Alguns de
nós, urbanos naturais ou naturalizados, pasteurizados ou esterilizados,
sentimos muita atração pelo mundo rural. Talvez porque ele esteja distante ou
por parecer inalcançável, talvez porque, ao tocarmos levemente em sua face
plácida e verde, nos reportemos para algum lugar que não seja nossa rotina
morna, cotidiana, seca. Talvez também porque esses alguns de nós estejam
insatisfeitos com os significados que sua vida projete sobre nossos sonhos. Talvez,
por isso mesmo, porque sonhemos.
Nós, essa
porção rebelada do quase infinito mundo concreto, ao qual chamamos de realidade
– como se no mundo real só pudesse existir esse urbano, concreto, entre cercas
elétricas e câmeras – nós olhamos essa terra toda protegida pelo ínfimo arame
farpado, compondo um horizonte ora distante, ora tão próximo que parece não
haver saída, nos tons e sobretons de verde e marron, o vento balançando o
cabelo trazendo perfumes indistintos, sem marca, onde podemos gritar sem que
ninguém nos ouça (não por causa de buzinas, motores, telefones) exceto o eco,
ficamos encantados pela sensação de liberdade repentinamente irrompida, como se
o sangue saísse das veias por um tempo, desorganizasse a retina, fosse risco de
vida.
Esse
fascínio que faz ao mesmo tempo um sorriso e um tremor no peito, como quando
olhamos de muito alto para o lá embaixo despencado, aquela sensação do logo
antes de pular do trampolim, quando o elevador para súbito, ou quando viramos
uma estrada deserta e descobrimos que nos perdemos, esse fascínio que une
vertiginosamente a alma ao corpo com adrenalina e serotonina, e nos faz sentir,
mesmo que por instantes, que a vida percorre nossos ossos, esse fascínio é
quase vital para esses alguns.
Os outros
de nós, aqueles satisfeitos com sua urbanidade e coerência - não vamos
criticá-los, pois somos nós os idealistas - esses outros chegam nessas estradas
de terra e logo vêem a poeira que sobe com sua passagem deixando seus carros
inidentificáveis, pedem o café e a conta ao mesmo tempo e, ato contínuo, vão
embora retornando para seus apartamentos aconchegantes com janelas duplas, anti-ruído,
para vidas embaladas a vácuo, sem contato manual, contas-correntes, gerente e
limites, felizes porque sua vida não muda assim como a paisagem, oferecendo
apenas o risco conhecido e esperado que estar vivo representa.
Nós todos,
esses e aqueles, justificamos sempre nossas atitudes e escolhas. Se ficarmos,
tem um motivo, se partirmos, tem uma explicação. Sempre. Razões cheias de
significados reconfortantes ou sublimados. Palavras para apartar o peito, tranquilizar
o coração, manter a pressão sanguínea dentro do esperado, sem picos. No final,
se mandamos recados para nós mesmos – para quem seremos um dia – também dançamos
conosco mesmos.
Eu, um dia,
acordei querendo mais de outro prato, não do que recebi do destino, não do que
herdei. Um dia eu quis traçar um caminho diferente com meus próprios pés, numa
direção que não estava no meu mapa de então. Aliás, eu quis outro mapa mundi,
eu quis outro mundo. Nós temos sempre a opção de ser co-autores de nosso roteiro,
mas podemos abdicar. Ou fazer-nos crer que realmente criamos ou decidimos
quando apenas mudamos para continuar no mesmo lugar. Na verdade, a mim parece
que podemos contar histórias diferentes ou diferentemente a mesma história. Cada
um à sua maneira, cada um conforme seu comprometimento consigo, sua busca pela
felicidade.
Se viver é
correr riscos, é uma escolha pessoal traçar ou não esse risco e dizer de que
lado vou caminhar. Porque depois que escolho e redesenho meu mundo, ele volta a
ser um mapa mundi traçado, organizado, limitado. Então, saber reinventar o meu
caminho é o novo risco. Viver é não descansar senão quando paramos o olhar no
silêncio da tarde e observamos as sombras que o sol projeta, ou quando, à
noite, repentinamente o vento pára e tudo fica quieto por segundos inteiros. Viver,
afinal, é essa passagem do tempo e o que fazemos dela enquanto isso.