Ana Carol Carolina Lina Almadíssima Almadona Ana. Eis o que
seu espelho lhe devolvia a cada momento de passagem de um cômodo da casa para
outro. Em todos, uma imagem de si mesma. Em todos, sua presença única. Lá fora,
com certa inveja, a vida corria pela estrada levantando poeira. Lá dentro, com
certo conforto, ficava bem, como fosse, com quem fosse, do jeito que fosse.
Ela tinha três escovas de dente no banheiro, não porque
acreditasse no triângulo amoroso, mas porque acreditava na matemática. Um
coração silencioso, batendo de mansinho, mas vigoroso. Pouca coisa nos
armários, apenas a essência. Olhava pela janela do quarto antes de sair da
cama. Olhava para o nada do entorno. Árvores verdes, às vezes floridas, às
vezes pássaros. Nem sempre via o céu por
trás de nuvens. Às vezes de noite, sem luz, a sombra do universo inteira caindo
sobre a casa. Mas estrelas fixas eternamente no céu de inverno.
Ela contava os passos, contava histórias, cantava. Leve como
o voil da cortina, janelas
efusivamente abertas. O brilho da manhã resfolegado na folhagem verde das
cerejeiras, a luz difusa da tarde depois da chuva, o reflexo da lua cheia
fazendo sombra ao gato andando no parapeito. Todas as cores e luzes do mundo
perpetrado na casa de sua vida. A vida continuamente rodando nos caminhos que
seguia.
Sim, ela também ia. Saía deslumbrante como se fosse ao café
da cidade, como se fosse dançar, sonho de uma noite de verão. Saía sem deixar
rastros, exceto o som alto do carro por sua passagem. Um cello, uma voz, um atabaque retumbando pela estrada. Verde e
uníssono. Acreditava na música. No perdão da música. A música como salvação.
Como saudação. Evocação.
Na paisagem aberta de supetão, com para-choque e tudo, ela
seguia com tempo de avião. Sobrevoo e queda livre. Nada de sonolência, insônia,
desleixo. Nada de barulho, promessas, fantasias. Ela por ela mesma. Ela,
mulher. Chamando seu nome em voz alta, como se cantasse no chuveiro. E respondendo
simples, com bolo de fubá e leite quente. A vida sem passado, sem futuro. A vida
agora.
Ela. Um dia roubou meus pensamentos. Roubou meus olhares. Roubou
meu desejo. E levou para sempre. Foi-se com tudo embora. Foi para além do meu
pensamento e do meu encontro. Foi. Não disse palavra. Não me avisou. Sequer mostrou
sinais de cansaço. Ao contrário, esvoaçou ao meu redor até o último momento. Até
que nem sabia mais o quanto. E foi dormir, me disse. Foi se deitar. Não me
deixou recado no espelho – não era mulher de deixar recados. Não me disse
adeus. Apenas foi. Dona de seu destino e direção. Por onde andará Ana?