domingo, 16 de julho de 2017

Alguns de nós

Alguns de nós, urbanos naturais ou naturalizados, pasteurizados ou esterilizados, sentimos muita atração pelo mundo rural. Talvez porque ele esteja distante ou por parecer inalcançável, talvez porque, ao tocarmos levemente em sua face plácida e verde, nos reportemos para algum lugar que não seja nossa rotina morna, cotidiana, seca. Talvez também porque esses alguns de nós estejam insatisfeitos com os significados que sua vida projete sobre nossos sonhos. Talvez, por isso mesmo, porque sonhemos.

Nós, essa porção rebelada do quase infinito mundo concreto, ao qual chamamos de realidade – como se no mundo real só pudesse existir esse urbano, concreto, entre cercas elétricas e câmeras – nós olhamos essa terra toda protegida pelo ínfimo arame farpado, compondo um horizonte ora distante, ora tão próximo que parece não haver saída, nos tons e sobretons de verde e marron, o vento balançando o cabelo trazendo perfumes indistintos, sem marca, onde podemos gritar sem que ninguém nos ouça (não por causa de buzinas, motores, telefones) exceto o eco, ficamos encantados pela sensação de liberdade repentinamente irrompida, como se o sangue saísse das veias por um tempo, desorganizasse a retina, fosse risco de vida.

Esse fascínio que faz ao mesmo tempo um sorriso e um tremor no peito, como quando olhamos de muito alto para o lá embaixo despencado, aquela sensação do logo antes de pular do trampolim, quando o elevador para súbito, ou quando viramos uma estrada deserta e descobrimos que nos perdemos, esse fascínio que une vertiginosamente a alma ao corpo com adrenalina e serotonina, e nos faz sentir, mesmo que por instantes, que a vida percorre nossos ossos, esse fascínio é quase vital para esses alguns.

Os outros de nós, aqueles satisfeitos com sua urbanidade e coerência - não vamos criticá-los, pois somos nós os idealistas - esses outros chegam nessas estradas de terra e logo vêem a poeira que sobe com sua passagem deixando seus carros inidentificáveis, pedem o café e a conta ao mesmo tempo e, ato contínuo, vão embora retornando para seus apartamentos aconchegantes com janelas duplas, anti-ruído, para vidas embaladas a vácuo, sem contato manual, contas-correntes, gerente e limites, felizes porque sua vida não muda assim como a paisagem, oferecendo apenas o risco conhecido e esperado que estar vivo representa.

Nós todos, esses e aqueles, justificamos sempre nossas atitudes e escolhas. Se ficarmos, tem um motivo, se partirmos, tem uma explicação. Sempre. Razões cheias de significados reconfortantes ou sublimados. Palavras para apartar o peito, tranquilizar o coração, manter a pressão sanguínea dentro do esperado, sem picos. No final, se mandamos recados para nós mesmos – para quem seremos um dia – também dançamos conosco mesmos.

Eu, um dia, acordei querendo mais de outro prato, não do que recebi do destino, não do que herdei. Um dia eu quis traçar um caminho diferente com meus próprios pés, numa direção que não estava no meu mapa de então. Aliás, eu quis outro mapa mundi, eu quis outro mundo. Nós temos sempre a opção de ser co-autores de nosso roteiro, mas podemos abdicar. Ou fazer-nos crer que realmente criamos ou decidimos quando apenas mudamos para continuar no mesmo lugar. Na verdade, a mim parece que podemos contar histórias diferentes ou diferentemente a mesma história. Cada um à sua maneira, cada um conforme seu comprometimento consigo, sua busca pela felicidade.

Se viver é correr riscos, é uma escolha pessoal traçar ou não esse risco e dizer de que lado vou caminhar. Porque depois que escolho e redesenho meu mundo, ele volta a ser um mapa mundi traçado, organizado, limitado. Então, saber reinventar o meu caminho é o novo risco. Viver é não descansar senão quando paramos o olhar no silêncio da tarde e observamos as sombras que o sol projeta, ou quando, à noite, repentinamente o vento pára e tudo fica quieto por segundos inteiros. Viver, afinal, é essa passagem do tempo e o que fazemos dela enquanto isso.