domingo, 2 de março de 2014

Retrato de corpo inteiro

A felicidade é um peso. Curva a coluna, espreme o pescoço. Deixa a boca seca. Os braços adormecem. Faltam os óculos, uma malha quentinha, faltam meias nos pés. A felicidade entontece como olhar a foto de cima da mesa, de um tempo que não existe mais. Felicidade clandestina, paulatina, entre o almoço e o lanche da tarde, sem promessa de jantar.

A beleza é insuportável. Como a felicidade, faz engasgar com pimenta e açúcar. Esquenta as palmas das mãos até umedecer as pontas dos dedos. A beleza, se encarada, faz perder a voz. Perder o rumo. Perder o senso. Como vaso que cai da janela. Como esquecer as chaves em casa. A beleza não existe.

E de todos os sentires, o que mais deixa inquieto e perturba: o amor. O amor cansa, gruda como sombra no céu da boca, atrás do dente. Deixa o chuveiro aberto, a torneira aberta, a porteira. Deixa o nome esquecido no travesseiro, dorme um dia inteiro, amortece o sonho que teve. O amor é desfocado, desmiolado, desentocado. Cobre de pele nua, descobre de olhos vendados.

Uma coisa leva à outra, amor, beleza, felicidade. E nenhum retorno possível. Nenhum respiro. Nenhum furo na parede, um trinco quebrado, uma porta que não fecha. Tudo amarrado pela linha invisível e transparente dos poros. Transpira, respira, pira. O fogo a partir da lenha, queimando por dentro, o corpo trêmulo.

A pedra dura e redonda nos pés. O caminho em trilha demarcada. O amor derrama calor para todo lado, até nos espinhos. Dá para deitar e relaxar. Dá para ficar ou partir. O amor que vem do disco voador, alienígena, extraterrestre, ígneo. O fogo do fogo do fogo. Labareda flamejando vermelho e amarelo como anjo de luz. Abraçando por trás, de corpo inteiro.

No amor não tem ausente. Não tem patente. Não tem janelas embaçadas. O lá fora é aqui dentro. Quando o sorriso se desenha fácil no rosto, o sol se abre, a chuva cai, o vento sopra. É indecifrável e óbvio. A grama cresce, a curva dobra, a flor se desprende cheia de abelhas. E o mundo todo enternece, resplandece, entumece. Lua crescente em pleno dia.

O meu amor é assim. Deslumbrado e violino tocando no telhado. Amor de mão cheia, de bolo de fubá e café quente, de olhos fechados de tanto apertar. Amor que tropeça. Que arremeda, boceja e adormece no colo nu. O torso nu. O perfil na meia sombra, cabelos lançados para trás, a retina marcada para sempre.

O meu amor tateia na luz que ofusca, permeando os sinais do tempo. Pele com pele se entrevendo. Num abalo de vela, o tremular do arrepio. O pulso dispara. Os olhos semicerrados. Sentir é quase solitário. Quase um deserto. Mas o sorriso. O sorriso salva mais que mar na praia, mais que água na boca, mais que beijo de chegada. O gosto de noite inteira por vir. E enquanto isso, silêncio. Meu silêncio engole seu cheiro e sacia. Até amanhã, só até amanhã, vou perder o fôlego esperando o boca a boca que me ressuscitará. Prefiro desfalecer em seus braços a morrer com razão.



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