Eu fazia parte de uma irmandade. Mas eu não sabia,
irmandades são coisas medievais, antigas, não existem mais. Então, ao invés de
tatuar o nó celta na nuca, de marcar para sempre o sinal da reverência e do
sangue, selar um compromisso, honra, aquilo tudo de sociedades secretas, ao
invés do olhar de cumplicidade, desatei a rir dos laços que nos uniam. Foi uma
verdadeira palhaçada, com cara pintada, nariz vermelho, e olho – só dá para ver
o olho do palhaço – vermelho também, sem chorar.
Irmandades não existem mais, imagine só. O risco de haver
segredos, segredos de coração, guardados em lenço de seda, no fundo da gaveta,
não suportou o tempo. A linha do tempo é um martelo batendo nos sentimentos
remotos, fazendo ficar apenas o que é inquebrantável, firme feito rocha na
beira da praia, como o amor.
O amor é um mistério que as irmandades protegiam. O amor é
engraçado também, firme como rochedo e doce como algodão doce na memória, sob a
pele, na língua. Eu cheguei a acreditar que o que não havia mais era a
separação do mundo em dois: o bem bonzinho de um lado, com toda a sua
ignorância e leveza, e o mal ruinzinho do outro, esperto, inteligente e egoísta.
Não. Ao menos meu mundo não era branco e preto assim.
Pois aí eu entendi. Fazia parte de uma irmandade – antiga e antisséptica
– e não acreditava mais em mundos divididos e simples. Todas as paredes da
minha vida tinham o vermelho em tons e surtons. Amarelos em profusão, muito,
muito amarelo. Azuis calmos e celestiais. Verdes, verdinhos, verdolengos,
verdíssimos, verdadeiros. Minha verdade começara a girar o eixo e não terminara
completamente. Ainda havia um canto cinza, olhando para trás.
Qualquer coisa que possa mostrar para você o quanto você
mudou é uma referência. Apenas uma referência. Não serve mais para nada. Servia
para quem você era, não para quem é agora. É claro que nem tudo é totalmente descartável.
A vida é mais misturada que isso. O mato nasce com o trigo que é uma forma de
proteção. Mútua. Tem quem corte o mato e tem quem corte a mão que investiu
contra o mato. Cada um com sua verdade, arraigada, olhando para trás.
Lá fora está chovendo, e a chuva traz um pouco da poeira de
ontem, não tem como negar. Um pouco do que fui está ainda nas minhas células. O
equilíbrio dinâmico do movimento, do andar, do seguir em frente, um pé que fica
e outro que vai. A vida é sem anestesia. Sem paredes. Sem guia. O que é bom é
também ruim. E o que é ruim é também muito bom. E no final, tudo é a mesma coisa.
Só o amor é a flor do lótus: nascendo na lama e permanecendo imaculado.
Já fui um cavaleiro medieval, um monge, sacerdotisa já fui. Já
fui todos os heróis e donzelas por salvar. Já fui, ai de mim, um ogro, talvez,
carrasco, juiz sem caráter, rei de um império que faliu, desapareceu no deserto
das boas ações, ruiu frente aos seus súditos que desacreditaram de sua
divindade. Todos se foram, agora eu. Na única irmandade que continua intacta em
mim: meu corpo. Que, no entanto, marcado por todas as sensações que já tive, se
transforma também. Quem nasci já não sou mais. Apenas o amor, sim, o coração
que bate continua firme. E depois, quando ele também não continuar, cessar como
o vento, o silêncio, o amor que nele há ainda assim continuará. Para além dos
dias tristes e alegres. Para além das tatuagens de significados desmedidos. Para
o além.