quarta-feira, 15 de setembro de 2010

O que fortalece uma união

Fico pensando que o que fortalece uma união, o que faz dela ser ou não importante para a vida de cada pessoa envolvida nela, é sua capacidade de passar pelas coisas boas e enfrentar problemas. Quando tudo é bom um problema é um grande problema. Porque não é fácil abandonar suas violetas na janela para cuidar de uma roseira doente, mas é preciso. É preciso ver a doença como a margem de um rio: retém a água e a corredeira, é de pedra ou areia, mas faz um canal para que ele siga seu caminho. As dificuldades não são pedras no caminho. São pontos de parada na caminhada. São momentos de reabastecer, de se reorganizar, de se refazer.

Não obstante, adversidades para mim são tão impactantes que me fazem perder o apetite. Acho que deve ter uma lição para aprender, acho que estou fazendo alguma coisa errada. Acho sempre que tenho que me curvar para essas dores. Então, uma parte de mim, indomável, selvagem como um tigre assustado, reage quase à loucura a essa atitude. Quase me parto em duas, me fragmento, duvido de mim. E, de joelhos ainda, não rezo, fico olhando para meu umbigo rompido de um parto que queria ter interrompido. Que difícil ainda é viver.

Custo a acreditar que exista uma relação humana que esteja isenta de conflito. Era tudo que eu queria, mas não consegui ainda ver nenhuma que fosse ininterruptamente tranqüila. E se puser o tempo como ingrediente, fica então mais distante. Harmonia e tranqüilidade são coisas diferentes. Não vejo falta de harmonia em relações com conflitos, com momentos tensos, com experiências de viés. Porque acho natural que haja conflito, discordância, distensão, em relações realmente abertas e intensas.

Harmonia é querer a mesma coisa mesmo quando se pensa que o como seja diferente. É estar de bem quando passou o dia todo sem comer, trabalhando muito e resolvendo uma série de pendências, muito stress e frustrações, junto com boas notícias e ovos quebrados por descuido ou força demais, e poder sentar no meio de tudo isso e, ao olhar para o outro, que também passou por tudo isso, comentar que a lua está especialmente linda essa noite. Não é fácil reconhecer o pessegueiro florido, intensamente florido, no fundo da noite quando chega em casa. Mas é isso que faz a diferença entre ficar na rua e voltar para casa.

Sei disso. Fico sempre chocada com minha falta de habilidade em viver coisas em que acredito. Falo como se fosse a primeira a ser a mais harmônica na face da terra. E, no entanto, minha natureza ígnea rompe o peito a cada tapa na face, tentando desesperadamente manter o controle sobre tudo, sobre a dor.

Apesar disso, sei também que não sou bipolar ou louca por todas minhas contradições. A vida mesma é tão contraditória. Todo esforço para a vida é um passo para a morte. A vida pede oxigênio e o oxigênio oxida, destrói. Como o fogo que consome o ar para ser labareda. Imagine, então, a convivência com outra pessoa, um outro universo complexo e paradoxal como você, com opiniões próprias, com experiências próprias e que quer seu lugar ao sol tanto quanto você. Não me refiro à atitude de competição, de conquista. Pode ser dentro da cooperação, da parceria sincera, da vontade de estar junto sempre e para o resto da vida, de querer mostrar as coisas boas que aprendeu e as coisas erradas que consertou ou aprendeu também. Mesmo dentro de toda essa harmonia – não será harmonia o querer compartilhar sinceramente o bem e o mal que fez? – a complexidade de cada um encostada na complexidade do outro é como o encontro de duas estrelas, de duas supernovas, de duas galáxias. É a contradição de um muito perto da contradição do outro. É lindo quando o encontro reúne pontos fortes de cada um. Mas é um estrondo quando reúne pontos fragilizados, escuros, desconhecidos. O tempo promove todos esses encontros, os dois tipos, ou mais se houver e puder ser. O tempo potencializa as possibilidades. E o tempo não é senão a vida que passa.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Eu sei o que é ser um anjo caído

Eu sei o que é ser um anjo caído. Aquele que foi expulso do paraíso. Aquele que tropeçou na própria asa e, ao invés de voar, foi ao fundo, caindo, caindo, sem ter fim. Sei o que é ter experimentado a alegria do infinito e depois se exilar para um quarto escuro.

Mas não sou anjo, bem sei. Sou apenas uma tentativa de metáfora. Será que deus faz poemas com as palavras que inventou? Talvez eu quisesse ser um poema divino e fiquei no meio da frase. No meio do caminho.

Agora, na companhia apenas do vento, vou tentando me reerguer. Vou andando mesmo, já que não me sobraram asas. Ontem colhia frutos do pomar mais doce que havia e hoje, hoje morro de pena de mim de não ter sabido resistir ao fruto proibido.

