terça-feira, 20 de março de 2012

Raiz de Mulher


As sementes verdes e imaturas não brotam, ao invés disso, apodrecem na terra fértil. Chove a água cósmica e bate-lhes o sol da manhã, dourado e morno, e ainda assim, não vingam. Não é suficiente que recebam cuidados, que tenham carinhos, que olhos atentos acompanhem seu desabrochar: não brotam, não fincam raízes, não se aprofundam para subir ao ar e crescer ramos e galhos e flores e frutos.

A promessa, no entanto, existia em ser semente. Foi antes do tempo? Ou ainda amadurecerá, seca, guardada em algum armário escuro? Como saber sua maturidade olhando assim para fora, olhando para o que ela mostra, uma semente? Estará pronta?

Não colocarei na terra para que não apodreça. Não colocarei ao sol para que não se iniba. Esperarei pacientemente que seu tempo chegue e chegue a mim o seu momento. Para que possa enveredar com seu brotar no mesmo instante abrindo-se para o céu e penetrando a terra macia.

Mas esperarei quanto? Algumas horas, talvez dias e noites, talvez vidas inteiras? Quando chegará o exato instante em que, completamente natural como o nascer do sol, ela tenha amadurecido e expectante de minha mão que apenas fará o que ela não pode fazer por si: despojá-la na terra úmida.
Insuportável espera essa de se ver com a semente na mão sem saber se ela está pronta. Se ela é uma árvore à minha espera ou se é apenas aquilo que a terra irá comer. Haverá um tempo em que ela deixará de ser fértil para ser senil? Terei esperado demais, talvez? Agora, toda aquela energia que estava ali sendo preparada para explodir em vida, agora, sem me dar mais tempo, virou orvalho, virou névoa fina, evaporou?

Ah, o tempo do plantio e o tempo do pousio tão difícil de saber quando se deixou há tanto tempo de colocar o pé na terra, de ouvir a voz que vem de dentro do peito, o mesmo peito que faz as flores murcharem e a cabeça adormecer tranquila. 

Depois de perder tantas sementes apodrecidas, de perder tantas sem nunca lhes dar o que despertar, agora eis que tomo uma ainda para mim, como uma nova chance, uma semente surpresa, uma semente deixada para trás em que lhe pese todo o seu destino de árvore, seu destino de fruto, mas assim mesmo segura de seu compromisso. Ela precisará de muita coragem para romper a casca seca que lhe recobre toda, precisará de muita vontade de se ofuscar pelo sol para abrir os braços demoradamente num espreguiçar quase lento, quase perfeito. 

Então, passarei pelo vão da porta, sairei de onde estou apenas vislumbrando o dia que está nascendo, a planta que está surgindo, a mulher que está florindo no novo amor que está amanhecendo, sairei da segurança da casa para o céu aberto do terreiro e serei eu a semente posta na terra a germinar, serei eu a romper com quem fui, abrindo-me, despindo-me, cumprindo a promessa que havia feito num tempo qualquer, quando não era mais que uma semente a flutuar.

segunda-feira, 19 de março de 2012

Pão e Amor


Todo dia trago para casa pão e manteiga porque se estourar uma guerra, se o mundo acabar, se as pessoas se perderem, ficarem cegas, desaparecerem de repente, sem aviso, sem sentido, eu terei do que me alimentar. Ao menos o corpo, que é menos exigente. A alma já não é assim. A dieta da alma é sutil, mas mais intensa. Inicialmente é leve, vai ficando presente até que se torna plena e total. Chama-se amor, começa com sinais parecidos com cacoetes, um piscar repetido, um canto da boca mais tortinho, depois seca a boca e faz bater o coração num ritmo mais picadinho.

A alma precisa de quase nada, mas quase tudo lhe toca. Um bater na porta em sobressalto, uma pele na pele sem querer, o olhar que se cruza e sustenta. A alma se alimenta de gestos, um ‘bom dia’ bem dado, um ouvir com atenção, uma fala sem ensaio, um ensaio sem repetição. Tudo que chega à alma entra pelo coração. Esse que é a inteligência mais inteligente que carregamos conosco, porque sabe tudo sem ouvir falar, entende tudo sem explicação, sossega por sossegar, teima por teimar. O que tem de dureza na cabeça, tem de clareza o coração. O amor bate na aorta.

