terça-feira, 29 de outubro de 2013

Por que a morte?



Por que a morte? Por que a morte? Por que não, o amor?

Eu não entendo a morte. Porque antes tinha que entender a vida. A vida, eu não entendo nada. Parece um caminho a ser aberto numa imensidão. E, outras vezes, se apresenta uma trilha única num espaço exíguo. Tem hora que voa. E outras que não passam nunca. É como gente que está quando você não quer, e desaparece quando você precisa. A vida, uma mentira? Uma falácia? Que verdade existe na vida? Ou as verdades são humanas...

E se não entendo da vida, o que posso esperar da morte? A falta. O vazio. A dureza do vidro pela janela que mostra tudo e não dá nada. A luz do meio-dia, a pino, ofuscante de tão clara, e quente. A vida, ao contrário, cheia de mistérios e segredos, passa pela noite sem lua. Passa lá dentro do peito que anseia. No querer que não tem, nos diálogos controversos da mão que estende e dos olhos que se fecham.

Eu não vi tanta coisa. A cobra coral que passou por mim. O pássaro que levantou voo com a cobra no bico. O sorriso perdido sozinho no escuro. Eu não vi tantos gestos quantas palavras foram ditas sem que ouvisse. O mundo que passa girando, sem parar na estação. O vento, o mar, o sol. Tudo que se move sem parar, sequer para pensar. Tudo que me faz pensar. A chuva que cai. A maçã que amadurece. O café que esfria. Tudo que não tem sentido algum. A formiga que acha o cristal de açúcar. O pássaro que pousa no fio. O seu olhar.

O seu olhar que se perdeu de mim e que era triste. Por que terá sido triste? E por que tão profundo? E por que me capturou sem pressa, ressonante feito nota musical de um tambor, bateu no peito e me atravessou, flecha envenenada de vida? Agora, que voltou para a vida que não tem forma, que não tem contrários, que é clara sem ofuscar, agora você pode me explicar?

Você pode me explicar por que a dor escolhida – tanta dor, meu deus – pode ter sido escolhida para ser vivida quando, ao mesmo tempo, no mesmo suspiro, o ar o mesmo, fazia tanta beleza ecoar pelo desejo dramático pela vida? Como ser tão importante e impactante na vida de outra pessoa que a faz se mover, virar a mesa, trocar de jogo, derrubar o balde, subir a ladeira, descer sem trem de pouso? Você saberia? Saberia que no toque de midas do gesto minimalista, mímico, econômico, preciso, você abria o canal porque passaria um rio? Você abria um caminho pelo qual pousaria um avião? Você poderia ter me dito isso.

E no susto de pular a janela aberta inesperadamente, no susto de quase congelar o grito, antes insuspeito na garganta, nesse momento em que você mostrou o fio invisível que se desenrolava, como efeito mágico de um espetáculo programado, eu me vi. E me vendo, você pode imaginar isso? – encontrei o farol da alegria a me assinalar o rochedo e o porto. Sim. Escolhi o rochedo, como bem você me enunciou.

Se um dia eu entender a morte, vou entender mais sobre a vida. Mas se hoje entendo mais sobre a alegria, um caminho que não tem volta, uma linha escrita na palma da minha mão, tenha certeza, isso foi você.
(à Silvana Abreu)

terça-feira, 22 de outubro de 2013

Pão



Pão. Não reparti o pão. Ao contrário, mais eu tivesse, mais eu quereria. Fosse o corpo sagrado do filho de deus, sim, eu repartiria com os meus, os teus, com os nossos. Mas, sendo assim o que era, a materialização de um desejo na forma voluptuosa de um pão, perfumado, macio, bom de pegar, eu resisti.
Capturei o instante exato em que meus lábios tocaram primeiro levemente o seu corpo ofertado. Na luxúria dos rituais profanos, comer é encontrar satisfação onde antes só havia fome.

Mas o pão. Comi com a grandeza dos que sabem o que fazem e se reconhecem uns aos outros pelo olhar. Com a entrega também de quem espera. E espera sem cansar. Nele, os segredos inconfessos da mão que o amassou vão se derramando aos poucos, se derretendo feito manteiga, fazendo brilhar os lábios, escorrer pelo queixo toda sensualidade que lhe confere.

