terça-feira, 19 de novembro de 2013

Violão e Vida



Eu queria que o violão entrasse em mim e eu me tornasse uma melodia. Ao invés disso, desisto. Não sou ritmo. Sou pura fama. Não tenho mãos que se falam. Não sabe a minha mão direita o que faz a esquerda. E o mundo todo gira à minha volta na total ignorância. A escura e fria ignorância. Mas boa e fácil também.

Na verdade, o que não sei é persistir. Procuro o jeito mais curva-de-nível-possível. Não quero nada que arda, coce ou dure. Dureza é um investimento num tempo que não virá mais. Quero o peso que não caia. A folha que revoe. O chão que cede. No mais, já estou indo embora.

Mas o violão vibra sua corda em mim. Numa escala de zero a dez, nada. Parece que ando para trás. Não subo a montanha, desço de costas. Não perco o fôlego, o ar me foge. No que vibra o peito, a caixa de ressonância impugnada, fico perplexa. Só a impotência me consumiria mais. E é ela que me consome.

Lágrimas incontidas escorrem quentes. Que gesto esse tão assustador que desmonta? Tão impregnado de uma tristeza grudenta e salgada a ponto de secar a garganta? A violência. Que envergonha até de contar. Que humilha. Oco. Profundo. Batida de atabaque nas cordas dedilhadas. 

Eu queria saber contar os causos tristes dos outros porque os meus desencantos me paralisam as cordas vocais. E de todos os cantos, uma voz soerguendo em notas desafinadas. Só queria ser um acorde frouxo e descontraído, fácil, fácil, repetindo sem dó a mesma canção. O vazio.

No vazio não há vibração. Apenas no amplo e aberto. Motivo pelo qual a dor viceja: a dor perpetuada pela insolência, pelo cinismo, pelo arcaico. Faz-me rir até às gargalhadas, um lampejo de luz piscando rápido. E depois passando. A mão perdida na passagem do som. Foste um difícil começo.

Quero erguer meu estandarte marron e amarelo sobre a cabeça de todos os desgostosos, de tudo sonso e de mau gosto, de toda a falta do que fazer, de todo o lodo e lama que há nos sapatos de todos os que têm razão. Eu ando descalça. A pedra me fere a pele, mas eu ando descalça. Devagar, com cuidado, mas solta e despenteada. Ergo meu triângulo da vida sobre a cabeça da morte para renascer o impossível, o inveterado, o devaneio. Ergo minha flâmula ao vento para ver balançar o cabelo dos meus pensamentos soltos como notas que se vão ressoar.

Do meu olhar, úmido da última lágrima, corre o rio todo desse novo mundo. O mundo que tem tempo para tudo, mas não espera ninguém.

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Filosofia da paixão



Eu não entendo nada de Foucault. Como, de resto, não entendo nada de tanta coisa. Mas ainda assim, e, talvez, por esse motivo, me apaixone tanto em ouvir. Fale-me de Foucault, fale-me da vida e de tudo que na vida não faz sentido. De todos os sentidos e direções a serem tomadas. Os propósitos e descaminhos que as pedras desavisadas se impuseram. Faça-me ouvir atentamente todo o vai e vem que for possível dentro e fora de um aquário. Mas faça-me parar para olhar fundo esse seu contar verdadeiro. Porque o olhar no olho me apaixona.

O olhar toca mais que a pele. Tateia como se estendesse a mão em aceitação. Tem palavras que não precisam ser ditas quando o olhar permite. E tem gestos mais precisos no olho que não teme do que é possível em quantos abraços forem dados. Perpassa por ele mais eletricidade, mais significados, mais paisagens do que pela janela do trem, mais calor.

Ou vai ver que qualquer pessoa que fique olhando nos olhos de outra pessoa por algum tempo, um bom tempo, acabe se apaixonando. Sim. Olhar nos olhos, bem dentro deles. Deixar-se embebedar pelo mar profundo, essa alma que se esconde no brilho. Ficar com medo, vergonha, incômodo, depois sim, ter coragem, se abrir, se expor. Sim, sim, sim. Olhar nos olhos é um sim.

Mas a verdade é que me apaixono fácil. Preciso da paixão como do ar. Careço do brilhar os olhos que a paixão me faz tanto quanto me exige a vida que o coração bata no peito. É meu nome. Minha alma. Apaixono-me pelo sorriso antes do café e pelo olhar que sorri depois de tudo. E sobretudo, me apaixono pela poesia que é sorrir com os olhos. Pelo segredo doce escondido no silêncio do canto dos lábios, em sorriso não expresso. Pela poesia que há em não haver mais do que o encontro fortuito de olhares. 

E sim, a intenção me apaixona. A intenção tácita de querer saber ao outro o que não diz. A intenção velada que aprisiona minha vontade. E me faz virar a cabeça acompanhando o gesto. Cada gosto que a palavra dita faz ecoar em mim, como um beijo lembrado no instante seguinte ao adeus. O piscar, o engolir a saliva que sobra na boca de haver muitas emoções. Tudo isso e mais um pouco, todas as formas de ouvir, de querer, de estar, me fazem apaixonar. Por isso, fale-me do que não entendo, faça-me o que não sei, mas olhe-me sem disfarçar, confiante e doce, e assim saberei: na retina guardarei o instante exato em que ganhei o dia. Ganhei a vida. Porque minha vida vale cada paixão que vivi e ainda vivo.