De pão e manteiga eu fico feliz. Fico mais feliz ainda se tiver café. Mas a maior felicidade é ter um amor sem duvidar, é poder abraçar sem perguntar, é encontrar sem procurar. A espontaneidade é um tipo de amor que só a alma, e os que vivem de alimentar a alma, sabe bem. Ser espontâneo é crer na vida. É crer em si mesmo. É crer que o que move o mundo e o faz girar eterna e certamente é a verdade. 

O amor casou com a verdade há tanto tempo que um não vive sem o outro e o outro não vive sem o um. Unificados no mesmo plano divino, dão-se em frutos pelas árvores que fazem sombra e brisa leve quando há muito sol, e dão-se sem flores coloridas quando há frio. Muito frio pede vermelho, pede amarelo e pede verde brilhante para aquecer o peito e agasalhar a garganta, que existe para cantar louás ao que une, soma, alegra. 

Existe um tripé que sustenta o mundo. A liberdade, o sonho e a clareza, coisas que a gente não ganha nem acha, coisas que não estão por aí penduradas em postes debaixo das luzes, coisas que não são compradas por dinheiro algum, que nenhuma cartomante consegue ver, que não estão escritas nas linhas das mãos. Não estão na correspondência por chegar, na ligação por atender, por trás da janela fechada ou no pó da mesa tanto tempo sem limpar.

Esse tripé inclusive está solto, desmembrado como um quebra-cabeça para ser montado. Às vezes tem uma peça na mão de cada pessoa e quando elas se encontram em determinado dia, num determinado lugar e se reconhecem, então, como a espada de Merlin, ou como o canto da sereia, como uma aparição de um anjo ou um sopro de um elfo, essas partes se conectam e toda luz que há no mundo se acende. E toda a paz que há no mundo se expande. E todo o amor que há no mundo se derrama em cachoeiras, rosa disfarçado de azul, verde disfarçado de branco.

Por meu sangue que circula e anseia por pão e manteiga, por cada lágrima que rola sem querer dos meus olhos quando eu apenas me emociono, pelo frio que faz lá fora, mas não me atinge porque estou em casa, agasalhada, enfim, pelo que deus me prouve e não me falta, eu confio. Eu fio com. Fio o tecido do amanhã, a teia clara do amanhecer, a tela em que pintas uma canção, tão linda e tão linda que até os pássaros param para ouvir.

sábado, 17 de março de 2012

Trair e Crescer - Uma reflexão sobre Nilton Bonder


Gaia, a deusa primordial, traiu Saturno, seu esposo. Este, temendo que um de seus filhos o destruísse e assumisse o seu posto de deus dos deuses, devorava sistematicamente todos os que ela lhe dava. Então, dando à luz Jupiter, Gaia o protege e em seu lugar, embrulhado em um manto, entrega a Saturno uma pedra que é devorada imediatamente. Jupiter cresce e destrona o pai, castrando-o, e efetivamente toma o seu lugar, dando início a um novo tempo, de clareza, de abertura e iluminação. 

Eva, a mulher original, traiu Adão, seu companheiro. Abraão traiu seu pai. E todas as traições resultaram em mudanças profundas no ser social, no seio do núcleo original. O corpo, a partir de suas definições de DNA, tenta desesperadamente manter o status quo, procriar e atingir sua imortalidade através de sua semente fecundada. Para isso, cria regras, tradições, definições que protejam essa estratégia e lhe confira sucesso. Mas a alma, aquela que quer mais além do que se manter, quer a evolução. Não há lugar para a evolução dentro da tradição, e, por esse motivo, a alma busca a transgressão. 

Quando trai, cada um desses personagens traiu a si mesmo, porque rompeu com a realidade a que fazia parte. Por outro lado, o traidor se move fiel à alma, que é transgressora e transcendental, e o traído, de sua parte, é o traidor da alma, pois insiste em resistir ao novo.

