Eu não sei o que é felicidade.
Quero dizer, não sei conceituar. Parece que é daqueles sentimentos inomináveis,
exceto pela própria palavra que é seu nome. Sei o que é na pele, quando ela
fica tão sensível que a mais leve aragem faz levantar os pelos todos e
esquentar a nuca. Sei o que é no peito, quando faz um aperto, uma falta de ar,
parecendo um baque, como se de repente, tivesse fechado a porta, batendo. Sei o
que é na boca, quando fica seca e não passa com água alguma. Mas sei também o
que é quando fecho os olhos e lembro. Detalhes, aromas, sensações.
Felicidade parece ser um
fragmento, não uma peça toda. Às vezes se faz representar como monólogo, outras
como teatro de arena. E ainda há aqueles momentos insólitos de picadeiro. Nos
outros dias, é a casa aberta para a paisagem. O movimento do sol desenhado na
sua sombra. Nuvens que passam, pássaros que piam, ventos que chacoalham folhas
e derrubam as secas pelo chão. E, muito a miúde, é o silêncio.
O silêncio calmo do fim do dia,
sem zunido de insetos ou qualquer coisa. O silêncio que faz o peito, aquietado
repentinamente, como se fosse parar e fosse bem perto mesmo de parar, mas, se
você observar bem, verá o leve arfar do abdómen descendo e subindo.
Hoje sei que ela pode ser tão
minimalista que passa despercebida se você não estiver atento. Você abre um
livro e lá está, passeando pelas palavras, pulando páginas. Você joga um
tempero que fica grudado em parte nas pontas dos dedos e o perfume que sobe
melhora sua vida por alguns instantes. Você olha para o rastro que deixou no
chão, ora pegadas marcantes e firmes, ora oscilantes e leves, e sente um
arrepio percorrer a espinha: você cresceu. Desgrudou de várias máscaras
confortáveis e seguras que ao longo da caminhada vestiu. Identificou, no meio
de tanto espelho refletido nos olhos dos outros, a sua própria imagem, real ou
ficcional, mas a sua cara. Cantou afinado. Nadou ritmado. Pôs sua melhor roupa
e perfume e sentou para jantar, sozinho, uma comida maravilhosa.
Dá para perder as contas dos
momentos em que a felicidade esteve sentada no seu colo: o gato pulou brincando
na bolinha de papel; você fez pipoca com manteiga; tinha uma cerveja escondida
no armário; um chocolate meio amargo; chegou uma mensagem no seu celular;
entrou um dinheiro que você já nem esperava mais; deu para chegar no horário
para o cinema; os amigos o convidaram para uma festa; havia uma lua imensa lá
fora; o chuveiro estava maravilhoso; você dormiu como um anjo. A muda que você
plantou, pegou; a alface ainda deu para aproveitar bem; você viu passar de
novo, sem querer, aquele carro, com aquela pessoa que salvou seu dia só de
passar. Aquele filme que você adora reprisou pela enésima vez.
Agora, e quando nem tudo saiu
como você previu? O relógio não tocou; o carro não pegou; faltou sal no arroz,
ficou duro e papa; os amigos não chegaram. Como sentir-se feliz em
circunstâncias tão desapontadoras ou frustrantes? Dá, ainda assim. A fruta
azeda tem mais sabor, o amargo realça o doce. Não tem como ser feliz sem haver
uma referência na normalidade, um contraponto na rotina. No mundo dos
contrastes, a felicidade também corre pelos vales para chegar ao mar. Então, a
vida é cheia de momentos felizes. Basta abrir os olhos e deixar-se tocar.