terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

O Silêncio com Você



- gosto de ficar em silêncio com você.
- sim, eu também te amo.
- gosto de ficar em silêncio com você e poder deitar meu olhar no seu olhar quase timidamente, quase naturalmente, como quem apenas respira, como se a vida pudesse ser eternamente esse olhar você tão próximo que é tocar um violão.
- a música, eu queria dançar.
- piano de calda, flauta transversal no tempo e a nota musical dançando no seu sorriso que não desmonta, que permanece mesmo depois que acabou o motivo, que fica no gosto, na língua mesmo depois de engolir. Sorriso que fica no meu olhar como um toque delicado, um sorriso que faz um sorriso em mim.
- (o olhar perdido, meio bobo, sorrindo)
- eu me divirto com você. É como se toda a vida que houvesse para viver fosse uma constante pintura de um quadro, uma janela em vitral refletindo para dentro a luz que há lá fora. Eu, que vivo o tempo todo num movimento interior tremendo, me perdendo em pensamentos e ideias, ouvindo o mundo inteiro falar que preciso acontecer, eu aconteço ao lado seu, no silêncio recôndito e tácito de nossos encontros. Eu, que prefiro o explícito, aceito o tácito e sigo em frente, o amor possível. Seu lábio estático, perplexo e à beira me comove. E num relâmpago vejo a vida toda que há por viver passar por meus olhos no brilho de seu sorriso.
- (um gole de café amargo) eu me lembro bem, me lembro perfeitamente.
- existe um lugar assim? No mundo? Um lugar que possa nos deixar ser apenas uma passagem, uma janela de trem, uma vista panorâmica de praia espraiada e distante onde o mar demora a chegar, mas chega? Podemos fazer desse lugar o lugar do nosso amor? Que cresçam flores teimosas e amarelas, que corram águas tardias, cristalinas em pedras roliças? Podemos transformar essa montanha num bosque de cheiros diversos, com bromélias escondidas brotando rosadas inesperadamente? Você quererá mudar o ritmo da sua vida para caber nessa paisagem? Ou eu quererei mudar a dança que danço perfeitamente para aprender os seus passos? Mas podemos continuar seguindo, cada um ao seu tempo, cada um o seu rumo, eu na montanha dos meus sonhos, você nas estradas que te sugerem, pousando, de vez em outra, o olhar no mesmo olhar, e no silêncio.
- sim, sim e sim. Posso ver como está ficando, o retrato? Nossa, essa sou eu!

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Todo o conhecimento do mundo



Todo conhecimento do mundo já está aí. Tudo que já foi pensado, descoberto, refletido. E tudo que ainda será pensado, descoberto e refletido já está também. Alcanço com a mão esquerda. Balanço com o pé suspenso. As verdades provisórias, as verdades definitivas. Um saber que interrompe todos os outros e o saber que se recupera do exílio. Os cálculos das pirâmides do Egito, os senos e cossenos dos monumentos maias, todos os mistérios, todos os ocultos, todos os sentidos e significados do mundo, tudo. É só saber ouvir.

A mente faz muito barulho e quase não posso ouvir o sem-som do saber. Um sonho tenta dizer. O espírito tenta dançar com gestos de folha de bananeira ou o olhar de um gato. O todo respira junto. E inspira.

Muitas vezes no recôndito das entranhas – quem poderia suspeitar – há um sinal. Revolve-se por dentro, não chega a ser dor, é um sentir por dentro, e está lá. Uma clareza súbita, uma lembrança de sempre, uma certeza sem causa. Está lá. Você, que acabou de acordar, acabou de entender o seu nome. Nunca antes havia pensado nisso e pronto. Uma resposta para pergunta nenhuma. Uma saída e você nem sabia que estava preso. Uma estrela guia, um portal, marcas nas linhas da mão, um ato falho, cartas de um baralho. Qualquer coisa e tudo muda. 

Não basta estar ligado, tem que estar preparado também. Equipado. Antenado. O que sei da vida? Nada. O que sei da minha vida? O que vivi. Por isso vivi. Passei pela ponte antes que ela ruísse. Saí da casa antes que chegasse o dono. Morri tantas mortes que assim sim a vida me passou a ser percebida. Por cada porta, uma certeza de onde. A cada luto, uma nova luz. Morri para quem fui. Morri dores insuportáveis suportadas a cada vez. E renasci criança feliz. Até que aprendi a ceder, a aceitar, a me dar sem pesar, sem pesar em ninguém. Agora, alegrias insuspeitas.

