domingo, 9 de setembro de 2018

A nova rota


Hoje já é primavera porque as flores abriram para todo lado. Flores brancas de pitangas. Flores vermelhas de amaryllis. Até o capim floriu em tufos. A natureza segue seus fluxos e ciclos, quase indiferente ao nosso passar ou pensar nela. Na mata ninguém pergunta se um arbusto que não conseguiu virar árvore porque o dossel fez sombra se ele se sente fracassado por isso. E ele continua lá, criando um sub-bosque que faz nossa passagem mais difícil ou a paisagem mais complexa e profunda.

Mas nós, seres humanos, pensamos e sentimos em palavras. Somos criadores de nós mesmos, criando-nos no abstrato e no concreto. No fluir da vida, trocaremos todos os átomos do corpo, todas as células, de modo que quem nasceu não será quem morrerá.

Nós inventamos tudo que é certo e tudo que é errado, tudo que é belo e tudo que é feio, inventamos deus e deusas, a igualdade, as diferenças, a liberdade e o tempo.

Por duzentos mil anos nós nos escravizamos uns aos outros, achando certo. Há apenas duzentos anos passamos a achar errado. Mas ainda resolvemos questões de diferenças de opinião com mortes, violência, manipulação.

É um processo de transformar o animal que somos em algo mais transcendental, mais equilibrado, parecido com um avião que corrige a rota e traça o plano de voo no ar. Mas somos uma frota, não somos uma única nave. Somos bilhões de aviões corrigindo a rota no meio do céu, ao mesmo tempo. Esbarrando, derrubando, explodindo, aterrissando, subindo. O que é errado? Todos temos o direito de errar, de corrigir, de errar, de errar. Por que alguns de nós insistem em chamar isso de fracasso?

Se o próprio deus é uma invenção não compartilhada por todos, nesse tempo todo jamais consensada, e somente diante de um deus haveria os da sua direita e os da sua esquerda, os certos e os errados, então, como poderemos chamar-nos de perdidos ou salvos? Vencedores ou fracassados? Quem venceu, venceu quem?

Sob o julgo da liberdade controlada, seguimos escravos. Sob o domínio do certo e do errado – de quem? – seguimos escravizados, sujeitos a punições como há tanto tempo vimos infringindo uns sobre os outros.

Não temos mais aquela escravidão enorme, explícita, em que os escravos se sabiam sem direitos, restando-lhes apenas a opção de se rebelar em alguns momentos, e em que os seus proprietários se sentiam no total direito de debelar tentativas de fugas.

Não. Vivemos a escravidão velada com correntes invisíveis chamadas tempo, correria, progresso, crescimento, sucesso. Como antes, podemos nos rebelar, e tentar uma fuga, deixar de compactuar dos valores de competição, que nos colocam sempre acima ou à frente de outras pessoas. Deixar de fazer o papel esperado: sair correndo em busca do sucesso e do crescimento que está sempre além, que está no futuro, que está intocável, inacessível, que exige esforço do braço e das pernas, que exige uma mente cada vez mais calculista, pragmática, fria.

E cada vez que nos tornamos assim, intelectualizados, represamos os sentimentos, esse sexto sentido perdido e simplificado, que nos aponta onde dói. Não pode haver sucesso sem felicidade, nem pode haver felicidade com dor, seja própria ou alheia, infringida ou auto imposta. Então, a frieza ou indiferença parece ser o antidoto para seguir em frente. Escravos.

Esse jeito de ser, agressivo, competitivo, arrojado, talvez nos tenha salvado diante da natureza e suas forças. Foi preciso dominar animais mais fortes, nas condições ambientais as mais variadas e inesperadas. Foi importante sair do interior de uma floresta e andar pelas savanas, rumo ao resto do mundo.
Mas hoje transformamos em selvas as cidades. Provocamos desastres climáticos, desordens naturais; para corrigir problemas, criamos tantos outros. Não existem mais animais selvagens nos nossos caminhos, a não ser nós mesmos: outros de nós.

Na escala de progresso que criamos, inventamos a igualdade, mas dissemos categoricamente que, quem tem mais, pode mais. Que, em detrimento dos direitos, alguns têm poder sobre outros. Que alguns podem mais, porque são bem-sucedidos. E os que não podem, é porque não se esforçam. Num mundo de recursos limitados, se alguém tem mais, necessariamente outros terão menos. Mas não importa. Esse modelo é inquestionável. Aceita-lo é entrar para um presídio do qual não sairá jamais.

Exceto pela rebeldia. Mas a rebeldia também é um recurso do modelo: promove a guerra, vende armas, polariza ainda mais.

Então, talvez só nos reste, como Gandhi, a rebelião da paz: o agir feminino. Sem competições, sem exaltação da voz, sem o uso da força, sem mecanismos inibidores, debilitadores, restritivos. O feminino da mãe que acolhe os defeitos, os erros. O feminino que defende os fracos – porque têm direito em sê-lo. O feminino que vai além da seleção natural do mais forte. O feminino do igual, sem comparativos, sem qualitativos, sem defesa.

Talvez só nos reste como libertação, não aceitar as regras impostas para o sucesso. E, na nossa marcha para a transcendência de quem somos, parar para ajudar quem não possa caminhar junto. Ouvir quem não sabe falar. E tentar explicar para quem não consegue entender. Parar e ser contemplativo. Não se prender ao tempo que passa. Não se ater ao que não fez ainda. Fazer poesia. Fazer arte. Soltar os sentidos e sentimentos da prisão em que se encontram num peito que não sabe lidar com as ideias que tem. Sobretudo, a libertação se dará quando entendermos que não há divisão entre corpo e alma, entre coração e mente, entre emoção e razão.

Que somos um todo.

sábado, 14 de julho de 2018

No final do mundo


No final do mundo nos encontraremos, com um pouco de sorte, com um sorriso no rosto. Sempre é muita sorte encontrar um sorriso no rosto quando o mundo acaba. Mas, se assim for, nosso encontro será diferente dos outros todos de nossas vidas, porque será definitivo. Nada é definitivo na vida, nada é tão supremo que corte como um bisturi ou abismos separando dois mundos. Essencialmente o mundo é um só.

Então, naquele momento em que nada mais passa a ter importância, eu olhe para você e pense no que fomos e no que desejamos ter sido. Porque, como um rio, a vida escorre pelos caminhos possíveis, e despenca pelos impossíveis. Saberei entender o que fui buscar e o que encontrei, sempre dois tempos nos tempos dos amantes.

Até lá, não levarei comigo senão o pó do caminho. Estradas poeirentas no inverno e lamacentas no verão fazem dessas coisas conosco: marcas arrastadas que desaparecerão tão logo passe o próximo vento, desses ventos que apagam o gesto perdido na distância. Ficarão somente as pegadas vislumbradas pelo último olhar antes de levantar a cabeça e seguir em frente.

Sim. O mundo há de acabar num derradeiro momento, mas enquanto isso, vou perdendo meu tempo olhando para as montanhas de manhã quando acordo, ou ouvindo o farfalhar das folhas umas nas outras, inocentemente. Dá para sentir o aroma das flores que amanhecem o orvalho da madrugada quando se anda ao lado delas sem fazer barulho. Elas retribuem com um aceno leve, cúmplice, discreto, muito simples, quase imperceptível. Eu vim buscar essa vida.

Mas sabendo que nos encontraremos no final do mundo, ficarei desapercebida de sua presença nos cotidianos que se intercalarão até lá. Vou riscar com os pés na terra um pouco da suavidade do momento. Vou me entregar a esses prazeres que são os dias que escolho não fazer nada ou fazer tudo ou fazer e desfazer. A vida é uma liberdade que se escolhe nos ciclos que se sucedem.

