domingo, 3 de abril de 2016

o que é felicidade?

Eu não sei o que é felicidade. Quero dizer, não sei conceituar. Parece que é daqueles sentimentos inomináveis, exceto pela própria palavra que é seu nome. Sei o que é na pele, quando ela fica tão sensível que a mais leve aragem faz levantar os pelos todos e esquentar a nuca. Sei o que é no peito, quando faz um aperto, uma falta de ar, parecendo um baque, como se de repente, tivesse fechado a porta, batendo. Sei o que é na boca, quando fica seca e não passa com água alguma. Mas sei também o que é quando fecho os olhos e lembro. Detalhes, aromas, sensações.

Felicidade parece ser um fragmento, não uma peça toda. Às vezes se faz representar como monólogo, outras como teatro de arena. E ainda há aqueles momentos insólitos de picadeiro. Nos outros dias, é a casa aberta para a paisagem. O movimento do sol desenhado na sua sombra. Nuvens que passam, pássaros que piam, ventos que chacoalham folhas e derrubam as secas pelo chão. E, muito a miúde, é o silêncio.

O silêncio calmo do fim do dia, sem zunido de insetos ou qualquer coisa. O silêncio que faz o peito, aquietado repentinamente, como se fosse parar e fosse bem perto mesmo de parar, mas, se você observar bem, verá o leve arfar do abdómen descendo e subindo.

Sim. Eu antes pensava que felicidade fosse festa, gargalhadas, uma mistura de champanhe com olhares explícitos. Que fosse só assim, uma expressão ostensiva e radiante, difícil de controlar e de conter. Como quem ganha na loteria sozinho. Hoje eu sei que não há felicidade sozinha, mesmo quando o momento é quieto e intenso. A felicidade é contagiante como vírus em vias aéreas. Não dá nem para falar perto.

Hoje sei que ela pode ser tão minimalista que passa despercebida se você não estiver atento. Você abre um livro e lá está, passeando pelas palavras, pulando páginas. Você joga um tempero que fica grudado em parte nas pontas dos dedos e o perfume que sobe melhora sua vida por alguns instantes. Você olha para o rastro que deixou no chão, ora pegadas marcantes e firmes, ora oscilantes e leves, e sente um arrepio percorrer a espinha: você cresceu. Desgrudou de várias máscaras confortáveis e seguras que ao longo da caminhada vestiu. Identificou, no meio de tanto espelho refletido nos olhos dos outros, a sua própria imagem, real ou ficcional, mas a sua cara. Cantou afinado. Nadou ritmado. Pôs sua melhor roupa e perfume e sentou para jantar, sozinho, uma comida maravilhosa.

Dá para perder as contas dos momentos em que a felicidade esteve sentada no seu colo: o gato pulou brincando na bolinha de papel; você fez pipoca com manteiga; tinha uma cerveja escondida no armário; um chocolate meio amargo; chegou uma mensagem no seu celular; entrou um dinheiro que você já nem esperava mais; deu para chegar no horário para o cinema; os amigos o convidaram para uma festa; havia uma lua imensa lá fora; o chuveiro estava maravilhoso; você dormiu como um anjo. A muda que você plantou, pegou; a alface ainda deu para aproveitar bem; você viu passar de novo, sem querer, aquele carro, com aquela pessoa que salvou seu dia só de passar. Aquele filme que você adora reprisou pela enésima vez.

