A
felicidade é um peso. Curva a coluna, espreme o pescoço. Deixa a boca seca. Os
braços adormecem. Faltam os óculos, uma malha quentinha, faltam meias nos pés.
A felicidade entontece como olhar a foto de cima da mesa, de um tempo que não
existe mais. Felicidade clandestina, paulatina, entre o almoço e o lanche da
tarde, sem promessa de jantar.
A beleza é
insuportável. Como a felicidade, faz engasgar com pimenta e açúcar. Esquenta as
palmas das mãos até umedecer as pontas dos dedos. A beleza, se encarada, faz
perder a voz. Perder o rumo. Perder o senso. Como vaso que cai da janela. Como
esquecer as chaves em casa. A beleza não existe.
E de todos
os sentires, o que mais deixa inquieto e perturba: o amor. O amor cansa, gruda
como sombra no céu da boca, atrás do dente. Deixa o chuveiro aberto, a torneira
aberta, a porteira. Deixa o nome esquecido no travesseiro, dorme um dia
inteiro, amortece o sonho que teve. O amor é desfocado, desmiolado,
desentocado. Cobre de pele nua, descobre de olhos vendados.
Uma coisa leva
à outra, amor, beleza, felicidade. E nenhum retorno possível. Nenhum respiro.
Nenhum furo na parede, um trinco quebrado, uma porta que não fecha. Tudo
amarrado pela linha invisível e transparente dos poros. Transpira, respira,
pira. O fogo a partir da lenha, queimando por dentro, o corpo trêmulo.
A pedra
dura e redonda nos pés. O caminho em trilha demarcada. O amor derrama calor
para todo lado, até nos espinhos. Dá para deitar e relaxar. Dá para ficar ou
partir. O amor que vem do disco voador, alienígena, extraterrestre, ígneo. O
fogo do fogo do fogo. Labareda flamejando vermelho e amarelo como anjo de luz.
Abraçando por trás, de corpo inteiro.
No amor não
tem ausente. Não tem patente. Não tem janelas embaçadas. O lá fora é aqui
dentro. Quando o sorriso se desenha fácil no rosto, o sol se abre, a chuva cai,
o vento sopra. É indecifrável e óbvio. A grama cresce, a curva dobra, a flor se
desprende cheia de abelhas. E o mundo todo enternece, resplandece, entumece.
Lua crescente em pleno dia.
O meu amor
é assim. Deslumbrado e violino tocando no telhado. Amor de mão cheia, de bolo
de fubá e café quente, de olhos fechados de tanto apertar. Amor que tropeça.
Que arremeda, boceja e adormece no colo nu. O torso nu. O perfil na meia
sombra, cabelos lançados para trás, a retina marcada para sempre.
O meu amor
tateia na luz que ofusca, permeando os sinais do tempo. Pele com pele se
entrevendo. Num abalo de vela, o tremular do arrepio. O pulso dispara. Os olhos
semicerrados. Sentir é quase solitário. Quase um deserto. Mas o sorriso. O
sorriso salva mais que mar na praia, mais que água na boca, mais que beijo de
chegada. O gosto de noite inteira por vir. E enquanto isso, silêncio. Meu
silêncio engole seu cheiro e sacia. Até amanhã, só até amanhã, vou perder o
fôlego esperando o boca a boca que me ressuscitará. Prefiro desfalecer em seus
braços a morrer com razão.
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