Sim, algo ficou de tudo, na verdade, de tudo fica um pouco. Talvez uma poesia escrita na retina, talvez uma pedra que fique no caminho. Mas nenhuma, nem a poesia nem a pedra, é quem sou agora, depois de tê-las passado na pele, a rudeza de uma e a realidade da outra.

No final, nada tem tanta importância que nos faça parar a estrada ou sentar para recuperar forças. A força está em seguir em frente, e a deixar-se expor ao sol, sem medo, com ou sem dor. Eu não gosto da dor de jeito algum, parece inumano, parece que não é próprio dos neurônios, mas sentir é isso. Quem escolhe viver o sentido da vida precisa passar pela dor necessariamente. Precisa arranhar as unhas nas encostas dos barrancos tentando galgar um passo acima, ou tentando segurar-se para não escorregar. E qual é a verdadeira diferença entre a dor e o prazer? Um consentimento, talvez.

Se posso dizer o que farei ao encontrar você no final do mundo, então já fica aqui o meu recado e não precisaremos nem trocar palavras ou gestos, porque o que quer que eu aprenda até lá, não importará a mais ninguém, o que quer que eu mude nesse tempo, é apenas uma escolha minha. Dispo-me de todas as palavras que permearam nossos encontros, de todas as possibilidades, e também de todos os acertos e erros.

Assim, desnuda, deixo nessa beirada da estrada, perto da cerca para não atrapalhar mais ninguém, deixo seu nome gravado na efemeridade do pó, o último resquício ainda preso na minha bagagem. Depois, deixo-me levar pela aragem leve feito pólen indo fertilizar outras flores.

domingo, 1 de julho de 2018

Um exercício para estar junto


Estar só é uma realidade ao mesmo tempo libertadora e assustadora. Porque, se de um lado você não deve satisfação a ninguém, por outro não é tão ruim assim ter alguém que cuide de você, ou que você tenha que cuidar. A liberdade mesma é assustadora. Agora você pode fazer o que quiser: e o que quero mesmo?

A mim parece que a vida toda é um misto de dores e alegrias que se sucedem ou se permeiam, se confundem. Às vezes me emociono em dizer “eu te amo” como se aquilo fosse uma avalanche descendo como lágrimas dos olhos. Às vezes um adeus é repleto de silêncio e ar seco, não ecoa, não reverbera, não incide. Mas pensa bem: o problema é do ralador ou do queijo? O queijo se esfola todo, mas não dá para culpar o ralador, afinal, ele é um ralador.

Sempre pensei na dor como algo entre lutadores, alguém que acerta outro no seu descuido. Isso é muito fácil quando parece que é o outro o responsável pelas dores que surgem. Agora, viva sozinho e me explique quem foi que deixou acabar o gás, o café ou a pasta de dente. Quem deixou a luz acesa, ou esqueceu de dar a descarga. Esse é outro aspecto do “viver só” que assusta: não tem mais ninguém para pôr a culpa.

Então, aprender a viver só é um grande passo para saber conviver com outras pessoas. Porque se você estiver esperando que vai poder deixar de fazer as coisas que tinha que fazer por falta de mais alguém, então encare: convivência para você é conveniência. Fala sério.

Ter um sócio, na vida ou nos negócios, não é largar tudo na mão do outro, porque isso é um peso, não é sociedade. Sociedade deve ser um movimento em que todos ganhem, não apenas um, detentor do poder de decisão ou da estabilidade. É muito cômodo colocar sua vida nas costas de outra pessoa e se isentar de tudo que der errado. Porque errar é inerente a quem age, mas quem não faz nada não está imune. Às vezes o erro esteve no ficar calado, omisso.

É muito difícil encarar os próprios erros, mas mais difícil é se perdoar. Eu sei. Por isso a dor. Dói muito admitir, e não é por orgulho, só, é que recebemos uma educação tão moralizadora que parece um pecado capital errar. Parece que só nos restará o inferno, que devemos pagar pelos erros, aquela coisa toda dramática e fatalista.

E afinal, o que é acertar? É o sucesso? Mas sucesso é tudo, todo o resultado atingido é um sucesso. Não ganhar em primeiro lugar é fracasso? Bem, a mim parece que inventamos um sistema de tortura e estresse quando colocamos elementos da vida em disputa. Porque a vida é uma história com fim previsto e certo. Morrer é certo. Certíssimo. E tem tantos caminhos possíveis para chegar lá que as escolhas confundem um indivíduo, imagine se ele está indo acompanhado e ambos tenham que decidir juntos o traçado.

Definitivamente, para mim, o pior de um relacionamento é quando existe um medo – explícito ou implícito – de errar. E fica aquele jogo de empurra-empurra, deixa-que-eu-deixo, e tudo mais. Talvez por isso o amor de amigo não seja problemático: na relação de amizade existe a cumplicidade, mas não a sensação de que, se o outro errar, vai levar você junto. Você não quer ver seu amigo mal e, ainda assim, aceita nele o direito de fazer o que quiser, e de que, muitas das vezes, ele vai bater com a cara no muro. Você reconhece a individualidade dele. No amor afetivo é muito fácil ultrapassar esses limites e se entender como uma unidade. De almas gêmeas a irmãos siameses. E a dor.

Uma coisa eu aprendi: a dor é um erro. E se estiver doendo muito, tenho que mudar, se quiser que pare de doer. Essa é uma decisão minha e de mais ninguém. Não é o carro que está indo na minha frente que tem que aumentar a velocidade, sou eu que tenho que acelerar e sair de trás – se tiver motor. Se não tiver, não adiantará brigar.

Sim. Estar só não é uma solução, é apenas um passo. Nunca vou desistir de me relacionar com alguém, e eu ia dizer com alguém em especial, mas no final, todas as pessoas que você escolhe para se relacionar são especiais (exceto para os cínicos). Porque, sendo a vida boa na essência, quero compartilhar isso com outra pessoa.

sexta-feira, 29 de junho de 2018

As Rochas


As rochas, por mais duras que sejam, degradam no tempo, ao sol e vento, e até mesmo os himalaias um dia se tornarão areia ou pó, sem deixar sombra. As árvores um dia definham, perdem as folhas e os galhos secos caem como se fossem borboletas que ficaram muito tempo pousadas e que levantam voo inesperadamente sem peso. A vida para de correr como se fosse seiva, doce e desejada, perde o ritmo, perde o passo. Um dia.

Enquanto isso, os himalaias continuarão sendo imponentes e gigantes, a floresta continuará sendo alento, abrigo, um desenho repleto de verdes espalhado no horizonte. Enquanto isso, a árvore continuará alimentando frutos, que alimentarão pássaros, que riscarão os céus em bandos ou solitariamente, e o silêncio será repleto de gorjeios, cantares, e outros chamados.

Enquanto não chega o momento de virar pó, tudo, ignorando seu fim, continua sem pressa e sem dor. E eu, nessa teia intrincada de fios, fazendo malabarismos para chegar na outra ponta – para quê? – vou observando a vida, que vai morrer, sobrevoar as flores do manjericão em zunido de motor em forma de insetos. Vou cortando as flores mortas e secas de seus galhos pendentes para que caiam e floresçam em outras terras e para que eu tenha a sensação de que fui responsável pelo seu semeio, pela sua disseminação e permanência. A vida gosta de pensar que cria vida para perpetuar-se. Eu, que tendo escolhido não ter filhos, plantei muitas árvores no caminho. Quantas terão vingado? Quantas estarão hoje dando frutos ou sombra, ignaras da minha mão de um dia?