O pão me recuperou do ocaso. Tirou-me o olhar do pôr-do-sol para furtar-me, prender-me, entreter-me no reinado da lua cheia. Na luz fria que tudo ilumina, mesmo o mais recôndito dos mais recônditos dos sentidos, voltei para casa sem me deixar afetar pelo cansaço do corpo. A alma irradiante.

E de um momento em que só havia sofreguidão e desventura, o cavalo deixado fora nas caminhadas da vida, o ar frio noturno tendo passado fazendo arrepio na pele desprotegida, depois disso tudo, o alimento que a alma ansiava, e o coração pedia. O pão.

E o vinho? O vinho corria insistentemente nas veias de um coração inebriado. Fora a lua cheia? Fora mordida por lobisomem? Cachaça em domingos sem fim? Não, a embriagues volátil da intensidade. O aroma de jasmim no seio sonhado. Todo o chão perdido no pisar que não olha para trás. Como cheiro de pão assando. Como o aceno de mão no adeus.

Eu. Apenas suspeitando, sob o peito, as batidas desconexas. Apenas e tão somente querendo saciar a fome da noite, boca de estrelas, querendo invadir e me perder nas tramas, o rio fácil. Ininterrupto. Sem ponte. As margens isoladas por vagalumes. Fora do ar. Miragem de oásis no deserto sem guarda-chuva. Eu, você, o pão. Quem precisa de vinho?

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

A leveza do fogo

Coloquei fogo no outro lado da vida que me insistia em permanecer.  Porque hoje só quero a leveza da impermanência. Quero a passagem do tempo. Quero o momento que vai sem deixar rastros. Aliás, quero meu pisar pela terra cada vez mais impalpável.

Queimei. Queimei as letras tortas de quem fui um dia. Queimei com restos de revistas velhas, jornais velhos, queimei tudo que em mim era gasto, roto, envelhecido. Amarelo de um passado já remoto. Quem fui, ardeu em fogo brilhante e virou cinza. E antes ainda que se apagasse abafado pela cinza de si mesmo, revirei e revirei o amontoado de coisa meio em brasa meio em chamas, que arderam meus olhos a quase me sufocar.

Fiquei olhando aquilo tudo pegando fogo. A cinza voando com o vento, seguindo um rumo desconhecido. Tudo vira nada uma hora. Como flores de trepadeiras que não dão fruto. Como nuvens que desaparecem sem chover. E fumaça. Fumaça que sobe e some antes de alcançar a copa das árvores. É nesse vazio que a vida se faz.

Depois de tudo, um cheiro defumado no ar. Não sentirei falta daquilo que já nem lembro mais. No espaço deixado na prateleira, um pouco de pó marcando o que se foi. Vou deixar assim ainda como testemunho do que mudou. É do que preciso agora. Reconhecer que andei. Segui o meu caminho, traçado ou não de véspera, bom ou ruim, o meu rumo no meu ritmo. Não preciso ter nada, manter nada, realizar nada para saber que andei. Basta o pouco de pó em volta do que já não há.

E na fumaça que ainda teima em sair da cinza, sinto o cheiro de verniz, resina plástica, alguma coisa que talvez recobrisse uma superfície desaparecida. Talvez disfarçasse a rusticidade, o grotesco, o indomável. Uma máscara de cerâmica fingida que encobria a realidade dura de engolir.  E assim posta, foi se acomodando bem na memória que esquece rápido e é indulgente.

Agora, que o calor da chama passou, e o frio fresco da tarde voltou, sinto fome. A matéria pesada de carbono pedindo sua parte do mundo. E quando pus fogo na vida que restava agonizante, esquecida, buscava a efemeridade e imaterialidade da existência, ela mesma uma incógnita, um mistério. 
Procurava a quântica da vida. Minhas veias cansadas de suportar tanto sangue. Queria a liberdade – o que há de verdade nela – a liberdade que arde transformada, matéria em ar, luz, calor. Precisava urgentemente de esvaziar a pá com que cavava as raízes, a copa invertida da vida, cavava para ficar leve, aberta, exposta.