Então, como um presente encontrado no quintal, descortina-se-á a confiança no deus, no gesto, no eu. Confiar é sorrir por nada. Vai tocar sua música em todas as músicas tocadas. Vai afinar sua alma em todas as almas à sua volta. Você tão grande que não precisará pedir desculpas pelo espaço que ocupa. E depois de tudo, silêncio. Silenciar o gesto, o lábio, o cérebro. Fazer até mesmo o coração bater mais quietinho. Tranquilo. 

Sim, saber é confiar. Cofiar. Tecer junto. Passar o fio horizontal pelas linhas verticais costurando o que sabe com o que não sabe, o que vê com o que não vê. Palavras de letras embaralhadas caídas do bornal em pleno campo arado. O que vai nascer no canteiro? Vai nascer? Nasce. Cresce. E voa. Raízes de pernas para o ar. Folhas secas caindo com a chuva, levadas na enxurrada. Em cada uma, gravado, seu nome. Um recado para quem você será quando não houver mais quem você é hoje. Escrito no alheio, sua sina boia pela corredeira que leva tudo, folhas secas, galhos secos, olhos secos. O que é seco sempre boia.

Mas agora chove, por deus, chove. E a chuva umedece e faz flexionar os joelhos, escorrer o peito, os cabelos grudados no rosto, o frio bom de ar novo, fome que comer não sacia. Lágrimas salgadas que temperam o riso, porque de agora em diante, apenas lágrimas de alegria. O riso ensina mais que a dor. As dores levadas pela correnteza, lavadas na saliva. Assim, sem mais, subvertendo o sentido da pele, a dor se deixa contaminar pela vontade e se extingue. Saber acaba com a dor, acaba com a história, acaba com o segredo. Meu segredo agora é esse: rir. De tudo. Porque rir me suporta. E me suplanta. E rir é saber ouvir o som da vida.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Com você, o mundo cabe no meu caminho



Com você o mundo fica pequeno e cabe no meu caminho. Tanta palavra linda, tanta frase de efeito, e só tenho no peito o nome seu tatuado com tinta invisível, desde que nasci, desde sempre. Junto com tantos outros nomes, é verdade. Tantos nomes de quem nem sei, procuro sem procurar, acho sem perceber.

Não é verdade que amo você. É verdade que tudo fica melhor com você. E porque tudo fica lindo, e tudo fica alegre, veja, sei que é amor. Amor como a flor que nasce na árvore antes da fruta. Amor como o leite que surge com o filho. Amor como tantos outros que são de graça e pela graça. 

Mas não é seu. É meu. É um sentimento que nasce no peito e não se contém em ficar ali. Desce palpitando pelas veias correndo o corpo todo e aquecendo feito lenha queimando. Percorre a pele num arrepio descontrolado como os trovões em dias de chuva muita e muita eletricidade. Em nuvens de relâmpagos e luzes e ventos em que meu peito explode e quase não cabe por dentro. Amor, sim, raios batucando pelo céu da boca. Amor de saliva doce. De pão crescendo e perfumando tudo, até dar fome.

Sim, o mundo fica pequeno porque você preenche todos os espaços vazios e me faz subir, flutuar, bolhas de champagne estalando na taça. Bolhas de sabão fazendo arco-íris no ar. Leve como a folha que cai. E leve como a borboleta que voa. Leve e úmido como a brisa fresca de depois da chuva. De depois.

A alegria é um reino escondido para ser descoberto. Que aparece com uma palavra mágica, com a magia de olhos que se hipnotizam, capturam, resgatam. Os olhos que descobri um dia na floresta do meu desejo. Em dia alto, com sol a prumo, com todas as vidas acordadas e reluzentes, porque o amor dos deuses é do olimpo: aberto como o girassol, amplo como o nascer do dia, e infinito como o horizonte. Todo ele um olhar. Brilho de sorriso. Perfume silvestre que só abelha sente. 