Talvez a vida valha mais pelas pegadas que se apagaram do que pelos monumentos erigidos a deuses ou reis ou outros tipos de poder imaginado. Se o rastro da vida é exatamente sua impermanência e sua passagem, talvez eu ainda valha mais pelas músicas que dancei e cantei, e que o vento levou para longe até perder-se indistinta dos murmúrios de regatos, do balançar das folhas das ervas e matos. Minha alma foi junto, como o sino de uma igreja repicando o momento solene e transcendental que faz vibrar o peito de todos que atinge. Minha alma é a corda da viola que ressoa a um simples toque, leve e rápido, ora mais curta e grave, ora mais longa e aguda. Talvez para nada. Nem para ser belo, mas que pode causar arrepios sem querer.

Nesses dias de inverno, em que o sol é claro e o céu é simples azul, parece que o tempo me sobra para contemplar. Então, para brindar a efemeridade da vida, coloco a nona sinfonia, esse fluxo de energia que se chama alegria, para ser o fundo musical. E se tudo que é vivo, morre um dia, nesse que é um filme com final contado, não importa tanto onde chegar, mas como caminhar, o que fazer enquanto vejo passar a paisagem e os dias e o tempo. Importa saber quem caminha ao lado, o que faz e o que quer. Porque nada ficará senão o eterno de cada um.

Meu eterno é uma mescla de afeto e decisão. Nem sempre bem dosados, nem sempre com o equilíbrio necessário. Mas o que posso fazer? Sou aquele tipo de pessoa que se apaixona como quem suicida, num mergulho para o abismo, o desconhecido, o absurdo. Quem tem medo do desconhecido não se apaixona, porque é inerente à paixão viver uma aventura. Nada dessa coisa bem-comportada e calculada, cheia de tapetes e toalhas de mesa, quadros combinando na cor, nenhum torto na parede, tudo harmônico.

Minha vida real é assim com um pouco de pó e marca de copo; como um copo de cachaça, branca, para não deixar dúvidas. Eu sempre tive medo da plenitude, da moderação, da timidez. Eu, que sou mais parecida com o herói ou o vilão, mas nunca com a vítima. Eu, que morro de tédio no conforto de um lar sem desafios. Dentro da minha vida calma deixo os vulcões explodirem seu magma desajeitado e rude refazendo minha crosta em castigado vir a ser. O que sou hoje é apenas uma passagem do ser: o fígado de prometeu, as cinzas da fênix.

De mim sobrarão algumas palavras levadas pelo vento, até que se percam. Na minha pele marcada pelos toques e arrepios, não ficará a tatuagem do seu olhar. Não deixarei um adágio emocionado e sensível para ninguém experimentar o meu sentir. Essa é a sina dos apaixonados: seus rastros, leves e ligeiros não permanecem sob o pó. De dia, como elfos, vimos perturbar o sossego do lago e, à noite, no silêncio escuro da noite, pé ante pé, o coração batendo na boca, mal querendo controlar a respiração ofegante, sussurramos para quase ninguém ouvir: eu te amo.

domingo, 22 de abril de 2018

Voar é preciso

Não tem saída, o beco, como não tem outro jeito, o pássaro, senão voar. E se tudo for minha imaginação, prefiro ser o pássaro que se perde no ilimitado céu, do que ser aquele lugar que te aprisiona. Porque um momento amanhece novamente, e, na luz, voltamos a nos vislumbrar como somos: etéreos corpos em corações partidos. Por mais que procure, os pedaços que faltam clamam por seu lugar, nas ruas, nas encruzilhadas, nas esquinas de outras vidas que se foram. 

Prefiro ser o pássaro que parte quando chega o inverno, levando consigo as sementes do calor que viveu. E assim manter-se aquecido quando não restarem senão promessas de uma nova vida. 

No esforço do voo, terei que deixar pra trás tudo ou quase tudo, levando comigo apenas o que for leve, o que marcou a pele, a retina e a língua, o que resistir ao vento forte e as alturas. Levando um pouco do pó talvez, pra me lembrar de que vivi, e do que fez secarem minhas lágrimas, antes da beleza de um por do sol. 

Eu sei que a poesia é inútil. Inútil também é o amor. Assim, entre uma e outro, vou apagando minhas pegadas, vou aprendendo a querer e a voar, porque amor que é amor, não agarra, é livre; não morre, transcende. E se sou como tudo: energia, um fragmento de luz passando pela fresta da janela feito lua cheia, se sou um fio de teia de aranha balançando na brisa esperando alcançar o outro lado da porta, o outro lado de tudo, pra fazer uma ponte, pra ir além, se sou quase invisível que não sei onde estou ao certo, então posso me reinventar a cada vez uma nova pessoa, um novo mapa, uma nova rega sobre as pétalas abertas, delicadas, perfumadas, deixando um rastro de aromas no ar.

É preciso aprender a partir, a partir sem olhar para trás, a aceitar que a vida é o caminho e não um lugar. Entender que crescer é também um pouco solitário, um pouco silencioso, e muito difícil de identificar quando acontece. Crescer é apenas seguir em frente, sem ficar batendo o pé esperando que a vida seja aquilo que desejo e não aquilo que é.

E no azul sem fim do céu, alço o voo que havia planejado antes, muito antes, quando resolvi abandonar a terra firme. E se bem que a terra me prendia e pesava, agora, que o alto é realidade, o frio me invade e estremeço. A pele quer esse vento passando apressado, mas o coração hesita. Sempre ele, sempre ele querendo ficar, querendo tudo, querendo mais. O querer é uma prisão cheia de presentes.

Quando escurece e o dia finda, como todos os pássaros, encontro um pouso tranquilo para descansar. Lá embaixo tudo continua como antes. Os gatos na janela, os cães latindo para qualquer ruído, as pessoas seguindo sua vida nas rotinas que quiseram. Consigo ouvir a música que toca na minha casa, no mesmo lugar. De noite até os macacos ficam quietos. Olho para mim, deitada na noite longa, esperando um milagre, sonhando com o porvir. Coitada de mim: não existe porvir. Enquanto ajeito as asas para me aquecer e equilibrar, sorrio por dentro. Não existe porvir, pequena.


sábado, 21 de abril de 2018

As bruxas estão de volta


As bruxas estão de volta. Agora voando soltas e leves pelas aldeias físicas e virtuais. Isso mostra que as coisas andam mudando para o lado do feminino, embora haja um nítido movimento de reatividade. É que o feminino, diferentemente do masculino, não é contundente, não compete, não entrincheira nem revida. Claro, o verdadeiro feminino. Mas era de se esperar que, depois de tantos séculos de dominação patriarcal, fosse natural uma certa contaminação desse padrão e que mesmo as mulheres assumissem o papel masculino para conseguir certa projeção.

Sempre me intrigou como é que esse padrão masculino era perpetuado se quem educa e passa a ideologia dominante é a mãe, uma mulher. Cadê a bruxa? Como é que ela não via que estava sendo usada para manter o status quo? Então, um dia, ouvi de uma amiga que, certa vez, flagrou o marido passando a mão na empregada e, imediatamente, mandou embora a moça. Fiquei intrigada: por que a moça e não o marido? Independente da reação dela, se aceitou ou não, foi ele que tomou a atitude. Mas a ideologia patriarcal declara que sempre, nessas circunstâncias, a mulher – e sobretudo a mulher solteira – é responsável pelos descalabros do homem macho. Sim, porque macho que é macho não pode perder uma oportunidade de mostrar quem domina.

Comecei a entender. É essa a forma de manter todas as mulheres sob o regime patriarcal: colocando-as umas contra as outras. É verdade que bruxas e núcleos familiares fortemente matriarcais protegem suas mulheres. Mas somente as suas. Qualquer outra que se aproxime é um risco, representa um perigo, é desarmoniosa, desagregadora. E assim, essas mulheres, umas contra as outras, olham-se com desconfiança. Elas vêm roubar seus maridos e filhos. Elas seduzem, articulam, manipulam.

