domingo, 21 de fevereiro de 2010

Meu sonho de felicidade

Meu sonho de felicidade passava ao largo do que vivo hoje. Errei feio. Sonhava azul e branco e hoje no meio de tanto amarelo e laranja é que estou feliz. No meio de verde e rosa, de cheiros de temperos, azeite fritando, cebolas, pimentas, no meio do dia e não da tarde. Manhãs perfumadas de café e pão assando, dourando e derretendo manteiga. Sim, meu sonho era mais selvagem, eremita de mim mesma, escondida das pessoas e da vida que passa simples. Hoje entendo onde errei o plano e quanta disposição perdida.

Percebia de viés, pela janela, sem abrir o peito de verdade. Na defesa de um coração arrebatado e indefeso, sonhador por natureza estranha e estranhamente melancólico. Sentia como quem pensava, palavras de um dicionário de jornal. Hoje não, sentir é perceber na pele a brisa leve quase imperceptível que nem move a cortina, balançando os cílios, fazendo piscar os olhos. Sonho sem grandeza, pequeno pequeno como a vida que se alarga ao microscópio. A felicidade palpável e invisível como o ar. Respirar a vida que reage à luz do sol, à luz que reflete na superfície dos rios, na corredeira agitada dos riachos, nas pedras momentaneamente iluminadas pela água.

A felicidade é um destino que não estava programado quando acordei um dia qualquer e me deparei ao espelho, eu e meu olhar surpreso, com um sorriso espontâneo sem pestanejar sequer. Que sorriso era esse? De onde vinha? Por que tanta graça meu deus? E era simples, era simples como a nuvem que passa sem ninguém ver, a não ser por uma sombra tênue sobre o campo longe. Felicidade desamarrotada depois de um abraço de urso, como podia ser?

Não, eu nem sequer sabia o que era felicidade. Como chegava, se vinha de fora, como entrava e se instalava, a casa cheia ou vazia, como fazia para se mostrar inteira, plena, tal como me sinto agora. Eu, que nem acreditava em plenitude no meio da vida. Achava que era coisa de final de linha. Plenitude? Era o fim. Que fim. Era como querer comer algo que nem conhecia, comer algo que só imaginava, ou nem imaginava. Um sonho debulhado no quintal, feito milho para galinhas, esperando ser devorado. Eu não sabia o que era ser feliz, sentir o peito alegre e repleto, derramando por todos os lados feito leite ao fogo.

Meus sonhos eram outros. E agora, isso. Uma vida inteira para ser aquilo que não fui até o momento. Uma vida que só agora começa. Sem medo, sem arrependimento, sem a estupidez de quem se antecipa e grita gol antes da bola atingir a rede. A estupidez de quem quer, quer e quer sem se perguntar se dá para ser, se pode ser. A alegre estupidez da criança descontraída brincando na beira do mar. Pensando bem, com um pouco de estupidez.

Eu não queria que o vinho me deixasse tonta novamente. Nem queria ficar nos braços amontoados e adormecidos da torpidez. Eu queria essa leve irreverência e bobeira que me dá pensar que faço o que queria fazer, fácil, fácil e fácil como se fosse dado, encontrado na rua, como se fosse pura sorte. Minha sorte é haver conseqüência nas atitudes, é pagar aqui o que é feito aqui. E pagar e receber aqui. Merecer é uma sorte incrível. Mas incrível mesmo é poder contar, acreditar e sonhar, sonhar com uma felicidade que nunca antes havia passado pela cabeça, e que o coração advinha.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Não queria acordar

Não, eu não queria brigar. Eu queria continuar a acreditar que a pureza de coração podia existir entre os homens e mulheres, entre as pessoas que se cruzam o tempo todo nessa vida; que não era coisa exclusiva de anjos, ou que anjos pudessem estar vivendo entre nós. Eu queria continuar a acreditar que bastava minha palavra, meu olhar e minha mão estendida para garantir minhas intenções e que não precisaria de trazer testemunhas. Eu queria continuar pensando, mas pensando de verdade que podia acreditar simplesmente.

