando esse sangue chegou ao coração.

Escrever, então, passou a ser a forma como eu passei a viver o que não era minha vida na linha da minha mão. Era a linha da vida do outro. A palavra me fez cúmplice. Passei a enxergar a luz do dia através das lentes de quem me lia. Eu dizia: eu, e na verdade alguém se percebia nesse eu. Estendia a mão e tocava os dedos daquele que segurava o papel, daquele que corria o monitor no texto que me espelhava. Havia tristeza nos olhos, e eram os meus que se umedeciam. Abria um sorriso no rosto, e era alguém que me sorria. Demorou para me desembolar daquela trama. Enroscada na minha pele corria um fio de tinta que contava uma história que não era a minha.

Mas o que é meu, de fato, quando olho pela vidraça da janela e conto o que vejo? O que é do outro, quando descrevo sua mão balançando sozinha, inútil, para aquele que já se virou e se foi, deixando-o, o queixo um pouco caído, a boca um pouco aberta, o olhar esperando um último olhar? O que é seu, quando digo que também eu fiquei um dia sozinha, a mão vazia, sem lugar, e o tempo pareceu parar para sempre?

Na dor que expresso talvez você sinta um pouco o aperto no estômago, uma fagulha fina e curta correndo pelo umbigo, porque a dor une tanto quanto a felicidade. Porque o sentimento é um mar juntando todas as praias numa só, todas as alegrias numa só. Porque basta esticar o braço para tocar o rosto marcado pelo tempo, pela vida, o rosto que é meu, que é seu, que não é de ninguém e é de todo mundo. Porque a emoção é como o ar que circula pelos meus pulmões e no seu, levando de um para o outro o calor dos nossos corpos. E porque a palavra é aquela parte do nosso corpo que conta nossa história.

A minha palavra entrelaça sua frase numa só respiração e, assim, vou me recontando em outra, vou me escutando em você, me refazendo no seu gesto que me desfaz. E depois, ah, depois sim, vem o silêncio apaziguador, como um abraço apertado. O silêncio macio e morno, purificador, do gozo. O silêncio do eu sou você. 

Publicado originalmente para o portal nCiclos:
http://nciclos.com.br/escrever-me-reinventa/

quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

A vida sem traves

Não acredito que deus tenha colocado no meu campo duas traves e esteja esperando eu acertar o gol. Antes, prefiro acreditar que ele não existe.  Com tanto espaço, com tantos lados pra eu poder seguir, ele não estaria esperando que eu desistisse da liberdade por um possível prêmio do outro lado da rede. Desistir de sonhar pra procurar acertar um desafio imposto.  O que me desafia de verdade é eu não me perder de mim, de me entender quem sou. Se ao final eu descobrir que não sou mais do que um átmo de sua consciência ou se me deparar com não haver um deus, agora não me importa. 

Se ao final da vida eu perceber que apenas percorri um campo andando em círculos para lugar nenhum, já terei sabido mais sobre mim do que sei hoje. Porque o que sei é apenas a caminhada, o passo que dou. Hoje muito mais feliz que antes, do que tudo, e isso faz sentido pra minha vida. 

Não acredito na dor, no difícil, no estreito, na carência ou na tristeza. Não acredito que seja preciso sofrer para merecer uma vida melhor, depois. Depois quando? Quando a vida começa senão no agora? Eu não saio de férias depois de trabalhar árduo e pesado. Minha alegria é cotidiana, leve e quase rude. Quase rústica na demonstração de sua simplicidade. O que me traz alegria? O vento fazendo arruaça nas folhas das árvores, os gatos deitados sobre minhas pernas, haver vacas pastando do outro lado da cerca, amigos me mandando notícias, mas também o fato de ter lidado com um desequilíbrio emocional, ou de ter resolvido um problema operacional, ou de apenas ter tomado consciência da falência possível da eficiência.

Não acredito na permanência da dor, ainda assim, vivo com profundidade até mesmo a dor alheia, nas palavras expressas em um livro, no olhar que procura apoio ou solidão, no silêncio sentido, na dor que não reclama ou na que brada, eu sinto como se fosse no meu estômago, precisando represar o diafragma, não controlando lágrimas nos meus olhos. A dor me maltrata mesmo que não seja minha.

A felicidade ensina também. Ensina a agradecer, a aproveitar a oportunidade que não causa nenhum dano a outrem, e, sobretudo, que o amor é a supremacia absoluta dos sentimentos. Quem está feliz não cria confusão, não vai fazer mal a ninguém. Simplesmente porque felicidade não é um estado do ego, que se compraz pelo orgulho, vaidade. É um estado que se alimenta do amor, dar(-se).

Esse dar-se é muito ambíguo e parece até abstrato, mas não. É um pouco não fazer nada de vez em quando. Ficar olhando a chuva cair. Ler um livro ou plantar uma muda. Escrever uma poesia. Sim. Escrever poesia – ou ler – é a coisa mais inútil que alguém pode fazer, e por isso a mais bela. Não há beleza senão no supérfluo, no vazio, no inútil. Beleza, ela mesma para nada.

Para haver espaço na vida para o belo, é preciso de vez em quando não fazer nada. Não esperar nada. Não ter o que falar ou o que pensar. Um pouco do silêncio que a música impõe (gentilmente). A vida carece desse elemento feminino, hoje mais do que nunca.

Não há mais lugar para o lixo, não dá mais para continuar sujando a água, contaminando sem limites. A eficiência do mundo moderno está entupindo os rios, destruindo florestas, poluindo mares. O sucesso de alguns põe em risco a vida do planeta, e a atual ordem econômica é mais excludente do que já foi em toda a história desse homo sapiens – apenas porque hoje temos tempo para entender a falácia do modelo. O tempo é o principal inimigo da ordem estabelecida porque permite reflexão, contemplação, consciência. E é por esse mesmo motivo que os mantenedores do status quo vivem declarando em alto e bom tom que o mundo não pára, que não se perca tempo (parando, pensando, sentindo).

Hoje eu não estou disposta mais a jogar esse jogo com traves e tempo marcado. Hoje quero a liberdade de tempo. Eu quero o enquanto. O encanto.