O pior é a figura masculina desse desenho: ou um grande tonto ingênuo, ou um grande palerma, no final e no mesmo, infantilizado, que não sabe ou não pode ou não quer resistir aos encantos sedutores dessas megeras, que em outros tempos também eram chamadas de bruxas. Assim, colocando os homens na posição de vítimas, precisando de proteção que só mulheres conseguem dar, invertendo os papeis, o patriarcado coloca a mulher como salvadora e algoz de si mesma. Ao invés de reconhecer o aprisionamento de um tal papel, ela se vê atacando outra igual.

Não é que o machismo é perpetuado espontaneamente pelas mulheres – embora algumas o façam para obter vantagens, como, aliás, muitas pessoas em geral fazem – mas é o que resulta quando uma mulher põe a culpa em outra pela infantilidade dos homens. Sempre que você souber de um homem casado que se envolveu com outra mulher saberá que a culpa é dela. Claro, ela é solteira, não tem nada a perder e ele, que tem família, compromissos, responsabilidades, não pode resistir a essa tentação.

O que, talvez, as bruxas estejam descobrindo novamente é que sim, elas são tentadoras, sim, são encantadoras e poderosas, podem sim, virar a cabeça de outra pessoa porque dominam os sentidos, porque reinam no oculto, porque sentem além dos axiomas, e pressentem os caminhos que devem seguir para atingir seus objetivos. Mas também, talvez, estejam agora entendendo que não lidam com um tão frágil homem.

Não se trata de uma declaração de guerra. Apenas um reconhecimento de que o inimigo não é outra mulher, mas uma ideologia profundamente arraigada na religião e nos papeis desempenhados em sociedade, perpetuados pela invenção do casamento, do sentimento de propriedade que se estende às pessoas da família e do entorno.

As bruxas talvez deixem de ser queimadas em praça pública – como ainda são hoje em dia – com a formação de novos núcleos familiares, sem a estrutura patriarcal, sem a dependência financeira dos membros (a mulher trabalhar fora é uma falácia financeira), sem propriedades (que foram a contrapartida mais evidente para essas mulheres manterem o status quo).

Eu anseio por um mundo em que Camilles Claudels não sejam trancafiadas em manicômios apenas por manifestarem sua genialidade. E que tantas outras mantidas discretamente anônimas possam brilhar para além de seu papel de mãe. Para além de seu papel protetor e mantenedor. Para além dos limites impostos a todos os cavalos selvagens que foram levados para domesticação, em redondéis cor de rosa. As bruxas voltaram, e que voltem a ser apenas mulheres.

sexta-feira, 6 de abril de 2018

O agora e o sempre


Quanto tempo dura o agora? E quanto do que foi “antes” permanece nesse agora? Como seguir em frente, crescer, ampliar a consciência no que sou hoje sem o peso do que já foi e já fui? Como olhar para frente sem sentir o vento do que passou soprando na nuca, cochichando na orelha? Afinal, o que é ressurgir? Renascer? O que é renovar-se?

Eu consigo andar no mesmo caminho todo dia encontrando algo de novo nele, uma flor que não havia, um pássaro que voa, inesperado, com rabo amarelo e preto, um entardecer vermelho, uma lua escondida nas nuvens, mágica. Eu consigo ver diferente o mesmo livro já lido, consigo entender o que não havia entendido antes. Eu percebo a diferença entre quem já fui e quem sou hoje (penso que melhorei muito). Mas também sei que não mudei tanto. Mudei de casa, de profissão, de cidade para roça. Mudei meu paladar, passei a comer coentro, a gostar de cerveja, cachaça, deixei de comer carne. E ainda assim, continuo sendo a mesma, como um parafuso que gira e gira e vai entrando na madeira, parecendo diminuir.

Se eu tivesse que escolher um tempo que não existe, para mim, esse tempo é o futuro. Será? Quando será? O futuro é como esperar que o leite ferva: quando você vê, já derramou. Se você sair correndo, nunca alcançará. Se não fizer nada, já passou. Nunca chega. Não existe, é apenas uma possibilidade, um alento. É como acreditar em deus.

Mas o passado é algo que não é mais. Também não existe. O que sou é uma constante transformação, como o fogo que come a lenha para ficar tremeluzindo lindo e quente. A vida é um movimento, não um estado. É o vento que passa, o sangue que corre, o coração que vibra. A vida é um ritmo, a batida de um tambor, às vezes forte, às vezes nem tanto.

Se eu quisesse viver o presente, apenas o presente, esse agora que me acorda, me dá sentido, olhando para as pessoas que conheço, conversando com elas, como não me deparar com quem conheci um dia, em outro momento, e sim o que elas são agora? Quem são agora? O que elas mudaram enquanto eu não prestava atenção? O que ficou diferente? Se eu mudo a todo instante, elas também mudam. Mas o que sei eu do que mudou? Quando penso em alguém, penso em quem conheci, alguém que já não é mais.

O meu presente – o agora – é uma mistura de quem sou e o que penso que é o mundo que passou, posto que tudo muda. Você é uma imagem que conheci, e não a pessoa que é agora, porque eu ainda não sei quem você passou a ser. Sempre que aprendo uma coisa, ela já não me serve mais. Quando aprendo a lidar com uma situação, ela já acabou. Quando aprendo a lição de um relacionamento, e estou pronta para seguir em frente, já não estou mais no mesmo trem, vejo pela janela a estação ficando para trás.

Então, se sou também como o rio que passa, sempre outro por baixo da ponte, sempre é outra a ponte que vejo passar. Nada é igual, mas tudo se repete. Quando penso que atingi o mar, eis que estou presa numa curva, carregando tanta bugiganga que parece que fiquei ali, no mesmo tempo, sólida. No entanto, o rio é a curva, é o mar, é a nuvem, e é a queda barulhenta, fumacenta, que alisa as pedras, e não volta jamais. O rio é também a lágrima que escorre, e a boca que se enche de água só de pensar. O instante. O átimo. Aquele momento em que nem sei o que aconteceu ainda. Porque, quando sei, já parou de doer.

No momento em que penso, continuo sentindo, e assim, tudo se amplia, tudo se espraia e fica sem palavras. Mas, de tudo que passa e se move, de tudo que muda ou transcorre, de toda essa vida que se derrama como se corresse fora das veias, no mesmo sem tempo de entender, no ritmo vertiginoso do piscar dos olhos de brahma, eu procuro por um “porque”, por uma razão, eu procuro desesperadamente ter calma para não me perder, para responder à minha insatisfação com um movimento acolhedor, de aceitação e afeto, porque toda insatisfação é um motor de arranque, não é uma lição ou um aprendizado, é apenas uma energia que não pode ser ignorada. E talvez porque, por entre as brumas surreais que há em todo relacionamento, haja quem sabe uma mão estendida me esperando para ser descoberta.

sábado, 17 de março de 2018

Flores roxas como o amor


Olho pela janela, para o meu entorno verde e monótono de montanha, repleto da mesma coisa, árvores e vegetação, e me encanto como sempre pelo diverso e diferente que o dia me mostra. Hoje as árvores de flores roxas estão em evidência no meio dos verdes das copas. E não há macacos dando seu sinal de passagem. Quietude. Perto de mim, apenas o zumbido de abelhas no manjericão florido. O sol momentaneamente escondido atrás de nuvens, densas, de passagem. Tudo passando com o dia.