Não soube resistir à minha natureza dura e viril como uma flecha seguindo seu rumo em arco. Faço curvas como se fosse macia, mas os olhos fixos num horizonte distante. Sei caminhar e sei ficar quieta, só não sei a hora de um e de outro. E para tudo tem hora. Tem o tempo certo e o tempo errado.

Olho pela janela nesta noite que não acaba mais. Lá fora o barulho do vento pelas copas das árvores ou algum ruído pelas folhas secas do chão vão me atormentando como se algo fosse acontecer que não me fará bem. Espero o baque mas não me preparo. Não sei me preparar para sofrer.

Penso que meu gato, sozinho lá fora, pode estar em apuros. Então, como se adivinhassem meu pensamento, os cães latem. Se só eu caí essa noite, então, talvez o gato esteja apenas caçando como todos os outros. E os cães estejam apenas latindo, que é o que sabem fazer.

Minha dor eu a transformo em palavras para que não rolem pelo meu rosto em forma de lágrimas. Não quero emocionar mais do que já me emociono, exagerada. A dor de haver céu para voar e eu sem asas. Eu, que já vivi de bolhas de sabão, agora tenho pedras no bolso, mas não vou me afundar no tamisa.

Sinto todas as células do meu corpo como se elas repentinamente tivessem encolhido e pesado. Só minhas pálpebras não se rendem ao peso da hora e não me dão descanso. Ao invés, me fazem cismar sozinha como alguém que perdeu o trem e ficou na plataforma vazia. Vazia e silenciosa.

Vou sentir falta do paraíso, claro. Quem se acostumou com néctar demora para aceitar mingau. Se bem que há daqueles mingaus feitos com tal amor que abraça e aconchega sem estar perto. Não é deste que falo. Falo daquele que é fácil de engolir, mas não tem gosto de nada nem tem forma de nada. Apenas um amanhecer sem sol. Apenas a vez do outro ganhar e você pagar.

Agora que o sono me vence aos poucos, me derruba ainda mais, vou deixar que a gravidade faça seu papel sem resistência. Vou horizontalizar, eu que perdi o horizonte vou me fazer de fresta de luz. E assim ficar, um pouco longe, um pouco sem sentir para me proteger. Vou fazer de conta que não é comigo e vou abrir a janela. Mas amanhã, agora vou somente me deixar vencer pelo cansaço. Vou me deixar sozinha.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Quando penso nas relações

Quando penso nas relações entre as pessoas, minha impressão é de que tudo que move os relacionamentos, sejam quais forem os motivos, é o poder, muito pouco a compreensão, muito pouco a cooperação. As relações se fazem por laços de poder. Quem pode mais. Mandar sim, pedir jamais, porque pedir é expor sua fragilidade.

Fui muito controladora outrora. Hoje delego o que posso. Pensava que não podia ser frágil, sensível, não podia mostrar meus defeitos. E então era assim, no recôndito da minha vida escondida, imaginada, eu era herói, forte e destemida. Para fora do meu casulo, eu era invisível, encolhida, tímida. Detestava minha timidez como se fosse um defeito. Então, tinha tantos amigos e divertidos que nem sei dizer quem era eu.

Eu já quis ser perfeita. Não admitia errar duas vezes a mesma coisa. Tentava ter sob controle todas minhas emoções. Em vão. Elas simplesmente me dominavam e me submetiam. Quando pensava que a situação estava controlada, estava lá fazendo papel de besta. É sempre assim. Você tenta desenhar tanto sua imagem que acaba vítima de si mesmo. Marionete de si mesmo.

Fui assim montando uma auto-imagem a tal ponto desencaixada que um dia me desconheci. Me perdi de mim. Olhei no espelho e não sabia quem era aquela figura que me olhava firme e desconcertante. Deprimi. Mergulhei tão fundo que cheguei a perder o ar. E da relação de poder que me movia, fui ficar do lado dos desempoderados. Eu nunca tinha me identificado com a vítima e lá estava eu, deprimida, sem forças, sem vontade de viver ou de morrer. Sem.

Não foi fácil aceitar o que passava. Nem foi fácil tomar uma decisão diante de tanta falta de convicção. Mas parece que estar vivo tem um fio de ouro invisível que nos faz acordar mesmo quando estamos morrendo de falta de vontade e por ali, como um tubo de glicose no sangue, vai brotando sem ser percebido um certo ânimo ou reação até conseguir que um braço ou uma perna responda e se mova.

