quarta-feira, 29 de junho de 2016

Depois do Tempo

Antes de buscar entender o que havia atrás da floresta, daquela intensidade de árvores e copas e bosques, daquele silêncio repentino que foi o encontro de olhares numa clareira desconhecida, antes de começar a seguir em frente, sem bússola, sem plano de voo, é preciso deixar que o tempo verta espraiado como água escorrendo em todas as direções e sobre tudo, inundando de dias e noites em camadas sobrepostas, como areia de duna, como folha caída, até que, se por ventura ainda restasse algo vivo e sensível, tenha sido mansamente apaziguado ou anestesiado.

Depois, o tempo cobre de pó e descasca um pouco a imagem que restou, tirando às vezes um pouco do brilho, se havia, mas também remendando os espaços vazios, esmaecendo o que já não tinha cor ou amaciando os cantos escuros. E, ao cobrir de matizes mais deglutíveis, torna fácil relembrar o que passou, recontar o que a pele sentiu sem chegar a doer ou fremir novamente.

Assim, faz parecer que foi uma decisão lúcida o que era apenas falta de saída, o que era uma porta fechada, secreta, cuja senha ou palavra mágica se perdera por desuso. Faz crer que a insistência em continuar tentando era uma visão romântica e não cansaço. O cansaço das relações impressas em papel de pão, amassado, vulnerável. Cansaço reticente, resistente, reativo, mas ainda assim, cansaço.

Olhar para trás depois, muito depois, não faz estátua de sal, e pode ser facultado por cuidar do jardim, arrumar plantas em vasos, cuidar de cães e dar atenção a outros detalhes que, se observar bem, a vida é cheia.

Olhar para trás, depois que tudo se acabou, é como querer lembrar o cardápio da noite anterior, querer recuperar o gosto ou o cheiro, lembrar os sons dos talheres, as conversas, os silêncios, na expectativa de sentir aquilo que não sentiu, de responder ao que ficou sem resposta, tomar mais vinho.

Quando olho para trás, para o rastro que deixei no caminho que sou eu, onde me detive frente às pedras, onde fiquei à sombra ou mergulhei no riacho, vejo que, por vezes, plantei mudas que crescerão árvores e obscurecerão minha passagem, e em outros momentos, para que pudesse passar, amassei a erva, quebrei galhos, mudei o curso de regatos.

O passado, assim, parece ser apenas uma história contada por outrem, uma história distante, diferente, um retrato congelado de alguém que você já não se reconhece. E então, não há mais julgamentos, não foi nem bom nem mau, nem feio nem bonito. O que passou foi apenas uma forma de falar, um jeito de ver, e não mais uma marca na pele, uma cicatriz.

Olho pela janela e, enquanto vejo a paisagem acinzentada pelo sol, na verdade estou encarando o hiato entre duas mãos estendidas, procurando, tateando no escuro o que poderia ter sido um universo, uma nuvem passageira, um voo flanado no horizonte. O encontro do desencontro. O bilhete para o espetáculo errado, o dia errado. O momento do desengano.

Mas se ainda resta um momento de desengano, então é que falta mais tempo na caminhada. O tempo resgata o desengano, e no passo certo sobre o passeio torto, vai deixando para trás as ilusões, os devaneios, um pouco dos aromas e cheiros, vai desnudando o peso dos ombros, desmarcando reencontros. Como o mar que arredonda a areia, o tempo nivela as paixões.

O tempo preciso para transformar o passado em histórias, para fazer brotar musgo na pedra, aquecer o coração como se fosse folhas secas, caídas no outono, o fim que tudo terá um dia. E também passar, não deixar senão pegadas que o capim cobrirá. Perder seu nome no vento, esquecer o nome de quem foi uma história no seu caminho e hoje, tendo permanecido naquele caminho, você sequer lembrar em qual curva, sob qual árvore, em que momento foi essa história.

Hoje, como quem se embriaga para sentir prazer, eu tomo o tempo em goles largos, espalhados por toda a boca e língua, tomo não para esquecer, dado que não sei, mas para reviver o sonho possível, a beleza palpável, que toda embriaguez recria. Tomo para recontar uma nova fábula de mim mesma.