domingo, 14 de novembro de 2010

Chovia

Chovia. Entrei no quarto escuro da minha memória esquecida e juntei os papéis velhos, guardados em caixas empoeiradas. Juntei tudo para fazer uma fogueira, mas chovia. Então, coloquei tudo no forno à lenha para cozinhar demoradamente, esfumaçadamente, esse passado grudento, pegajoso, que queria esquecer, mas não dá. O fogo transforma tudo, ao menos em cinza. Depois fiquei olhando pegar fogo e esquentar o tijolo. Fiquei vendo tudo acabar em poeira como se fosse uma lembrança distante.

Quando só restava fumaça, tirei toda a roupa do corpo e deixei a água quente escorrer por cima, reconfortante, num banho inteiro. Não tenho dó do que vivi. Nem de mim por ter vivido ora no paraíso, ora no inferno das minhas emoções desencontradas. Era eu. Agora, sentada aqui deixo o vento passar mais um pouco pela minha pele, levando o que restou nas entranhas de um tempo que passou. Ainda bem que fiquei. Fiquei para ser testemunha da vida. E a vida é incomparável.

Entro em casa para colocar fogo no fogão. O cheiro da fumaça me anima a cozinhar. Ainda tenho muita coisa para arrumar. Tudo está desorganizado, começado, em suspenso. Preciso tirar ainda muita teia de aranha dos meus ombros. Enquanto isso, vou atiçar o fogo na lenha. Já não me esforço em entender. Um dia isso virá. Virá como o ar que respiro, como o sangue que retorna ao coração, como o olhar que brilha só de pensar.

Penso que nada faria tanto por me lapidar como o que vivi. Nada também arranharia tanto. Nada tão bruto, nada tão intenso. Mas isso me faz lembrar de que minha adolescência tinha essa busca pela intensidade. A plenitude não era uma meta. A intensidade sim. Eu queria o vigor de um Beethoven, e não a beleza de um Mozart. A gente pede, a vida dá.

O fogo faz da brasa um cristal iluminado e transparente. Parece mole. Parece jóia. Vou jogar no fogo um pedido para o futuro, ele que queimou o passado até virar um misto de pó preto e fumaça, talvez transforme o meu pedido em realidade. Quero a inteireza da paz. Quero um coração mole que não derreta sem sentido. Quero uma pele que ceda ao toque e permaneça firme no abraço. Quero a permanência, e sim, finalmente, a plenitude.