terça-feira, 27 de setembro de 2011

Já Tive medo de viver


Já tive medo de viver. Tive medo de dizer o que pensava. Tive medo de falar a coisa errada na hora errada. Desajeitada, quase um bicho encurralado em si mesmo, perdida no gesto que começava na frase de boca aberta, mas interrompida. Medo de perder, de ganhar, de ficar. Medo ele mesmo. Paralisou-me várias vezes um momento antes do salto, um instante antes do grito, do abrir os olhos quando piscava. 

Parece que cheguei ao mundo sem querer, não me preparei. Dormia um sono que não lembro e acordei no banco no meio da praça de uma cidade esquecida. Precisei respirar muito antes de falar minha primeira frase. E quando falei, desafinei, esqueci o que ia dizer.

E assim, entre a consciência e a falta de controle, cresci um pouco para crescer no medo. E esse ficou pequeno, perdido no fundo da gaveta, perdida a chave. Pulei de trampolim, subi em árvores, mergulhei de cabeça, ralei a perna, quebrei a cara. Fiz mais estripulias do que podia imaginar algum dia na minha vida. Pus fogo na casa, fogo no mato, pulei fogueira, brinquei com o perigo, tudo para acreditar que o medo não me tinha mais.

Mas eu o tinha. Quietinho, rouco e amassado de tanto descuido e exagero, ele ainda estava lá. E, quando menos esperava, tomou-me de pronto novamente. Voltei a viver para dentro com medo de me expor. Era melhor ser criança destemida e cheia de confiança. Mas confiança em quê? O que maior que eu poderia existir que também pudesse me aceitar? O melhor e o pior de mim na mesma bolsa em que eu levava meus sonhos. Posso merecer? Posso querer? Pisar em ovos, com cuidado, para não quebrar nenhum. O erro inaceitável.

Eu me protegia do amor, do risco, da alegria. E, embora não tenha deixado nunca de viver o que queria, o medo num transe me fez ir embora diversas vezes antes do para sempre, antes do final feliz. E se alcançasse a felicidade no meio da vida? O que faria depois? Poderia haver mais felicidade além da felicidade? Medo até de ser feliz.

Então a chuva molhou, o rio passou, o vento soprou e eu despertei no meio da floresta sonhada, entre folhas secas. Brumas, névoa úmida em torno e, ainda assim, luz forte por toda parte. Acordo ou durmo? Herói de mim mesma, vou abrindo caminho por entre o mato que está em toda parte. Serei uma metáfora de um poeta bêbado ou sou o poema que alguém falou enquanto dormia? Não sei, mas para não me perder mais, vou recitando cada verso meu que escrevo nas linhas da mão, para decorar e não esquecer, para não ter razão, para decorar apenas, de coração a alma.

sábado, 24 de setembro de 2011

Posso me deitar no seu colo


Será que posso deitar no seu colo como quem deita na relva e relaxar por um segundo, olhando vagamente para o céu, para o vazio sem fim da paisagem, para tudo que não sou eu? Será que posso largar o corpo do instante intencionado e assim planar solto no ar que nada sustenta a não ser minhas asas tortas em desvelado movimento? Eu queria apenas me largar um pouco, solto de nós, sem laços que me prendam enquanto tudo passa, passa depressa, passa sem pressa, mas passa sempre. E assim voltar a ter tempo. Porque o tempo que perdi é aquele que não traz nada, não faz nada, que não manda notícias nem manda lembranças. O tempo que a idade não conta, que, vento da vida, sopra antes de bater. Agora tenho calma. A calma que nunca sonhei e nunca desejei, eu, que queria a paixão, os sobressaltos do coração, as surpresas que o outro pode dar quando quer também.  

Relaxar só um segundo, o segundo que cai chuva morna no final do dia, levantando o cheiro de terra molhada. Segundo infinito que dura o tempo que dura uma recordação. Não, o tempo não existe quando é possível parar e deitar confiante olhando para o céu. E falar verdades difíceis, difíceis palavras, significados distantes daqueles diários e rotineiros, falar das dores e dos ardores, falar, ouvir, cantar. Porque o canto que a poesia faz, na chuva ou na falta dela, molha o rosto cansado e renova as forças dos braços e pernas. Quero me deitar no seu colo para me recuperar de quem fui. 

Você, enfim, pode se desvanecer a qualquer momento, pode virar apenas um perfume no ar, que inebria, mas não dura. E assim, vou saber que um dia descansei em seus braços, num dia em que a Terra parou antes do entardecer. Brilho dourado no horizonte, meu sorriso esmaecido de pôr-do-sol, pele exalando sândalo, canela. Vou saber que na vida dos sentidos todos que procurei encontrei um dia a paz, em mim, enfim.

E depois, sim, depois, venham as tempestades e todas as tormentas, subam as ondas dos mares que não naveguei, recubram de areia as pegadas que deixei leves ou trôpegas, desapareça a ânsia de querer tudo e de viver tudo de todas as maneiras. Terei sido naquele instante o vôo perfeito, o ovo perfeito, o perfeito entendimento. 