Quem eu sou hoje vem de quem fui antes. Mas quem fui antes, já passou. Desceu correnteza abaixo junto com muitos sonhos e ilusões do que seria ou gostaria de ser. Foi lavada de alma e corpo e sangue na água que purifica, o batismo de deus na terra, entre homens e mulheres e crianças.

A imagem mais linda que reúne minha crença nas pessoas é a da flor do lótus que nasce no lodo, no pântano. Nasce no que é sujo sem se contaminar, lindo e perfeito, imaculado. Se é possível a uma planta que não tem liberdade de escolha, deve ser assim também entre as pessoas que são livres. Livres para ser o pântano ou a flor, para ser o que é sujo ou para ser o que cresce apesar do sujo.

Não queria acordar desse sonho de que o amor pode ser fruto de confiança mútua, irrestrita e acima de todas as crenças. Não acredito que para amar seja preciso ética. Talvez amor seja a nova ética. A ética da confiança, a ética da beleza e reciprocidade. Uma atitude que pode mudar todas as outras, pode trazer novidades e mudanças tão repentinas e duradouras que nem o mar teria tanta força. Como a atração da lua nas marés, como a atração do olhar que magnetiza.

Onde está o amor que sinto? Quando falo alto e me descontrolo por não saber ouvir o que não queria ouvir? Quando as coisas não saem como gostaria e – mimada que devo ser – não aceito simplesmente, não aceito diferente? Mas é amor, eu bem sei. É amor o que me faz gravitar nessa atmosfera de incertezas, ora verdadeiro e forte como um farol no mar bravio, ora verdadeiro e fraco como as copas das árvores que se retorcem na passagem do vento bruto. Verdadeiro, ainda assim. Verdadeiro e sincero como a água cristalina do riacho revolto. Cristalino como a lágrima que escorre depois da dor.

O amor é a água que espelha minha imagem na sua quando inexplicavelmente estamos nas margens opostas do ribeirão. É amor, no entanto, amor que une num brado inaceitável de haver realidade como pedra no andar descalço. Eu nunca antes havia andado descalça como hoje. E as pedras no primeiro contato duro e escorregadio me fazem doer o estômago. O amor, por fim, não é um sonho de noites bem dormidas, é uma realidade de vai-e-vem que faz acordar de noite, isso sim. Acordar, ainda assim, não é tão duro e frio quando tem seu abraço certo e perto.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

De um dia para outro

De um dia para outro, tudo mudou. Mudou a direção do vento, que antes era frio e vinha do sul, mudaram as estrelas como se a Terra tivesse girado um pouco mais para lá. Mudou meu olhar, antes perdido no horizonte à espera do quê nem sei. Mudou minha cabeça que era triste e passou a brilhar como a lua nas noites que tem lua. Tudo mudou tão fácil e rápido que pensei que era eu a mudar, que era eu a sentir diferente, que era eu.

Não era. O mundo inteiro virou uns 45 graus para a direita, pouco mas muito para quem já estava até acostumada a ver as coisas tendo que entortar a cabeça. A gente se acostuma muito fácil mesmo com aquilo que fica machucando. Acostumar, aliás, é tão simples que basta encostar-se na cadeira e ficar sentado o resto da vida numa boa, só se acostumando, se acostumando.

Então, quando tudo mudou e eu nem reconheci mais meus olhos tristes no olhar brilhante e sorridente que se me abria ao espelho, quando tudo se abriu como uma caixa de surpresas e novidades dessas que ambulantes não vendem mais, quando tudo mudou à minha volta eu entrei em êxtase. Conectei-me com deus imediatamente numa conexão com o rio de corredeira que passa pela minha cidade, com as formigas que sobem enfileiradas os galhos das árvores num movimento tumultuado e organizado ao mesmo tempo, indo e vindo com folhas; conectei-me com deus pela presença das pessoas que contatei diretamente num instantâneo quase fotográfico, um flash. Minha foto deve estar sendo enviada agora no universo paralelo.