Sem segredos, sem mistérios, sem vestígios. É assim que encontro o amor no nome que é seu. O amor que vai além de todos os outros que já vivi porque simplesmente não é amor. Não é uma qualidade, um sentimento, uma emoção. É apenas um estrondo de neurônios se reconhecendo. Apenas um percorrer descalço pela areia da praia aonde o mar ainda chega a lamber. 

O encontro inesperado do colibri com o que a flor não mostra. Eis o meu encontro com você nos dias que se sucedem, um ao outro sem dor, desatentos e coloridos. A voz rouca de gargalhar a noite inteira. E o cansaço bom e molhado de suor. Despreocupado como um regato. O meu amor tem um tempo para você no meu caminho. É só você querer seguir comigo um pouco pela estrada que virá. É só você querer deixar a chuva cair, o vento passar, a lua nascer; querer subir a montanha, descer com os pés descalços pelo mato que há em volta. É só você querer.

sábado, 16 de fevereiro de 2013

E se Deus não existir mais?



E se não houver mais deus? Não se trata, portanto, do fim do mundo, mas do fim de deus.  Ele se foi. Deixou tudo, desapegou-se de sua cria. Foi criar outro universo, outra possibilidade, outro estado de coisas. Deus acabou.

Não há mais para quem dedicar preces. Não existem mais soluções ou possibilidades mágicas. Não se pode mais se apoiar num mundo paralelo, maior e mais inteligente, que se comove com nossas desventuras e interfere abrandando tudo. 

Não mais o conformar-se de que o melhor aconteceu, mesmo quando ruim. Ao invés disso, um entender adocicado e ácido de que nem tudo é como se deseja. E o desejo, que é o desejo? Um vazio que precisa ser preenchido, um buraco negro tragando tudo à sua volta, ou uma percepção de que há necessidade de um gesto, a vida precisa se mover, seguir, unir uma nota na outra, um dedo no outro, sílaba com sílaba. Deus não está mais lá para costurar, remendar, decifrar, desatar.

Nada de pequenas justificativas para os grandes fracassos. Deixar de correr atrás de um sonho porque é tarde demais, porque é cedo demais, porque está cansado demais, porque tem tempo demais, porque é demais para si o seu próprio sonho. Nada do grande conforto de haver alguém para culpar, alguém a interpelar no destino e fazer dele um rio correndo sem sentido na direção do mar. Por que o mar? Por que não a montanha? 

Amanhã, acordar para ver o céu azul e tomar café sem dar graças a deus. As sementes irão germinar, algumas vão morrer. Os pássaros vão nascer em cima das árvores, alguns não voarão. Borboletas no quintal, flores no jardim, vacas pastando solenemente além das janelas e do olhar. Toda a inteligência seguirá viva porque a inteligência só faz sentido para a vida independente, não para que haja um pastor para velar insone por sua segurança.
Para minhas dores mais difíceis de declarar haverá um remédio que terei de admitir. Para suas incertezas mais ásperas e desesperadas haverá um tempero delicado para adocicar ainda que não seja a resposta. Para a solidão, uma mão que puxa o cobertor e aquece. Para a velhice, sim, para todo aquele que atinge a linha de chegada, o lugar entre os vitoriosos. Nenhuma saída, no entanto, que venha misteriosamente de um protetor justiceiro e dadivoso que nutra sem explicar, ou que interfira no curso das coisas como se fosse o dono. 

Estenda a mão se quiser alcançar, não espere. Cumpra o seu percurso correndo seus próprios riscos. Acredite, no entanto. Porque acreditar é como comer, é como se saciar de água, como dormir, e voltar a comer. E como fazer sexo. Acreditar é o prazer que só a alegria pode fazer. Para crer é preciso ter-se a alegre e leve certeza no próprio poder. Do poder em si. De poder por si.

Pronto. Deus não existe mais. O centro de um mundo melhor sou eu. As possibilidades de tudo dar certo, eu. Não um eu magnânimo e supremo que está acima do bem e do mal. Mas um eu superior-irmão do seu eu superior. Não o gigantismo das verdades absolutas, mas da verdade amorosa e inclusiva que aceita todas as demais verdades. O superior que abraça, aceita, respeita, e não da indiferença e secura dos que se sentem escolhidos e merecedores. Mas isso é deus? Então, de agora em diante, eu sou deus.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Sem sentido



Jean-Paul Sartre pôs um fim aos por quês da vida quando eliminou deus. Por que nascer? Por que sentir? Por que estar com alguém? Por que pensar? Por que a insatisfação? Por que a vida? Por quê? Para ela não. Como uma criança que olha a vida com a estranheza de quem vê pela primeira vez, ela se perguntava o tempo todo: por quê?