E num horizonte provável, esvair-me. Dilatar-me. Dissolver-me. Efêmero como o fogo, mas impactante enquanto chama. Não tenho mais as células do corpo com que nasci. Não tenho, sobretudo, o mesmo olhar deslumbrado. Mas a surpresa. A surpresa de me reconhecer frente ao espelho, coberto, perdido tanto tempo no fundo de um armário. Cheirando guardado. E ainda assim, devolvendo minha figura perplexa diante do vazio do olhar. 

Eu também já passei. Fui. Nem sou mais o que ansiei um dia em ser. Aquebrantei. Movi. Mudei. Arrastei comigo um universo de explicações e respostas. Saltei para além dos meus propósitos. Rompi com as formas e exagerei nos tímpanos, trompas e metais. Agora, o sussurro. O silêncio. Dramático. O silêncio do olhar que é a única coisa que resta depois de tudo.

terça-feira, 15 de outubro de 2013

Acredito no olhar



Eu acredito mais no gesto do que na palavra. Mas acredito mais no olhar do que no gesto. É uma necessidade mais que uma escolha.  Ainda assim, o que de fato tenho escolhido para minha vida? Um lugar para morar, pessoas para conviver, amores emocionados e emocionantes. Quanta água desce no rio apenas porque há desnível. Quanta mosca se batendo na janela acreditando que encontrou a saída. Aceitar. A vida dá ou sou eu a encontrar? Atrás daquela montanha, numa clareira perfumada escondida no meio da mata, tem ouro. E tantas promessas. Só é preciso superar a montanha. Só isso.

No entanto, do alto de minha vida bem vivida não tinha sentido nada assim antes. Grandes dramas, grandes amores, grandes sonhos irrealizados e tantas realizações mal sonhadas. Desilusões do tamanho das expectativas. Felicidades instantâneas, inenarráveis, inesquecíveis. Nada semelhante ao sorriso alquímico capaz de transformar pedra cartesiana em maçã doce e suculenta. De transformar em joia um coração brilhante. E continuar a ser apenas um sorriso.

Dos significados da vida, apenas os enigmáticos, os emblemáticos e os problemáticos me importam. Sim, porque as respostas me apaixonam e passam. Enlevam como a maré. E depois voltam à praia, quebrando. A mim importam os desafios dos olhares que se cruzam e se perdem. Os bilhetes perdidos ao espetáculo imperdível. O momento de glória exatamente quando rompe o cordão no peito numa corrida silenciosa entre emoções conflitantes.
Tal qual a chegada da chuva depois da estação seca, anseio pelo momento em que, no cansaço da trilha tortuosa, possa descansar o olhar, não no sol poente vermelho atrás das copas das árvores, não na calma da lua crescente em meio aos prédios, nem sequer no mar lancinante e distante, preciso, sim, encontrar um olhar sereno tão somente. Embora o medo.

Tenho medo da plenitude. De chegar ao fim da estrada. De atingir o topo da montanha. O superlativo me dá medo. O absoluto. O fio da navalha. Os cortes precisos me fazem estremecer. E o risco no escuro. O olho no olho. A morte me dá medo por ser o absoluto da vida. A certeza me assusta, me faz dor de estômago no meio da noite. A crueza polida da certeza improvável. Num gesto, passo correndo a mão na vidraça baça do meu pensamento e desfaço os significados ainda baforados pelo tempo.

Aonde quero chegar? Nem sei se tenho destino. Nem sei se estou numa corrida que tem pista para ser seguida, linha de chegada e prêmio no final. Alguém me contratou para andar em trilhos? Não sou uma locomotiva a puxar vagões, mais pareço um motor de popa definindo a direção ao contrário. Nas tardes sem chuva e azuis, ouço música que o vento traz e leva, um sussurro impalpável apenas adivinhado.  No mais, só a vida correndo pelas veias porque nada em mim se dispõe a correr de novo. De novo, o vento que nunca volta. (um canto de pássaro que passa voando atrai meu olhar para o infinito que há em tudo).