Estou hoje vivendo dessas memórias incrustadas na pele, na
retina dos olhos fechados, como se o tempo não existisse, ou deixasse de fazer
sentido. Estou deixando de me esforçar para viver, deixando de aceitar que haja
atrito para haver movimento. Deixando de acreditar no mundo das realidades
inventadas, doloridas. De todo jeito, tudo é invenção. Melhor que não tenha
dor.
Estou beirando o rio que segue seu fluxo sem olhar para
trás, porque não adianta. E sem olhar para frente também, porque não adianta. Pensar
no que foi ou no que será, o mesmo parar diante da porta por abrir. É sem
gosto, sem doce, sem sal.
Estou procurando o encantamento que pode surgir do nada. Da poesia.
Da beleza especial até do que é feio, porque ser feio é diferente de ser bonito
e isso é uma beleza a certos momentos de visão, já diria o poeta, se tivesse
dito isso. Eu, no espaço vazio, oco, do silêncio. Porque até o silêncio versa
mais sobre assuntos que nem o coração sabe lidar.
Estou como se estar
seja a única possibilidade do ser. Finito,
limitado, restrito. O estado de ser presente. O presente de não haver deixado
recado no espelho do banheiro, nem na porta da geladeira: passei por aqui só para
dar um beijo e seguir meu caminho. Você não é meu caminho. Qual é o meu
caminho?
Talvez não haja mapa e, se não houver mesmo, não haja certo
ou errado, não haja ponto de chegada, nada para comemorar por ter atingido um
sucesso. Talvez o mapa esteja sendo desenhado in loco, à medida que dou um passo. Um passo sempre certeiro,
sempre bem dado. E, não havendo direção, não haverá sentido senão o ter sentido
na pele.
Hoje, quando olho de sobre o morro, de sobre a montanha, o
que percorri para chegar aqui, penso que foi fácil, tão fácil como escrever o
que estou escrevendo. Qualquer um teria feito. Qualquer um chegaria também. No entanto,
olhando a poeira dos pés e os rastros deixados no pó do chão, reconheço minha
pegada, o meu peso. Reconheço meu jeito torto de andar, olhando para frente e
para o alto, tropeçando nas pedras.
Estou melancólica, embora seja primavera. Não é o tempo do
pensar, de observar o movimento dos galhos na passagem do vento. Mas sim de ser
o vento. É tempo de ser o próprio movimento dos galhos na suposição do vento. Eu,
que já inventei tanta coisa para minha vida, estou melancólica diante do que
não inventei ainda. Deixando o tempo escapar pelos dedos dos pés quando
empurram o chão para trás.
Não. Eu não posso aceitar que para andar para frente eu
precise empurrar o mundo para trás. Eu não acredito que todo o tempo que passou
sob minhas mãos, acenando ou cerrando em punho, não acredito que tenha sido para
afundar mais do que navegar sobre as ondas. Hoje, minhas ondas em morros de mar
verdejante.
Eu não quero falar de amor para não ser óbvia na primavera. Não
quero falar da dança dos pássaros, das flores repletas de abelhas, das cores
explodindo em dias de sol e luz. Não quero falar do calor ameno deixando livres
os braços e os cabelos. Nada dessa algazarra de sentidos que irrompe quando
chega essa época, como se virasse a página de um livro e a história tivesse
continuidade. Longevidade. Vida.
Pode haver vida suficiente em outros tempos, em outras
dimensões. Mas a dimensão agora, nesse exato momento é de silêncio. Consigo ouvir
a percussão do peito no silêncio reinante. E toda a pele relaxa diante dele. Meu
coração pulsando no corpo todo, mais feliz um pouco do que antes, ainda que
resista certa melancolia de um inverno mal acabado, sorri deliciado e absorto
de haver se entretido tanto pelas pequenezas da vida, pelo que passa e não fica.