Você não precisa me contar nada. Há confiança suficiente em
mim para que eu nem saiba que não sei. Não precisa me contar de você. Minha
vida já tem emoções o bastante para eu me alegrar e sofrer só de lembrar ou
viver. Sobretudo, não precisa nada. Porque o silêncio na maior parte das vezes
é mais fiel e sincero que todas as palavras juntas, misturadas, intentadas. E
eu escrevo porque preciso crer.
A vida já é um grande teatro de portas abertas. Olhares
espiam, dedos apontam, conversas ressoam. Na coxia a profusão de pernas e
braços vestindo e se despindo me seguram a respiração. E, ao acender as luzes novamente, eis que a
cena é outra, o tempo é outro, outra a personagem principal. Talvez não mais
comédia, talvez não mais risadas soltas perdidas na plateia. Mas é apenas uma
história.
No mais das vezes presto atenção fora da cena. Observo os
cantos escuros, obscuros, desajeitados, fora de foco. Porque a poesia reside
ali. No pó do chão que não foi pisado. Na frase mal escrita e não falada. No
gesto interrompido e descuidado. A poesia reside na traição. E só há traição
onde há laço. A poesia, imagine, é o rompimento do nó, da amarração, do
arranjo.
Não, você não precisa me contar sua história e as histórias
que vêm junto com ela. Um conto onde tudo se encaixa e tudo faz sentido.
Porque, vida que é vida, não faz sentido. Nem tem direção. Ou cenário. A vida
carece de significados. E, ao andar sozinha pela sala, ao atravessar o salão
com a cabeça erguida e tropeçante, vou colhendo um pouco das folhas secas
caídas do outono. Vou pisando em seu estalido sem rastros, espontânea como as
brumas em manhãs frias.
Eu prefiro o silêncio repleto de verdades do que tantas
palavras vazias. O gesto, meu deus, diga-me que o gesto não espelha, o gesto
não entrega o desejo. Mas diga-o com um aceno e não com palavras. O olhar – eu
acredito em olhares – que não se envergonha de ser franco e obsceno, fora da
cena, faz de si uma intervenção maior que a peça.
Você, por favor, não me conte o que aconteceu, o que
acontece, o que quer que seja, não me conte e não invente. Apenas a mágica
inventa com aplausos. Na imitação da história, a doçura se perde, escorrega no
tapete mal ajeitado, na panela que queimou.
Quando não for possível abrir o palco, quando o texto não
foi bem passado, quando as letras não se encaixam bem com a música, o sereno
molhando os pés descalços, marcas nas mãos ou na boca, quando tudo parecer
mentira, e não arte, nesse momento, não me conte nada.
Não abra a boca para o desengano, para o sorriso que se
perdeu lá fora, no dia em que se perdeu também a inocência. Eu preciso crer. E
nesse momento, acreditando que a beleza é tudo, e que ela basta, não saia
correndo, não olhe para trás, não disfarce. Há beleza suficiente em ser, como
água corrente, como o vento invisível, como a sílaba travada. Há beleza em sua
história não contada.
Ou, melhor que isso, conte-me tudo. Conte-me sem omitir
nenhum detalhe, nenhum porém. Tudo que é difícil de contar, de admitir.
Conte-me, abra a mão e mostre-me as linhas da sua vida sem medo do que eu possa
ver. Abra a caixa de pandora, tire todas as cores da paleta, use todas as
vogais e consoantes.
Faça mais, imite o seu gesto, as suas falas, seus
trejeitos. Exagere, aumente, repita. A vida é a arte de inventar, de recontar,
de desdizer. Conte sua realidade como se fosse um sonho que passou à noite,
conte o sonho torto como se fosse lembrança vã. Represente. Tudo tudo tudo
estará certo. Exceto a mentira.