Eu quero relações iguais. De iguais para iguais. Onde as pessoas possam dizer sem medo o que sentem sem se sentirem ridículas. Que nunca pensassem que o riso que provocam seja motivo para se sentirem palhaças. O riso é o primeiro passo para a soltura, para a espontaneidade. É o primeiro traço de que as coisas estão soltas, simples. O simples é tão leve.

Há alguns anos me mudei para uma cidade pequena em busca de uma vida mais simples. Quando me perguntaram o que era uma vida simples, não soube explicar. Hoje sem nem pensar qualifiquei o simples: leve. Leve como a nuvem que passa, o vento que passa, o rio que passa. Leve como a vida que não precisa doer, que não precisa pressionar, não precisa mandar.

E a vida? Talvez não seja mais que um modo de aprender a aceitar com firmeza e não com resignação as coisas, os fatos, as pessoas que passam por nossa vida. A trama do tecido que interlaça tantos nós e ainda assim é fino e delicado. Macio. Por que é tão difícil a vida em comum? Seja ela no trabalho ou em casa. A vida que se passa em conjunto, junto, íntimo. A intimidade é desconcertante. Ela parece sempre abrir uma cortina para o palco de uma guerra. E eu queria tanto a paz. A paz de saber que faço o melhor. Que tiro o melhor de mim. A paz de saber que o dia que passa é a vida que se ganha.

Sei que meu tom é de insatisfação. Mesmo assim, agradeço. Agradeço ter vivido até aqui para poder aprender com a beleza da natureza, das montanhas, dos riachos que correm seguros e gelados, aprender que se há beleza para ser vista é porque para ela fomos criados e, como ela, assim somos. Nada devendo a nenhuma cachoeira ou regato. Leves, em paz e belos.

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Já amei muitas pessoas

Já amei muitas pessoas. Muitas delas ainda amo, outras tiveram data certa e passaram. Tem gente que não lembro o nome. Outras lembro do perfume, da música, do jeito de olhar, do sorriso, do brilho ou da tristeza. Lembro de como foi passar pela minha vida, ou da minha na delas. Lembro como se fosse ontem, como se fosse agora há pouco. A memória é uma sensação. Lembrar é como viver de novo. E é novo de fato, porque o que se vive uma vez é uma coisa, mas viver na lembrança é outra vida. Tudo pode ser melhor ou pior. Tudo pode ser recontado diferente, mais lindo ou mais feio.

Eu prefiro lembrar o que é lindo. Do que me traz um sorriso espontâneo e instantâneo no rosto e nos olhos. O cheiro que remete a uma emoção, a foto que recorda uma ação, a música que lembra uma atitude. Tantas coisas que já fiz e deixei de fazer. Tantas pessoas com quem compartilhei emoções.

Acho que estou nostálgica. Deve ser a época do ano. Aniversários, meio do ano, a vida que passa pelo fio do horizonte. Consigo ver o sol se pôr em mares que já fui, em montanhas que já passei e na fronte de quem fica por mais que o tempo passe.

Gosto da vida que vivo hoje, sem detrimento do que já vivi. Já me arrependi do que não fiz e me critiquei do que fiz por fazer. Mas do que fiz porque acreditei, errado ou não, não me arrependo. Não me arrependo das dores que causei em mim, em outrem, daquilo que não tinha consciência. Já quis ser perfeita, já quis não errar nunca. Mas hoje não. Hoje aceito o que sou e fui. Aceito meus enganos, desenganos, desencontros. Podia ter chegado mais cedo, podia ter ido embora. Podia ter esperado mais ou podia ter esquecido. Mas não fiz. Quem eu era agia assim.

Tudo que fiz ou deixei de fazer me fizeram quem sou hoje. E quem sou me alegra, me deixa feliz só porque sou eu. Eu, que já fui tão triste, que já fui tímida, que já fui inteligente como forma de me disfarçar. Tenho prazer em ser o que sou. Até quando hesito não me irrito como outrora. A vida vale pelo que vivemos e não pelo que queremos, apenas. Vale pelo que sonhamos e não pelo que realizamos. Vale pelo que dá coragem não pelo que dá medo. E tive muito medo tantas vezes. Medo de viver foi meu último medo. Mas passou. Doeu, deixou marcas, mas passou.

Ter medo de viver é pior que ter medo de morrer. Morrer é simples. Viver é complexo. Viver tem decisões, tem ambigüidades, tem acertar ou errar. E dá para errar 99 vezes e acertar apenas 1, assim mesmo viver é melhor que sonhar. Com tudo que pode ser cavar um buraco para fazer um castelo ou para se enterrar.

Amei e amo. Não tem nada que valha mais a pena do que amar sem medo. Sem susto. E eu amei muitas pessoas e amo ainda. A vida vale pelos amores que se vive. No plural ou singular.