Mudou tudo. Nada ficou no lugar e tudo ficou mais lindo. Parece que o rio num único movimento levou todo o entulho preso nas suas curvas, levou tudo que lhe prendia pelas encostas, e num único cair pelas pedras, jogou tudo que sobrava e atrapalhava cachoeira abaixo. Minha vida nesse turbilhão ora dentro da água, ora fora, escorrendo vertiginosamente nas margens antes estreitas do rio, foi se transformando em outra vida, numa vida que nunca havia sonhado ou buscado. Sim, existe vida depois da vida. Eu testemunho.

Agora, as noites são calmas cheias de vento. As árvores são verdes e floridas com o perfume que toda mata tem. Dá para caminhar no escuro sem medo. Dá para seguir o caminho tornado espaçoso a ponto de caber outros caminhantes, outros como eu que seguem o rumo que o coração traçou, errando, é verdade, mas acertando também e gostando, acima de tudo, gostando, amando apaixonadamente a vida que é possível e impossível, que o braço nem sempre alcança, que, muitas vezes, nem o olhar alcança. Essa vida cujo avesso é mais aconchegante que o lado certo, virada assim, mudada assim, foi um presente. E de tudo que pude entender de tudo mudar assim, o que ficou para mim é um grato, enorme sorriso, completamente confiante e entregue.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Nasci no interior

Nasci no interior do estado de São Paulo o que faz de mim uma caipira. Ainda criança meus pais me levaram para morar na capital, mas já era tarde: em minhas veias já corria a necessidade de ouvir pássaros pela manhã, ouvir os riachos descerem em corredeira, a necessidade de ver entrar pela manhã o sol bordado de folhas de árvores, de sentir o cheiro de mato entrando pelo quarto ao abrir a janela.

Então, quando estava preparada, voltei para minha casa que é a roça. Aqui meus vizinhos mais próximos são ervas daninhas que crescem por todo lado, independente de qualquer coisa. São flores silvestres que nascem e desaparecem sem mais, são trepadeiras ou árvores frondosas, são uma quantidade enorme de frutas que plantei e vejo brotar a cada temporada como uma dádiva. Privilegiada que sou, vejo e acompanho o nascimento de cada fruto pela flor. E ando calma pelo meu quintal de vida dada amassando folhas secas, galhos caídos, meus gatos atrás de mim espantando os passarinhos. O perfume que vem da minha passagem, não tem como descrever. Essa conexão é a mais online que faço no dia. É minha mais íntima conversa com deus.

Foi minha escolha voltar para casa. Tem gente que sai e nunca mais volta. Nem olha para trás. Nem sente falta alguma. Tem aqueles que sentem falta, mas não voltam. Têm sempre um motivo que impede. E tem aqueles que colocam a volta como um prèmio que só será ganho se ele comer toda a comida, se ele terminar tudo que tem para fazer, se ele resistir à toda falta que lhe fez a vida. A vida que escolheu para viver. Voltar para casa não é bem voltar para onde nasci. Eu gosto mesmo é do frio, da montanha, do ar emoldurado por árvores enormes, verdes e coloridas, contra um azul que traz em si um friozinho gostoso, que pede aquecimento extra.

A vida é um patchwork de escolhas, às vezes um resultado lindo, às vezes nem tanto. E a gente pindura na parede da sala, ou pindura na janela, pindura no banheiro, ou pisa em cima. Escolhas que nos levam daqui para lá quase sem sentido muitas vezes. Ou com sentidos paralelos, ou com sentidos duplos. Escolhas que definem uma série de conseqüências, quase nenhuma prevista no momento da definição. Porque a vida não acontece dentro de um plano de negócios que foi estrategicamente montado. Mesmo os planos de negócios muito bem estruturados precisam de alguém para explicar porque algo não aconteceu como o previsto.

Minha colcha de retalhos da vida tem muitos tons diferentes. Ora muito vermelho, amarelo e laranja, mostrando os momentos de grande movimento e audácia, ora muito azul e lilás, naqueles em que fiquei contemplando os resultados. Tem lugar para tudo. Mas não sou original. Só faço copiar o que vejo por todo lado. Junto as cores naturais com um pouco de terra, um pouco mais de água, ou mais cor.