Minha vida igualmente monótona de montanha, se preparando para o outono, vista da janela para dentro, também pontua silêncios e roxos. Posso escolher se passo ou fico, no entanto, e escolho passar. Passar como o vento que balança as folhas secas até que elas caiam. Passar como o dia, no seu ciclo de claro e escuro, de paz e zumbidos no ouvido. A vida zumbe como abelhas em flores nos dias que sucedem chuvas intensas.

No silêncio tênue que se forma de eu estar olhando a vida pela janela, entendo que nem tudo pode ser como meu desejo intenciona. Que nem mesmo quando me visto inteira dessa intenção, despojando-me de carapaças, armaduras, roupas, segunda pele, estando nua, nem assim alcanço algumas vezes o meu desejo. Parece-me que o braço é curto demais, que me falta tamanho, que meu trem não parou na estação, e fico me vendo chegar e partir sem alcançar.

Mas alcançar o quê? Um abraço, talvez. Um repasso. Nada que signifique vitalidade, mas apenas o efêmero da vida. Aquilo que amanhece e se desvanece porque segue em frente na fugacidade da emoção. O amor, enfim. Porque não há nada mais tênue que o amor. E não há nada mais fugaz que amar. Porque quem ama algo que amanhece, entardece e anoitece para tornar a amanhecer, não ama uma única vez, mas várias. Ou então, fica sozinho no instante seguinte, chorando pelo que já foi, pela aurora que é lua cheia agora.

Amar é deixar ir, é partir sem levar nada. Amar é sonhar sem nunca concretizar ou realizar, pois tudo o mais é um estado de ser, e não ser. E a própria vida é esse suceder de amares, hoje de flores roxas, amanhã amarelas. Às vezes os pássaros cantam, outras grasnam. O deus que eu sou, verde no fim do verão, tornando-se opaco no inverno, mas sendo ainda deus.

Fico melancólica nesses dias em que reconheço minha efemeridade. Eu, que preciso do encantamento para dar o próximo passo, eu que busco – como a mariposa – a luz incessante do sol, e descobrindo ser uma chama de vela, que se apaga com o sopro do vento, o balançar da minha asa. Melancólica pelo meu desapontamento em me ver no escuro, porque o escuro, como o mar alto, é um infinito de possibilidades estonteante e perturbador.

Fico melancólica e pensativa, no hiato do amor, esquecida de que tudo é ciclo, de que tudo vai e volta, insistentemente quando me recuso a ver, mas que me traz oitavas a cima quando consigo perceber a diferença de cada volta. Porque na sucessão dos dias e noites que já vivi, hoje estou mais calma e tranquila – ainda que melancólica – do que jamais estive. Estou mais feliz e reconfortada do que jamais vivi, apenas por me reconhecer sem espelho.

Minha dor de hoje é não ter flores roxas para exultar no meio do verde indistinto de que me visto, invisível, despercebida. Não, eu não precisava ser a árvore mais alta entre tantas araucárias, nem a mais flexível nem a mais exuberante. Eu não precisava aninhar famílias de pássaros nem os alimentar com insetos ou frutos. Não precisava sequer fazer uma sombra para amenizar o calor de quem se aproxima. Eu podia ser somente aquela que você esculpe iniciais ligadas por um coração, como quem eterniza uma emoção. Como quem acredita que emoções perdurem, resistam, persistam. Para além da marca deixada na casca dura.

segunda-feira, 5 de março de 2018

Quero um relacionamento


Na busca por identificar quais as características que os casais em relacionamentos duradouros e longevos têm, observo a paciência. Não só paciência ao responder ou agir, mas também ao ouvir. Porque, de modo geral, nossos diálogos internos se sobrepõem ao que a realidade se mostra, e muitas vezes já sabemos a resposta antes, já deduzimos os pensamentos que motivaram o outro, o que nos faz impor um ponto de vista (nosso) em detrimento das explicações, justificativas ou, apenas, de outro ponto de vista diferente que o outro tenta nos apresentar.

Isso me faz refletir sobre outra característica: como diferenciar essa imaginação própria – fecunda e cheia de eu sei – da intuição – aquele saber que não tem explicação, decorrência ou causa, mas que é instantâneo – ambas, imaginação e intuição, surreais e suprarracionais. Como identificar quando estamos contando – ou recontando – uma história para nós, entremeada de insegurança, passagens passadas ainda muito à superfície da pele, decorrentes de outras experiências doloridas, semelhantes, e quando uma nova história se apresenta de fato, inesperada e pontualmente, um aprendizado de verdade?

Talvez, antes de tudo, eu tenha que refletir por que haveria de desejar um relacionamento duradouro e longevo para minha vida, já bastante repleta de causos, pequenas histórias magníficas, grandes fracassos insistentes, muitos amores e eu te amos? Por que um relacionamento deve durar no tempo para mim, que tenho que desenvolver paciência – a qual poderia ser uma herança, um presente, um achado – e que não sei separar dos meus dias e noites a imaginação fertilíssima e insondável dos meus sonhos? Por que haveria de querer para minha vida o desafio, mais do que ir dormir e acordar com a mesma pessoa, de viver com ela os dias e as horas e os minutos, nos vazios de me encontrar longe, e nos repletos de entender que me basto para minha vida? Na minha arrogância de pensar que sei do que preciso e quero, e na singeleza dos momentos lindos e simples de não querer mais nada. Por que vou atrás daquilo que não tenho, como se procurasse ouro onde não há lavra?

Quem sabe eu seja ambiciosa, ousada, e precise desesperadamente me superar nos limites mais evidentes, ao menos. Ou essa seja a fase da vida que toda pessoa reflete sobre o que fez até o momento, tentando explicar o que não deu certo e o que deu – às vezes, esse último é o que mais carece de explicações. E embora desconheça efetivamente minhas motivações, anseio por um relacionamento que possa durar além das dificuldades em lidar com diferenças, além das restrições que a vida conjunta impõe à liberdade individual e, sobretudo, à curiosidade premente de querer saber se há vida nesse planeta e de que tipo. Eu, uma astronauta muitas vezes presa nas atmosferas alheias.

Propositadamente não me refiro ao amor. Amor é aquele sentimento que permeia os contatos, às vezes intensamente, às vezes nem tanto. Não. Quero ver os relacionamentos naquilo que não os liga, mas naquilo que faz querer ligar. Porque não é o amor que mantém os relacionamentos. E nem é a maturidade, pois muitos são os encontros da vida toda que começaram no primeiro – para aqueles que souberam levá-los adiante. Também não falo de paixão, aquele arrebatamento que anula regras, contraria contratos, ridiculariza a razão. Pode até ser que a paixão seja uma isca, mas não é o jantar, não é sequer o peixe. O viver compartilhado – talvez não no mesmo teto, mas sintonizado – requer objetividade.

Por fim, mas não menos importante, preciso encarar outra questão: quero um relacionamento, qualquer que seja? Quero casar com o casamento – eu, que não tenho bens para deixar, que não tenho senão incertezas – ou quero alguém em particular? Porque procurar alguém para caber na casa que construí é mais restritivo do que abrir mão da liberdade própria e alheia. No infinito das possibilidades, procurar alguém que caiba nos meus sonhos de relacionamento, naquilo que trago pronto, desenhado no papel marcado pelas tantas vezes que apaguei e corrigi, colorido nas cores dos meus anseios, hoje, essa busca se parece com o procurar uma agulha no palheiro. Ou me contentar com o que está ao alcance do braço, adaptando uma vez mais o projeto.

