Por que a morte? Por que a morte? Por que não, o amor?
Eu não entendo a morte. Porque antes tinha que entender a
vida. A vida, eu não entendo nada. Parece um caminho a ser aberto numa
imensidão. E, outras vezes, se apresenta uma trilha única num espaço exíguo.
Tem hora que voa. E outras que não passam nunca. É como gente que está quando
você não quer, e desaparece quando você precisa. A vida, uma mentira? Uma
falácia? Que verdade existe na vida? Ou as verdades são humanas...
E se não entendo da vida, o que posso esperar da morte? A
falta. O vazio. A dureza do vidro pela janela que mostra tudo e não dá nada. A
luz do meio-dia, a pino, ofuscante de tão clara, e quente. A vida, ao
contrário, cheia de mistérios e segredos, passa pela noite sem lua. Passa lá
dentro do peito que anseia. No querer que não tem, nos diálogos controversos da
mão que estende e dos olhos que se fecham.
Eu não vi tanta coisa. A cobra coral que passou por mim. O
pássaro que levantou voo com a cobra no bico. O sorriso perdido sozinho no escuro.
Eu não vi tantos gestos quantas palavras foram ditas sem que ouvisse. O mundo
que passa girando, sem parar na estação. O vento, o mar, o sol. Tudo que se
move sem parar, sequer para pensar. Tudo que me faz pensar. A chuva que cai. A
maçã que amadurece. O café que esfria. Tudo que não tem sentido algum. A
formiga que acha o cristal de açúcar. O pássaro que pousa no fio. O seu olhar.
O seu olhar que se perdeu de mim e que era triste. Por que
terá sido triste? E por que tão profundo? E por que me capturou sem pressa,
ressonante feito nota musical de um tambor, bateu no peito e me atravessou,
flecha envenenada de vida? Agora, que voltou para a vida que não tem forma, que
não tem contrários, que é clara sem ofuscar, agora você pode me explicar?
Você pode me explicar por que a dor escolhida – tanta dor,
meu deus – pode ter sido escolhida para ser vivida quando, ao mesmo tempo, no
mesmo suspiro, o ar o mesmo, fazia tanta beleza ecoar pelo desejo dramático
pela vida? Como ser tão importante e impactante na vida de outra pessoa que a
faz se mover, virar a mesa, trocar de jogo, derrubar o balde, subir a ladeira,
descer sem trem de pouso? Você saberia? Saberia que no toque de midas do gesto
minimalista, mímico, econômico, preciso, você abria o canal porque passaria um
rio? Você abria um caminho pelo qual pousaria um avião? Você poderia ter me
dito isso.
E no susto de pular a janela aberta inesperadamente, no
susto de quase congelar o grito, antes insuspeito na garganta, nesse momento em
que você mostrou o fio invisível que se desenrolava, como efeito mágico de um
espetáculo programado, eu me vi. E me vendo, você pode imaginar isso? –
encontrei o farol da alegria a me assinalar o rochedo e o porto. Sim. Escolhi o
rochedo, como bem você me enunciou.
Se um dia eu entender a morte, vou entender mais sobre a
vida. Mas se hoje entendo mais sobre a alegria, um caminho que não tem volta,
uma linha escrita na palma da minha mão, tenha certeza, isso foi você.
(à Silvana Abreu)