O que hoje é diferente é que antes eu abria a janela e ficava vendo o mundo lá fora, lindo, ou cinza, ou sujo. Agora, abro as janelas para entrar o vento. E abro a porta, o portão e a porteira e saio andando no meio do que é lindo, cinza ou sujo. Vou caminhando, seguindo meu rumo confiante. Sei onde está minha casa, e sei que deixo espaço no caminho para alguém mais que queira seguir comigo. Tem dias que vou longe, noutros quase nem saio das cercas do quintal. E ao encontrar alguém levanto o braço e balanço a mão, aceno com a cabeça e sorrio. Pode ser que o acompanhe um pouco, pode ser que sigamos em caminhos contrários, mas do encontro fortuito e sem plano pode surgir quem me acompanhe um pouco ainda até virar aquela curva, ou mais para frente um pouco, e de pouco em pouco vou transpondo meu caminho feito mais feliz e mais alegre porque esse é meu lugar e esse o momento.

Acordo no meio da tarde

Acordo no meio de uma tarde especial e vou seguindo em frente. Vou vivendo, porque acho que o maior desafio da vida, ela mesma, é conseguir manter-se ereto e firme independente dos altos e baixos do entorno. Já vivi muito em gangorras sem sentido de sobe-e-desce como se fosse minha a falta de rumo. Como se fosse eu que descesse vertiginosamente a onda que quebra, sem me segurar no turbilhão.

As ondas são para surfar. Não para nos mandar para o fundo. Nada na vida foi feito para nos levar para o fundo. A tristeza só é boa para a indústria farmacêutica, agora eu sei bem disso. A vida é uma seqüência de infinidade de fotos que podem ser lindas ou não. Que podem nos mostrar em momentos alegres ou não. Mas não dá para ficar subindo e descendo sem leme, ora bem ora não, num instante o mais feliz do mundo, no outro o pior entre os piores. A inconstância do ritmo não pode me levar a dançar feio. A paz é uma descoberta interior que não pode ser adulterada pela ignorância externa.

É claro que sofro a dor que não é minha. Sofro principalmente a dor dos que me são caros. A dor real e cortante das perdas anunciadas ou não. Daqueles que são tão próximos que chegam a ser minha carne. A dor alheia é uma dor que comove e faz viver aquilo que de outra forma teria que ser multiplicada na teia da vida para que todos passassem pelas mesmas dores. Mas isso não é escola, é vida. Na escola todo o conteúdo da sala de aula deve ser transmitido a cada um presente, independente de sua vontade em aprender. Mas a vida não. Quem quer aprender vive a dor e a delícia de ser alguém que importa ao mundo, sendo sua ou não essa dor e delícia.

As dores e delícias de viver não podem nos pôr nessa gangorra sem sentido de subir ou de descer. As certezas e os saberes que se vão somando de haver sangue correndo nas veias, de haver luz brilhando nos olhos, de estar aberto às experiências que se apresentam, esse verdadeiro saber que inclui o haver amor no coração – nada vale a pena se não houver amor no coração – trazem paz de espírito, a paz de deus que não se muda nunca, que é constante, vibrante de calma, a calma alegre e reconfortante que faz da vida algo maior. Simplesmente porque deus não brinca de nos colocar em infernos cotidianos só para ver como nos saímos. Aliás, ele não nos coloca de maneira alguma em inferno algum.

A paz é como a nuvem que passa, o céu azul da tarde que vai se transformando em rosa, amarelo, dourado, púrpura, até finalmente se transportar em negro, um negro que engole toda luz. O céu não está indiferente à minha dor pessoal, mas olha para ela seguindo seu rumo inquestionável de amanhecer e voltar a ser azul. Ou cinza se chover, ou se não houver sol, independente da minha alegria ou tristeza. Esse ritmo inquebrantável é um farol. Dá a direção a seguir. É deus presente na vida de todos e na minha em particular, na sua em especial, na dele se ele quiser ou se não quiser. Quando quiser, no entanto, estará lá o farol iluminando o caminho. E tudo poderá voltar a ser bom, porque não deixou de ser. E tudo poderá voltar a ser calmo, porque sempre será.