E, afinal, o que é relacionar-se senão um contínuo adaptar-se ao que se apresenta de novo e velho nos dias que se sucedem? O que é senão um cotidiano encarado com generosidade? Senão a rotina que amanhece sem flor um dia, ou nublado outro, mas que em geral traz um olhar cúmplice no que quer que façamos de certo ou errado? Pode haver emoções fortes e surpreendentes até mesmo quando planejamos com detalhes. E o enfado é mais resultado da falta de vontade do que dos acontecimentos. Isso é viver, e relacionar-se é mais ou menos como viver, só que a dois.




domingo, 4 de março de 2018

Eu te Amo


Eu já disse Eu te amo a diversas pessoas, diversas vezes, algumas repetidamente, outras nem tanto. “Eu sei que vou te amar por toda minha vida” foi um sentimento que permeou todos meus encontros, com todas as pessoas com quem vivi ou compartilhei afeto. Foram pessoas que se sucederam nos meus dias, ou eu nos delas, como se fossem únicas, absolutas, ímpares – e assim, talvez, tivessem sido naquele momento. Não havia falsidade nessa expressão, ao contrário, havia muita sinceridade, havia inclusive o desejo de que isso se realizasse. Antes de ser uma declaração de amor, era uma oração ao universo, para que aquela felicidade momentânea perdurasse ao infinito, até o fim das nossas vidas.

E, embora algumas dessas pessoas não tenham permanecido mais que alguns meses, outras anos indecifráveis (terão sido felizes todos?), a simples lembrança delas hoje mostra sua importância – e que tenham sido importantes por sua dureza, sua tristeza, ou pelo colorido dos dias, não diminui a importância ainda assim – a simples referência de terem passado pelos meus braços, ou por eles se lamentarem por isso, são marcas do que o amor traz, constrói, transforma.

Talvez seja muito romantismo de minha parte acreditar que o amor seja tudo, absolutamente tudo, de que precisa uma pessoa para viver sua vida em paz, feliz, em harmonia, com crescimento (nessa última parte incluo o que não está explicito, mas que promove crescimento: dores, discussões, divergências, tempos diferentes, hormônios, e uma gama de outros sentimentos tais como medo, insegurança, orgulho, vaidade, e que tornam a vida compartilhada tão dinâmica e diversa). Mas mesmo os amigos queridos precisam ouvir Eu te amo de vez em quando. E atualmente até mesmo as relações profissionais carecem dessas declarações e aceitam demonstrações com prazer.

Mas já acreditei piamente que amar fosse um verbo intransitivo, bastando apenas que eu amasse para sentir-me plena, feliz, fluída. Que o amor platônico fosse tão bom e tão significativo que dispensasse declarações faladas ou expressas. De que bastava tão somente a visão do ser amado, observá-lo em seu dia, sua normalidade cotidiana, no seu gesto simples, espontâneo, para que me sentisse um ser especial, amado por deus.

Isso foi há muito tempo. No tempo em que eu não havia experimentado ainda o contato dos lábios que se desejam, do olhar que penetra. No tempo em que eu não sabia o que era sofrer por amor. Em que não entendia ainda o que era esperar em vão por um sinal, qualquer sinal, de reconhecimento. Num tempo anterior de eu descobrir no corpo o que uma presença causava, e de como sua ausência doía. Antes de perceber no peito que amar é um verbo complexo demais para ser conjugado apenas na primeira pessoa.

Hoje sei que não foi em vão nenhum desses Eu te amo que expressei e expresso. Porque entendo ser o amor como é – fogo - precisar de mais dele para ser. O fogo se alimenta do fogo como o amor se sustenta no amor. Não há como viver o amor sem cantá-lo. E não há como ser amor sem o colorido de todas as cores que puder haver. O amor se vive de corpo inteiro, em todos os sentidos, até naqueles surreais como imaginação, como o sonhar.

Além do mais, algumas dessas pessoas apenas passaram pela minha vida para, amorosamente, me permitirem que transpusesse a margem, para que eu saísse de um relacionamento definhado e sem forças, ou para que ambas pudéssemos nos atirar ao desconhecido, em detrimento do medo ou da insegurança que nos oprimia. E, pelo desejo de manter algo que nos libertou, cremos na continuidade de algo que teve o propósito apenas de ser passageiro, de ser uma ponte, de ser uma companhia na estrada das mutações. Às vezes, a presença de alguém na nossa vida pode ser tão somente uma vibração para o próximo passo. Mais nada que isso. E, se é difícil entender, é difícil deixar ir.

Por que não é só a parte do Eu te amo que cria um constrangimento na hora de olhar-se ao espelho e ver-se naquela estranha posição de acreditar mais uma vez nessa emoção. Tem a outra, quase mentirosa, quase apenas sedutora, que é o para sempre. Quanto tempo durou meu último para sempre? Mas sei que isso é possível porque vejo muitas pessoas vivendo nesse gerúndio. E que, sim, para sempre pode ser muito feliz. Eu vejo esses exemplos e deduzo que não é uma imaginação, uma ilusão, um sonho. Um relacionamento pode ser continuamente reconfortante e ao mesmo tempo desafiante, inspirador e terno, pode ser uma noite de dormir de conchinha e outra de espalhado pela sala.

Olhando agora pela janela, para a lua que se depreende atrás das nuvens, ouvindo o vento passando pelas folhas das árvores, no tempo que é só meu, que não preciso dividi-lo com mais ninguém, no infinito das horas que uma vida é, penso em que sono calmo ou luxúria você se encontra enquanto estou acordada. Nesse momento em que reconheço a presença do amor também nos desencontros, como o silêncio faz parte da música, é que entendo que o amor é o tempo que passa.

terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

Comer ou não comer carne?

Não vejo no ato de comer ou não carne uma questão ética. Acredito que essa deva ser uma escolha e decisão de foro íntimo, da consciência individual, como escolhas religiosas ou agnósticas. A meu ver, a questão ética nesse caso está no modo como são tratados os animais para consumo humano: como simples mercadoria. 

Apesar de estarmos no século XXI, ainda promovemos guerras religiosas, envenenamos o solo e a água com agrotóxicos, desmatamos florestas, aceitamos sementes transgênicas e a propriedade industrial da semente, e exploramos animais como se fôssemos os reis da criação, seres não-naturais, beirando a ignorância a respeito de nossa própria natureza animal. Não está no ato de matar para comer o ponto crucial, pois afinal não matamos o vegetal para comer, ou o comemos vivo? Se matar para comer for um problema ético, teremos que passar a comer alimentos sintéticos, tal como fazemos ao nos vestir. Ou devemos apenas comer frutas – talvez os únicos alimentos que não custem a vida de um indivíduo para se tornar alimento; mel, ovos, leite e derivados somente se o tratamento dos animais para essa produção não promover exploração e dor. 

Antes de tudo, devemos retomar uma atitude respeitosa para com a natureza, para com a vida. E, se humanizar for realmente um qualitativo, devemos humanizar nossas relações com o meio, com o outro e conosco mesmos, relações essas totalmente coisificadas pelo atual sistema econômico.

Temos justificado nossas atitudes predadoras com o argumento de alimentar uma população mundial crescente, cuja demanda nutricional exige produção intensa de proteínas. Os mesmos motivos justificaram o uso de pesticidas e agrotóxicos nas lavouras, e a fome permanece. Confinamento e tratamento abusivo de animais, para o abate ou produção de ovos ou leite (abelhas também são exploradas para produção incessante de mel ou própolis), como resposta à demanda por alimentos é mais uma forma que o capitalismo encontrou para ganho de capital. 

