sábado, 1 de março de 2014

Meio copo

Mas existe um momento quase imperturbável em que é preciso ver a falta, sentir a ausência, falar do que não foi, deixou, partiu. Em que é preciso olhar para o vazio que ficou ao lado, no quadro da parede. Os dias que não foram comemorados, os copos meio vazios. Colocar a mão no lençol frio. Ler sozinho o recado que deixou no espelho.

É preciso, é preciso, é miseravelmente preciso ver que não há mais a palavra trocada, o beijo trocado no escuro da madrugada querendo amanhecer. Todo o calor que aquecia o peito, e que trazia uma xícara de café para completar o dia, tudo que podia haver para recostar a cabeça e fechar os olhos, tudo não há mais.

Olhar para o jardim e sentir a falta da flor que antes abrira em perfume e cor. Ver passar o dia e anoitecer solenemente. Perder o rumo de casa, passar o portão, perder o ponto. Tropeçar na areia, afogar no chuveiro, engasgar com saliva, a própria saliva mal engolida. O pente que embola e embaraça. O sabão que não limpa. Ter as unhas sujas do pó dos dias.

Parece que é um remédio. Um amargo remédio. A semente que se derrama na terra, inútil. Impotente. A gota que se perde ao vinho, ainda que todo cuidado. Ainda que o copo próximo. Onde o beijo que quase sufocava? A dor na pele do peso do corpo? Quando foi que a chuva parou? O sol se apagou? E o dia não veio?

Quando a marca do pó no móvel mostra o vazio, então a felicidade se desenha. Invisível como o vidro da janela, embaçado pelo calor de dentro, áspero para sentir o doce da língua. A felicidade, onde está ela? O espectro do arco-íris nas cores que sobraram, esmaecidas, desmazeladas.

Sim, às vezes não basta apagar o que foi escrito, é preciso rasgar, queimar, espalhar a cinza ao vento, no rio. É preciso doer o arame farpado dos limites, as portas fechadas inesperadamente, a cabeça dura até cortar a pele no fim de tudo. Tirar a pele dura das pontas dos dedos, cirurgicamente. Excessivamente zelosa. Preciso como traçar o mapa estelar que vai levar o barco até um ponto improvável na imensidão do oceano.


E no duro que é aceitar verdades inaceitáveis, imperscrutáveis, descabidas – toda dor é descabida – encostar-se o quanto puder relaxar. Perceber o gosto do ar. Tomar para si que o copo está definitivamente meio vazio. Simples. Com sede ou não. Depois de tudo ainda, resta ao menos beber a água do copo, antes que possa enchê-lo novamente. Agora, por favor, cachaça.

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