Traidor e traído são sempre o mesmo. A ira devotada ao que traiu é reflexiva. Crucificar o outro no lugar de assumir sua responsabilidade na ação iniciada, ainda é um padrão de um mundo antigo, resquícios do que já foi. O novo sempre convive em parte com o velho que resiste, porque o novo cresce nas bases do que já havia.

A partir de um contrato que não dá mais resultados, um dos elementos trai o que fora acordado e inicia um novo processo de desconstrução e reconstrução. Assim, a cada passo, a unidade social vai se transformando, a alma vai transcendendo.

Na transgressão, no romper com a ordem, no entanto, há sempre o risco do erro, do engano, do caos total. Uma rota adversa pode ser a cura, mas pode ser o câncer. Por esse motivo, o medo é a resposta mais comum de quem sofre a traição. Os riscos de apego e traição são condições inerentes, o primeiro ao corpo e o segundo à alma. Há uma tensão clara no ser humano: preservar ou transgredir, manter-se ou evoluir. O apego é uma violência contra a alma, um atentado à vida e pode levar à depressão. A traição põe em risco o corpo, sua unidade social, externa, e pode gerar ódio, incompreensão. Porque, quando um elemento de um grupo se põe em movimento, ou seja, rompe com o estado de acomodação, ele coloca em cheque todos os outros que também devem dar um passo para fora da estagnação. Mas a resposta em geral é uma reação ao colocar-se em movimento, dando um passo para trás quando deveria ser o de mover-se na direção do novo. A oportunidade surgida parece a esses como um risco real, e a tensão é intensificada.

Quando Adão e Eva desobedecem no Paraíso, estavam sendo fiéis à alma, rompendo com o corpo. Saindo de sua condição confortável, imortal e estabelecida, o corpo agora precisa entender a alma, tornar-se consciente, pois essa é sua única parte verdadeiramente imortal.

Uma nova ordem parece se mostrar real e efetiva agora, estabelecendo-se depois do período de crise a que se segue uma transgressão. Nessa nova ordem as pessoas parecem depender menos umas das outras nas suas relações, criando não laços mas uma atmosfera de amorosidade e verdade, não perdem sua identidade nem colocam em risco sua trajetória, porque a trajetória dos que são Um é a mesma, objetiva, íntegra. Não há sacrifícios, nem sacrificados, não há dor nem ira. As paixões refletem esse estado de ser equilibrado e harmônico, sem picos de felicidade seguidos de angústia.  As pessoas se unem porque se reconhecem, não porque são complementares ou vão ganhar alguma coisa. Uma ordem onde a nivelação entre todos é o sentimento universal que liga tudo, une tudo, é tudo: o amor.

quinta-feira, 15 de março de 2012

O santo que me criou


O santo que me criou me fez azul para combinar com o céu, para reluzir com o brilho das águas do rio, para fazer um sorriso na boca de cada um para quem sorrio. 

E depois, me soltou no mundo para que a liberdade me criasse asas e para que aprendesse o lado sério da vida. Porque nós, os azuis, somos alegres a vida toda, temos no sangue o riso dos que confiam e a magia divina do impossível.

Nas águas turvas dos que sentem dor aprendi a confiar no que não vejo, a seguir sem ter certeza e a agradecer diariamente que não me nasça flores no meu peito, pois as veria murcharem.

Depois ainda, sem medo de me arrepender, subi as montanhas calmas e verdes dos que se preparam para o que vai vir. E lá pude encenar todos os dramas épicos do mundo que passou, do mundo que não há mais, ajudando a tirar as cascas, a pele dura e ressequida, velha, que ainda recobrisse, por ventura, os corpos de alma renovada.

Então, descobri o que já sabia: que esse mundo é repleto de anjos. Que suas asas se unem umas as outras por um cordão dourado formando uma imensa teia. E, à medida que alçam vôo, vão recolhendo aqueles que escolheram não voar, escolheram o caminho mais difícil. Enquanto dormem, seus sonhos são apaziguados e suas almas alimentadas para que amanheçam com ânimo de voltarem para suas vidas de pés descalços.

E assim é porque a felicidade não é um tesouro no final do túnel, é um caminho que se trilha a cada passo da alegria.