Assim, esses empreendedores massificam conceitos alimentares preconizando a necessidade de proteína animal nas dietas, ratificando sua importância na saúde através de modelos de consumo e padrões de comportamento (propaganda que chega a colocar em risco a sociabilidade de um indivíduo que opta por ser vegetariano, embora menos nos dias atuais). E, de repente, pessoas que são obrigados a diminuir o consumo de carne em suas dietas por motivo de saúde se vêem primeiro diante de um abismo (não terá opções) e depois, se conseguiram ultrapassar esses limites externos, se vêem maravilhados por perceber que não só há vida pós-vegetarianismo, como há uma abertura ilimitada para alimentar-se com prazer.

A maior questão ética é o uso das mídias para reforçar a ideia de que a proteína animal é um ícone da boa alimentação. Porque se o consumo da carne – e de resto, toda proteína – se reduzisse ao cume da pirâmide como afirmam os nutricionistas, não haveria a necessidade de produção intensa desse insumo, diminuindo a importância de sua exploração. Não haveria justificativa para tratar animais como coisas. Não precisaríamos dedicar tempo dos nossos filósofos para pensar se animais têm ou não alma, se sofrem ou não, se têm direitos iguais ou relativos. Deixaríamos essa questão para as diversas religiões ficarem debatendo e guerreando para decidir quais as que estão certas. Aliás, é uma outra questão entender porque o vegetarianismo não é proposta pelas religiões que pregam o amor.


Se o homem chegou a desenvolver o córtex cerebral privilegiado de hoje graças à evolução do seu modo de alimentar-se, com certeza pode também desenvolver-se de caçador a um ser em harmonia com a natureza, de predador a autoconsciente, mantendo-se como sujeito de sua trajetória de vida sem necessidade de interferir ou impactar a trajetória de outros seres viventes. Mas talvez para isso precisemos processar uma mudança na forma como vivemos em sociedade, inventar um novo sistema econômico, que seja socialmente justo, ambientalmente sustentável, e bom para todos, inclusive animais.

segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

Eu quero a salvação

Eu não vou mentir: tem horas que eu gostaria de ser salva. Assim mesmo, um príncipe ou um cavaleiro mágico, uma feiticeira ou um santo, alguém para vir em meu socorro e salvar minha alma, ela que muitas vezes se engana e toma direções erradas. Até é mais fácil falar dela – minha alma – na terceira pessoa, para quase não me identificar com ela.

Uma salvação fácil: acreditar que exista alguém disposto a me tirar de onde me encontro – numa encruzilhada – e que possa decidir por mim. É esse o maior fardo, o mais difícil da vida: decidir. Seguir em frente ou virar à esquerda? Apressar o passo ou parar para descansar? Pegar a descida ou a subida? Sigo pelas alamedas de sombras frescas ou permaneço ao sol? Eu queria muitas vezes um mapa para seguir, uma receita pronta, uma solução acabada.

Depois, relembro que já tive essas coisas todas às mãos. Herdei algumas, negociei outras, troquei a maior parte. A verdade é que, me identificando com o sujeito da oração, nunca me deixei passiva para acatar resoluções de outrens. Fui fazendo combinações mais ou menos ajambradas, costurando aqui e ali, um caminho com uma direção, chegando em algum lugar inesperado às vezes, às vezes não chegando em lugar algum.

Ainda assim, o mais difícil é estar só. Quando se escolhe, como eu escolhi, seguir seu próprio caminho saindo da estrada principal, pegando vias sem placas, apenas entendendo a direção, quase não se encontra outras pessoas caminhando junto. E quando encontra, é por pouco tempo, enquanto não surge nenhuma bifurcação ou trilha, ou algo incontrolavelmente desejável, interrompendo a caminhada, fazendo trocar de margem, atravessar uma ponte.

Eu juro que nesse exato momento estava esperando um milagre. Quem sabe uma visita inesperada? A batida na porta que dispara o coração, um pouco de medo, um frio na barriga, um salto quântico, uma tempestade carregando tudo, um buraco negro sugando toda a luz vorazmente, e eu em turbilhão sendo carregada para uma praia distante, desconhecida, com uma areia grossa, água cristalina molhando meu corpo, morna, até que eu desperte para uma nova vida.

Mas a vida essencialmente é uma escolha e não mágica. Tem lá seus encantos, muitos às vezes, às vezes nem tanto. O encanto é quando abro a janela e deparo com o dia, aberto e aceso pelo sol da manhã, esplêndido como um cavalo alado rompendo a paisagem. Momentos doces como tomar café com pão e manteiga. Como uma lembrança que um perfume traz de repente de volta. Como um sonho.

A vida e o sonho. Uma é a carruagem, o outro o cavalo que vai puxando tudo, rumando para além da estrada. Abrindo clareiras onde era só picada na mata. Gosto de pensar na vida assim, romântica e idealista, como quem desenha com carvão na parede dos muros, escrevendo o próprio nome, sem sujar os dedos.  E depois, ver a chuva lavar indolente com a água escorrendo, devagar e fria. Não dói ver perder tudo pela calçada, o que dói mesmo é a lembrança do que foi lindo e não é mais.

Além do milagre das soluções sem escolhas, também queria que fosse para sempre. Queria que tudo durasse o tanto que fosse necessário para nunca esquecer como foi, nunca esmaecer a cor vibrante inicial, nunca, nunca, nunca perder o caminho de casa, deixar de voltar, deixar de querer. Querer é sonhar. E o sonho é um combustível infindável. Move mais que combustão, explode mais que hidrogênio, e mantém a chama de uma vela eternamente acesa no altar da deusa.

Preciso do sonho porque preciso crer. Preciso acreditar em cada pedra do caminho, em cada gota da chuva que cai, em cada momento em que a garganta secou. Preciso do fôlego que sonhar me dá só por existir. Só por eu sonhar.

Sim, sonhar o que é? Talvez um ar novo entrando pela janela, entrando pelas narinas até quase sufocar. Ou um banho de cachoeira, gelado e intenso como um abraço. Sonhar é não aceitar apenas o que amanhece, mas desejar que a tarde glorifique esse amanhecer. É ansiar pela escuridão da noite acompanhada de estrelas. É como comer suflê de chocolate: delicioso e quase nada.


Na minha noite, eu queria poder me mostrar assim frágil e despreparada a tal ponto que a vida fizesse um sinal para o motorista e me deixasse contemplar um pouco mais antes de dar a partida. Não. A morte não é o fim. O fim é deixar de sonhar.

sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

Escrever me reinventa

Comecei a escrever quando tinha 12 anos. Não porque gostasse, e gostava, mas porque precisava. Era um jeito de me expressar, eu, que era tão tímida e completamente convencida de que esse perfil não combinava comigo. Era um jeito de me mostrar de um modo que era possível, terceirizado, distanciado, desapegado. Nessa época eu muitas vezes levantava no meio da madrugada para escrever na sala, algumas vezes sem acender a luz para não acordar minha mãe que, ainda assim, levantava, assustada no início, e ia ver o que era. Com o tempo, ela passou a achar normal, embora por via das dúvidas, tirasse as chaves da porta. Ela nunca sabia se eu estava sonâmbula ou insone.

Escrever sempre foi uma saída perfeita para as emoções desencontradas demais dentro de mim. É que emoções não correm em circuito fechado, como sangue. Têm uma válvula propulsora própria, em cada neurônio da pele, em cada sentido e em todo sem sentido que a vida possa ter. Escrever é como passar um pente no cabelo de manhã, antes mesmo de você tentar saber quem é. Antes mesmo de entender porque.

Escrevo a cada momento que preciso, mais fácil do que ir comer quando estou com fome, ou mais cotidiano e rotineiro do que ir dormir quando já parece muito tarde. Me alimenta mais, me relaxa muito mais. Às vezes dá para perceber claramente. Mas nem sempre. Porque escrever é insólito. É como fechar os olhos quando criança para se esconder. Ou rezar para ter dinheiro. Ou dizer “vá embora” quando quis dizer “eu te amo”. Escrever é para os que não sabem.