Já fui selvagem e indomável, corri de todo para sempre que resvalei, amarrei minhas cordas nas estrelas cadentes cansadas de brilhar e de ser olhadas, que caíram em terra para semear a luz. E então, amansando como a um cavalo baio, fui me entornando em pássaro. Agora, a caminho do verão, tenho ainda tempo para deitar no seu colo, de silenciar o canto último antes da partida. Apenas isso. Pode vir o novo amanhecer.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Um bom sócio


Um bom sócio, por princípio, deveria ser aquela pessoa que tem o que você não tem, ou seja, complementa você, caso contrário, não precisaria de um. E, claro, que você tenha aquilo que aquele não tem. Portanto, o que justifica uma sociedade é a complementaridade e a diferença. Essas são questões objetivas. Dada qualidade ou competência lhe falta e você encontra esses predicados em um sócio bem escolhido. Isso parece até bom. Mas as diferenças, pelo que sei, vêm em pacote e não individualmente. Assim sendo, serão muitas outras as diferenças que você encontrará no seu sócio, além daquelas que você procura. Infelizmente.

Se tudo der certo, e o que concorre para o sucesso é mais do que bom senso, ambos irão valorizar o que lhes falta e aceitar de bom grado a contribuição do outro. Pode ser que entre o primeiro passo e em definitivo aceitar o que o outro dá haja um longo caminho. Porque não é apenas uma lição do tipo trabalho em equipe. É mais um embate entre lideranças. Então há que negociar, há que ouvir, há que saber voltar atrás e insistir no momento certo. Mas quem vai dizer qual é esse momento certo? A coisa deveria seguir objetivamente, mas se tem um envolvimento real – uma paixão pelo que faz ou pelo negócio – já se turvou a visão, já apareceram outras línguas, já apareceu um culpado para os erros.

Lá pelas tantas, aquele que deveria estar contribuindo com você pela empresa, de repente, sem mais, está competindo. Está tentando convencê-lo de que você, por não saber o que ele sabe, deve estar errado no resto também, naquilo que ele não sabe. Pode chegar ao cúmulo de conspirar para que sua posição esteja errada, se for escolhida.  

E uma sociedade, como alguns casamentos modernos, começa com o filho antes do contrato em si. Um filho, aqui também, não prende ninguém, mas liga, relaciona. Um filho que tem que se renovar sempre, a cada plano estratégico. Mas que demanda sempre. E, não importa quantos percentuais você tenha na sociedade, você deve dar-se por inteiro, 100%. Enfim, muito parecido com um casamento.

Sociedades não são apenas contratos de risco ou planejamentos para uma etapa da vida, como os casamentos eles querem um objetivo: deve dar um bom retorno dentro de um tempo determinado. O problema é que quando isso começa a acontecer, a intimidade que se instalou quase faz perder as fronteiras entre os sócios, parceiros ou contratantes: um tropeção e você invadiu a vida do outro, ocupou a mesa que não é sua, ficou à vontade demais. Quem você é naturalmente se espalha pela casa, pela sala ou mobília. 

A vida é assim repleta dessas nuances. Talvez por esse motivo se diz tanto que não se vive sem política: tudo é uma eterna negociação. Dá para ser automático, como uma gangorra, quando um sobe o outro desce, automaticamente. Dá para ter uma fórmula mágica, é só seguir uns modelos, repetir. Mas o melhor é apenas saber dançar e se deixar levar pelo ritmo da música. Algumas vezes levando, outras sendo levada. Aí sim, se não for sempre bom será na maior parte do tempo.

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Crônica da Roça

Esperar que a comida mineira não tenha nunca gordura de porco é como pedir para um cozinheiro francês não usar manteiga, é tirar sua alma. Isso dito por alguém que não come nenhum tipo de carne ou derivados há mais de vinte anos pode parecer esquisito. Mas eu não vou reescrever a culinária tradicional, ao contrário, eu a estou louvando. Vida longa à couve colhida do quintal e picada feito cabelo de anjo, cabelo de milho, para ser refogada em alho dourado, quase só um susto, para então seguir verde ainda para cima de um prato de quirerada com feijão cremoso. Coma-se quente até quase queimar a língua. Quase. Coma-se acompanhada de uma cachacinha boa, mas boa mesmo, dessas de só deixar lembranças boas no dia seguinte.

Toda vez que como couve penso logo que seu melhor acompanhamento é arroz branquinho, feijão fresquinho e ovo caipira. Caipirinha. Quem acha que caipirinha é um diminutivo então nunca tomou uma daquelas que não tem em qualquer lugar, só no mundo novo, na nova era.

Está nascendo um novo mundo que desenterra verdades como quem colhe mandioca que cozinha rápido e fica amarela. Um mundo dos que têm tempo para ganhar com amigos à mesa, juntos para saborear um bem comum, que não é mais uma caça, uma presa, mas o compartilhar da emoção serena, tranquila de quem acredita na vida, na verdade.

As grandes verdades não são relativas, nem mudam de lugar ou envelhecem no tempo. Deixe o rio correr, deixe a lua minguar, que a vida não é o que passa nem o que fica, é a emoção nos olhos, o gosto na língua, o perfume e aromas de uma noite de verão. Vidas inteiras, às vezes, valem por um dia, uma noite, valem por uma frase, uma palavra.

E assim caminha aquela humanidade que rima dignidade e vontade de ser a poeira da estrada que sobe quando o carro passa. O cachorro correndo atrás. Que movimento, que tranquilidade.
Seguir em círculo ou numa reta, pelo caminho longo ou curto, subindo ou descendo a ladeira, viver mineirissimamente, entrando pela cozinha, olhando nos olhos e confessando com simplicidade que não precisava mais nada, só um café, quente e sem açúcar. Ai, a vida que se desenrola por esse marzão de morros. Por essa Mantiqueira!