Agora, e quando nem tudo saiu como você previu? O relógio não tocou; o carro não pegou; faltou sal no arroz, ficou duro e papa; os amigos não chegaram. Como sentir-se feliz em circunstâncias tão desapontadoras ou frustrantes? Dá, ainda assim. A fruta azeda tem mais sabor, o amargo realça o doce. Não tem como ser feliz sem haver uma referência na normalidade, um contraponto na rotina. No mundo dos contrastes, a felicidade também corre pelos vales para chegar ao mar. Então, a vida é cheia de momentos felizes. Basta abrir os olhos e deixar-se tocar.

sexta-feira, 1 de abril de 2016

nem caça, nem caçador

Agradeço à cientista que fez um vídeo demonstrando sua teoria de que nós, humanos, diferenciamos nosso cérebro devido ao fato de que aprendemos a cozinhar. Cozinhando o alimento, e, portanto, facilitando a digestão, ganhamos tempo de vida. Não precisamos passar o dia todo pensando no que iremos comer e nem passamos o dia todo digerindo o que ingerimos. Talvez, se ela estiver certa, esse fato combinado com o próprio desenvolvimento do córtex cerebral tenha inibido uma característica da maioria dos primatas: ser predador.

Hoje não mais. Competidor sim, mas predador não. Competidor quase ao ponto de ferir, violentar, construindo casas umas sobre as outras, perdendo a capacidade de nos sensibilizar com o outro, deixando de ser empáticos senão com nossos familiares. Mas predador, nesse sentido exato, não. Está certo que a consciência adquirida ainda perde um pouco desse tempo ganho justificando atitudes beligerantes, um tanto guerreiras e onipotentes. Usamos nossa capacidade desenvolvida para explicar nossos gestos mais aberradores, como matar animais, desmatar florestas, manipular outras pessoas, usufruir de tudo que encontramos pela frente sem nos preocupar senão com uma saciedade obsoleta. Até a miséria no mundo é forjada. E poderia ser redimida com um esforço extra do cérebro.

Desenvolvemos o córtex cerebral num ponto especialíssimo, cozinhando nossos alimentos e deixando-nos com tempo para viver sem pressa, sem tensão. Comemos o que precisamos sem necessidade de ficar vigiando se algo mais forte virá nos roubar ou nos devorar. Estamos no topo da cadeia evolutiva, auto proclamado o mais desenvolvido. No entanto, paralisamos diante de uma abordagem mais direta, de uma crítica certeira, qualquer coisa que fuja ao controle.

Talvez, em muitos momentos, tenhamos dificuldade em sustentar o olhar no olhar do outro, coisa de predadores. E de não darmos respostas quando nos sentimos ameaçados, seja por um gesto, seja por uma carta, uma palavra. Até quando essa ameaça possa advir de um sentimento interno, pequeno, de impotência, de fragilidade. Aliás, ser frágil ainda é um problema para esse ex-predador que não virou de todo a chavinha. E que não sabe lidar completamente com adrenalina descarregada no sangue.

Temos medo de ser tolos, de ser inocentes, de rir por bobeira, de parecer bobos. Temos aversão pelo lado feminino da vida, de esperar, de sentir, de perder. E perder é tudo aquilo que nos frustra: do desejo não atingido ao tempo perdido no investimento mal sucedido. É muito difícil admitir a frustração em não atingir objetivos ou não realizar desejos. É quase impossível. Mais fácil aceitar o fato do que admitir o motivo. Aliás, nada é fácil em matéria de frustração. E nesse bololô entra não aceitar o fim da vida, o fim do prazo, o fim de qualquer coisa.
É engraçado pensar que foi justamente um gesto tipicamente feminino – cozer e nutrir – que nos possibilitou fazer essa trajetória de desenvolvimento cerebral. E, portanto, nos afastando desse ser predador original. Mesmo que falte muito para o equilíbrio da balança, o passo foi dado.

Quanto a mim, gosto de pensar que a evolução me atingiu bem mais que um córtex, ou na quantidade de neurônios, herança ancestral e benevolente. Que, embora eu mesma tenha medo de e-mails recebidos, com interesse na minha vida, e que tenha me quedado paralisado sem resposta, na surpresa, como um confronto, um olhar que me espreitasse, eu gostaria de saber de mim que tenha evoluído para uma pessoa melhor. Melhor para meus próprios padrões. Melhor do que eu pudera sonhar a vida toda que já vivi. E usar meu corpo e emoções para realizar o que esse cérebro consegue ministrar. Agir como um ser diferenciado no planeta.