E eu não sei nada, nada. Eu não entendo nada. Por que mãos espalmadas e perplexas quando o que queriam era entrelaçarem-se? Por que bocas crispadas e duras quando apenas um sorriso salvaria tudo, o dia, o momento? Por que os olhares se desviam para tentarem desesperadamente não dizerem o que estão dizendo? E por que derramar a água do chá ao pé de quem traz a erva que lhe daria sabor?
E por não entender, as palavras escorrem dos meus olhos e se prendem sob a língua, a boca cheia dágua, afogando-as. Eu quero dizer, mas não digo. Não sei como dizer. Não sei o que quero dizer. No final, sobra um pouco de gosto pegajoso e deserto insinuando que haverá continuação, que não foi possível escorrer tudo. E a sensação de liberdade disparando o coração.

Talvez eu seja apenas viciada nessa coisa adrenalinada que é expressar uma emoção, não com clareza, mas como porta que se abre de repente com um vento, com uma chuva, com um susto.
Com o tempo eu me deparei com o dizer alheio. Descobri que escrever era como sentir o que não precisava viver, assim como se contasse da sua dor, do gosto que você sentiu quando experimentou, da lembrança que você tinha quando apenas abriu os olhos e percebeu que sonhava. Comecei a entender que a palavra pode funcionar como uma vacina, um antígeno, algo que penetra a veia, inocula o sangue, e volta através de um risco no papel branco, trazendo na boca que conta ou lê aquilo que viu quando esse sangue chegou ao coração.

Escrever, então, passou a ser a forma como eu passei a viver o que não era minha vida na linha da minha mão. Era a linha da vida do outro. A palavra me fez cúmplice. Passei a enxergar a luz do dia através das lentes de quem me lia. Eu dizia: eu, e na verdade alguém se percebia nesse eu. Estendia a mão e tocava os dedos daquele que segurava o papel, daquele que corria o monitor no texto que me espelhava. Havia tristeza nos olhos, e eram os meus que se umedeciam. Abria um sorriso no rosto, e era alguém que me sorria. Demorou para me desembolar daquela trama. Enroscada na minha pele corria um fio de tinta que contava uma história que não era a minha.

Mas o que é meu, de fato, quando olho pela vidraça da janela e conto o que vejo? O que é do outro, quando descrevo sua mão balançando sozinha, inútil, para aquele que já se virou e se foi, deixando-o, o queixo um pouco caído, a boca um pouco aberta, o olhar esperando um último olhar? O que é seu, quando digo que também eu fiquei um dia sozinha, a mão vazia, sem lugar, e o tempo pareceu parar para sempre?

Na dor que expresso talvez você sinta um pouco o aperto no estômago, uma fagulha fina e curta correndo pelo umbigo, porque a dor une tanto quanto a felicidade. Porque o sentimento é um mar juntando todas as praias numa só, todas as alegrias numa só. Porque basta esticar o braço para tocar o rosto marcado pelo tempo, pela vida, o rosto que é meu, que é seu, que não é de ninguém e é de todo mundo. Porque a emoção é como o ar que circula pelos meus pulmões e no seu, levando de um para o outro o calor dos nossos corpos. E porque a palavra é aquela parte do nosso corpo que conta nossa história.

A minha palavra entrelaça sua frase numa só respiração e, assim, vou me recontando em outra, vou me escutando em você, me refazendo no seu gesto que me desfaz. E depois, ah, depois sim, vem o silêncio apaziguador, como um abraço apertado. O silêncio macio e morno, purificador, do gozo. O silêncio do eu sou você. 

Publicado originalmente para o portal nCiclos:
http://nciclos.com.br/escrever-me-reinventa/

quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

A vida sem traves

Não acredito que deus tenha colocado no meu campo duas traves e esteja esperando eu acertar o gol. Antes, prefiro acreditar que ele não existe.  Com tanto espaço, com tantos lados pra eu poder seguir, ele não estaria esperando que eu desistisse da liberdade por um possível prêmio do outro lado da rede. Desistir de sonhar pra procurar acertar um desafio imposto.  O que me desafia de verdade é eu não me perder de mim, de me entender quem sou. Se ao final eu descobrir que não sou mais do que um átmo de sua consciência ou se me deparar com não haver um deus, agora não me importa. 

Se ao final da vida eu perceber que apenas percorri um campo andando em círculos para lugar nenhum, já terei sabido mais sobre mim do que sei hoje. Porque o que sei é apenas a caminhada, o passo que dou. Hoje muito mais feliz que antes, do que tudo, e isso faz sentido pra minha vida. 

Não acredito na dor, no difícil, no estreito, na carência ou na tristeza. Não acredito que seja preciso sofrer para merecer uma vida melhor, depois. Depois quando? Quando a vida começa senão no agora? Eu não saio de férias depois de trabalhar árduo e pesado. Minha alegria é cotidiana, leve e quase rude. Quase rústica na demonstração de sua simplicidade. O que me traz alegria? O vento fazendo arruaça nas folhas das árvores, os gatos deitados sobre minhas pernas, haver vacas pastando do outro lado da cerca, amigos me mandando notícias, mas também o fato de ter lidado com um desequilíbrio emocional, ou de ter resolvido um problema operacional, ou de apenas ter tomado consciência da falência possível da eficiência.

Não acredito na permanência da dor, ainda assim, vivo com profundidade até mesmo a dor alheia, nas palavras expressas em um livro, no olhar que procura apoio ou solidão, no silêncio sentido, na dor que não reclama ou na que brada, eu sinto como se fosse no meu estômago, precisando represar o diafragma, não controlando lágrimas nos meus olhos. A dor me maltrata mesmo que não seja minha.

A felicidade ensina também. Ensina a agradecer, a aproveitar a oportunidade que não causa nenhum dano a outrem, e, sobretudo, que o amor é a supremacia absoluta dos sentimentos. Quem está feliz não cria confusão, não vai fazer mal a ninguém. Simplesmente porque felicidade não é um estado do ego, que se compraz pelo orgulho, vaidade. É um estado que se alimenta do amor, dar(-se).

Esse dar-se é muito ambíguo e parece até abstrato, mas não. É um pouco não fazer nada de vez em quando. Ficar olhando a chuva cair. Ler um livro ou plantar uma muda. Escrever uma poesia. Sim. Escrever poesia – ou ler – é a coisa mais inútil que alguém pode fazer, e por isso a mais bela. Não há beleza senão no supérfluo, no vazio, no inútil. Beleza, ela mesma para nada.

Para haver espaço na vida para o belo, é preciso de vez em quando não fazer nada. Não esperar nada. Não ter o que falar ou o que pensar. Um pouco do silêncio que a música impõe (gentilmente). A vida carece desse elemento feminino, hoje mais do que nunca.

Não há mais lugar para o lixo, não dá mais para continuar sujando a água, contaminando sem limites. A eficiência do mundo moderno está entupindo os rios, destruindo florestas, poluindo mares. O sucesso de alguns põe em risco a vida do planeta, e a atual ordem econômica é mais excludente do que já foi em toda a história desse homo sapiens – apenas porque hoje temos tempo para entender a falácia do modelo. O tempo é o principal inimigo da ordem estabelecida porque permite reflexão, contemplação, consciência. E é por esse mesmo motivo que os mantenedores do status quo vivem declarando em alto e bom tom que o mundo não pára, que não se perca tempo (parando, pensando, sentindo).

Hoje eu não estou disposta mais a jogar esse jogo com traves e tempo marcado. Hoje quero a liberdade de tempo. Eu quero o enquanto. O encanto.