Os antropólogos especulam que, talvez, o fato do homem ter se domesticado criou certas condições e complexidades que acabaram por levá-lo a desenvolver técnicas e a aumentar seu cérebro. Ou talvez ainda, tenha sido o contrário, segundo outros. Por que deixar de ser nômade? Por que escrever? Por que inventar códigos e dar nomes a tudo? Para ela, a vida pensada e a vivida, duas realidades da mesma coisa. Duas dimensões da mesma realidade. A vida se chocando com os significados. Ou os significados criando vida.

Ela se debruçava na janela, até onde a vidraça deixava. Olhava a árvore, e seu olhar era como subir em seus galhos, deixar-se sob sua sombra, ouvir o vento passando invisível por suas folhas. Apenas olhava pela janela. O mundo era uma televisão desatinada e sem controle remoto passando ininterruptamente um programa em cada canal. Não tinha escolha. Mas tinha opções.

Um dia, tomou uma decisão. Abriu a janela. Esticou o pescoço para além dos limites envidraçados e sublimes de sua vida. Um cheiro de alecrim, poeira e frio tomou-lhe os pensamentos. E assim foi assomando o resto do corpo até estar meio para fora meio para dentro. Fora, uma borboleta passou. Por dentro, um arrepio. Uma perna, outra perna, sentou no parapeito e se jogou. Impulsionou o corpo num balanço desequilibrado e forte o suficiente para ir parar no chão, do outro lado. 

Tudo formigava. A claridade, a brisa fria, a janela que ficara para trás. Ficou imóvel, invisível, olhou em volta. Acertou o vestido. Arrumou o cabelo. Tentou ouvir. Apenas sua respiração interrompendo o fluxo de pensamentos. Uma mistura de corpo e alma. Onde um e onde a outra? O mundo girou na volta de sua cabeça. Uma miríade de verdes e o silêncio. “para onde vou?”, perguntou-se. E enquanto se perguntava, deu seu primeiro passo rumo ao vazio. “eu não sei nada”.

Existem indícios de que algumas das grandes descobertas do homem foram acidentais. E o que há mais para se descobrir? Tudo já foi dito ou pensado. Tudo já foi feito ou espera por ser. Ela insistindo em encontrar um caminho no descuido do jardim, o quintal cercado de arame e verde.  O verde lhe enjoou. Sentiu vertigem. Pensou que ia cair, perder os sentidos, pensou que entendia. Pensou enquanto caía, o rosto precipitadamente no verde da grama. De repente, olhava o mundo de bem perto. Tanto, que não via mais nada.

Ela, enfiada na grama verde e úmida, foi se levantando lentamente. Quem era? O que fazia? Não, nenhuma pergunta. Nenhuma dúvida. Nenhuma certeza também, o olhar bobo, perdido. “o meu sentido da vida é seguir em frente.” Silêncio de mar profundo. A mente silenciara. O tempo parara. Talvez uma nuvem, talvez o coração. Deus, mas talvez deus não exista mais. 

Qual terá sido a maior invenção do homem? Sim, deus e toda a cosmogonia a que pertence. A árvore da vida, o paraíso, os anjos e o haver sentido para vida. A invenção da massa de modelar e o sopro de vida. O toque que conecta com o infinito, o invisível e o inquebrantável. E o amor, a maior entre as maiores invenções. Com ele é possível viver diferenças impossíveis, rir da dor e da auto piedade – ainda assim, sem rir da brutalidade ou miséria. A miséria porque não é culpa de ninguém, mas responsabilidade de todos, e a brutalidade porque é inadmissível. O amor apazígua. 

Seja o homem criatura ou criação, ela, transposta a dimensão entre a realidade que conhecera da janela e a que passara a ser em sua pele, ela aprumou os ombros e sentiu mais conforto no andar. Passou batom nos lábios e sorriu (passou batom porque adorava deixar a marca de seu carinho no caminho de suas intenções). Atravessou a rua sem olhar para trás. Soltou os cabelos e a voz. Cantarolando, foi refazendo a linha do horizonte no pôr-do-sol.