domingo, 9 de setembro de 2018

A nova rota


Hoje já é primavera porque as flores abriram para todo lado. Flores brancas de pitangas. Flores vermelhas de amaryllis. Até o capim floriu em tufos. A natureza segue seus fluxos e ciclos, quase indiferente ao nosso passar ou pensar nela. Na mata ninguém pergunta se um arbusto que não conseguiu virar árvore porque o dossel fez sombra se ele se sente fracassado por isso. E ele continua lá, criando um sub-bosque que faz nossa passagem mais difícil ou a paisagem mais complexa e profunda.

Mas nós, seres humanos, pensamos e sentimos em palavras. Somos criadores de nós mesmos, criando-nos no abstrato e no concreto. No fluir da vida, trocaremos todos os átomos do corpo, todas as células, de modo que quem nasceu não será quem morrerá.

Nós inventamos tudo que é certo e tudo que é errado, tudo que é belo e tudo que é feio, inventamos deus e deusas, a igualdade, as diferenças, a liberdade e o tempo.

Por duzentos mil anos nós nos escravizamos uns aos outros, achando certo. Há apenas duzentos anos passamos a achar errado. Mas ainda resolvemos questões de diferenças de opinião com mortes, violência, manipulação.

É um processo de transformar o animal que somos em algo mais transcendental, mais equilibrado, parecido com um avião que corrige a rota e traça o plano de voo no ar. Mas somos uma frota, não somos uma única nave. Somos bilhões de aviões corrigindo a rota no meio do céu, ao mesmo tempo. Esbarrando, derrubando, explodindo, aterrissando, subindo. O que é errado? Todos temos o direito de errar, de corrigir, de errar, de errar. Por que alguns de nós insistem em chamar isso de fracasso?

Se o próprio deus é uma invenção não compartilhada por todos, nesse tempo todo jamais consensada, e somente diante de um deus haveria os da sua direita e os da sua esquerda, os certos e os errados, então, como poderemos chamar-nos de perdidos ou salvos? Vencedores ou fracassados? Quem venceu, venceu quem?

Sob o julgo da liberdade controlada, seguimos escravos. Sob o domínio do certo e do errado – de quem? – seguimos escravizados, sujeitos a punições como há tanto tempo vimos infringindo uns sobre os outros.

Não temos mais aquela escravidão enorme, explícita, em que os escravos se sabiam sem direitos, restando-lhes apenas a opção de se rebelar em alguns momentos, e em que os seus proprietários se sentiam no total direito de debelar tentativas de fugas.

Não. Vivemos a escravidão velada com correntes invisíveis chamadas tempo, correria, progresso, crescimento, sucesso. Como antes, podemos nos rebelar, e tentar uma fuga, deixar de compactuar dos valores de competição, que nos colocam sempre acima ou à frente de outras pessoas. Deixar de fazer o papel esperado: sair correndo em busca do sucesso e do crescimento que está sempre além, que está no futuro, que está intocável, inacessível, que exige esforço do braço e das pernas, que exige uma mente cada vez mais calculista, pragmática, fria.

E cada vez que nos tornamos assim, intelectualizados, represamos os sentimentos, esse sexto sentido perdido e simplificado, que nos aponta onde dói. Não pode haver sucesso sem felicidade, nem pode haver felicidade com dor, seja própria ou alheia, infringida ou auto imposta. Então, a frieza ou indiferença parece ser o antidoto para seguir em frente. Escravos.

Esse jeito de ser, agressivo, competitivo, arrojado, talvez nos tenha salvado diante da natureza e suas forças. Foi preciso dominar animais mais fortes, nas condições ambientais as mais variadas e inesperadas. Foi importante sair do interior de uma floresta e andar pelas savanas, rumo ao resto do mundo.
Mas hoje transformamos em selvas as cidades. Provocamos desastres climáticos, desordens naturais; para corrigir problemas, criamos tantos outros. Não existem mais animais selvagens nos nossos caminhos, a não ser nós mesmos: outros de nós.

Na escala de progresso que criamos, inventamos a igualdade, mas dissemos categoricamente que, quem tem mais, pode mais. Que, em detrimento dos direitos, alguns têm poder sobre outros. Que alguns podem mais, porque são bem-sucedidos. E os que não podem, é porque não se esforçam. Num mundo de recursos limitados, se alguém tem mais, necessariamente outros terão menos. Mas não importa. Esse modelo é inquestionável. Aceita-lo é entrar para um presídio do qual não sairá jamais.

Exceto pela rebeldia. Mas a rebeldia também é um recurso do modelo: promove a guerra, vende armas, polariza ainda mais.

Então, talvez só nos reste, como Gandhi, a rebelião da paz: o agir feminino. Sem competições, sem exaltação da voz, sem o uso da força, sem mecanismos inibidores, debilitadores, restritivos. O feminino da mãe que acolhe os defeitos, os erros. O feminino que defende os fracos – porque têm direito em sê-lo. O feminino que vai além da seleção natural do mais forte. O feminino do igual, sem comparativos, sem qualitativos, sem defesa.

Talvez só nos reste como libertação, não aceitar as regras impostas para o sucesso. E, na nossa marcha para a transcendência de quem somos, parar para ajudar quem não possa caminhar junto. Ouvir quem não sabe falar. E tentar explicar para quem não consegue entender. Parar e ser contemplativo. Não se prender ao tempo que passa. Não se ater ao que não fez ainda. Fazer poesia. Fazer arte. Soltar os sentidos e sentimentos da prisão em que se encontram num peito que não sabe lidar com as ideias que tem. Sobretudo, a libertação se dará quando entendermos que não há divisão entre corpo e alma, entre coração e mente, entre emoção e razão.

Que somos um todo.

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