sexta-feira, 21 de junho de 2013

Você não precisa contar nada



Você não precisa me contar nada. Há confiança suficiente em mim para que eu nem saiba que não sei. Não precisa me contar de você. Minha vida já tem emoções o bastante para eu me alegrar e sofrer só de lembrar ou viver. Sobretudo, não precisa nada. Porque o silêncio na maior parte das vezes é mais fiel e sincero que todas as palavras juntas, misturadas, intentadas. E eu escrevo porque preciso crer.

A vida já é um grande teatro de portas abertas. Olhares espiam, dedos apontam, conversas ressoam. Na coxia a profusão de pernas e braços vestindo e se despindo me seguram a respiração.  E, ao acender as luzes novamente, eis que a cena é outra, o tempo é outro, outra a personagem principal. Talvez não mais comédia, talvez não mais risadas soltas perdidas na plateia. Mas é apenas uma história.

No mais das vezes presto atenção fora da cena. Observo os cantos escuros, obscuros, desajeitados, fora de foco. Porque a poesia reside ali. No pó do chão que não foi pisado. Na frase mal escrita e não falada. No gesto interrompido e descuidado. A poesia reside na traição. E só há traição onde há laço. A poesia, imagine, é o rompimento do nó, da amarração, do arranjo.

Não, você não precisa me contar sua história e as histórias que vêm junto com ela. Um conto onde tudo se encaixa e tudo faz sentido. Porque, vida que é vida, não faz sentido. Nem tem direção. Ou cenário. A vida carece de significados. E, ao andar sozinha pela sala, ao atravessar o salão com a cabeça erguida e tropeçante, vou colhendo um pouco das folhas secas caídas do outono. Vou pisando em seu estalido sem rastros, espontânea como as brumas em manhãs frias.

Eu prefiro o silêncio repleto de verdades do que tantas palavras vazias. O gesto, meu deus, diga-me que o gesto não espelha, o gesto não entrega o desejo. Mas diga-o com um aceno e não com palavras. O olhar – eu acredito em olhares – que não se envergonha de ser franco e obsceno, fora da cena, faz de si uma intervenção maior que a peça. 

Você, por favor, não me conte o que aconteceu, o que acontece, o que quer que seja, não me conte e não invente. Apenas a mágica inventa com aplausos. Na imitação da história, a doçura se perde, escorrega no tapete mal ajeitado, na panela que queimou.

Quando não for possível abrir o palco, quando o texto não foi bem passado, quando as letras não se encaixam bem com a música, o sereno molhando os pés descalços, marcas nas mãos ou na boca, quando tudo parecer mentira, e não arte, nesse momento, não me conte nada.

Não abra a boca para o desengano, para o sorriso que se perdeu lá fora, no dia em que se perdeu também a inocência. Eu preciso crer. E nesse momento, acreditando que a beleza é tudo, e que ela basta, não saia correndo, não olhe para trás, não disfarce. Há beleza suficiente em ser, como água corrente, como o vento invisível, como a sílaba travada. Há beleza em sua história não contada. 

Ou, melhor que isso, conte-me tudo. Conte-me sem omitir nenhum detalhe, nenhum porém. Tudo que é difícil de contar, de admitir. Conte-me, abra a mão e mostre-me as linhas da sua vida sem medo do que eu possa ver. Abra a caixa de pandora, tire todas as cores da paleta, use todas as vogais e consoantes. 
Faça mais, imite o seu gesto, as suas falas, seus trejeitos. Exagere, aumente, repita. A vida é a arte de inventar, de recontar, de desdizer. Conte sua realidade como se fosse um sonho que passou à noite, conte o sonho torto como se fosse lembrança vã. Represente. Tudo tudo tudo estará certo. Exceto a mentira.