Antes de
buscar entender o que havia atrás da floresta, daquela intensidade de árvores e
copas e bosques, daquele silêncio repentino que foi o encontro de olhares numa
clareira desconhecida, antes de começar a seguir em frente, sem bússola, sem
plano de voo, é preciso deixar que o tempo verta espraiado como água escorrendo
em todas as direções e sobre tudo, inundando de dias e noites em camadas
sobrepostas, como areia de duna, como folha caída, até que, se por ventura
ainda restasse algo vivo e sensível, tenha sido mansamente apaziguado ou
anestesiado.
Depois, o
tempo cobre de pó e descasca um pouco a imagem que restou, tirando às vezes um
pouco do brilho, se havia, mas também remendando os espaços vazios, esmaecendo
o que já não tinha cor ou amaciando os cantos escuros. E, ao cobrir de matizes
mais deglutíveis, torna fácil relembrar o que passou, recontar o que a pele
sentiu sem chegar a doer ou fremir novamente.
Assim, faz parecer
que foi uma decisão lúcida o que era apenas falta de saída, o que era uma porta
fechada, secreta, cuja senha ou palavra mágica se perdera por desuso. Faz crer
que a insistência em continuar tentando era uma visão romântica e não cansaço.
O cansaço das relações impressas em papel de pão, amassado, vulnerável. Cansaço
reticente, resistente, reativo, mas ainda assim, cansaço.
Olhar para
trás depois, muito depois, não faz estátua de sal, e pode ser facultado por
cuidar do jardim, arrumar plantas em vasos, cuidar de cães e dar atenção a
outros detalhes que, se observar bem, a vida é cheia.
Olhar para
trás, depois que tudo se acabou, é como querer lembrar o cardápio da noite
anterior, querer recuperar o gosto ou o cheiro, lembrar os sons dos talheres,
as conversas, os silêncios, na expectativa de sentir aquilo que não sentiu, de
responder ao que ficou sem resposta, tomar mais vinho.
Quando olho
para trás, para o rastro que deixei no caminho que sou eu, onde me detive
frente às pedras, onde fiquei à sombra ou mergulhei no riacho, vejo que, por
vezes, plantei mudas que crescerão árvores e obscurecerão minha passagem, e em
outros momentos, para que pudesse passar, amassei a erva, quebrei galhos, mudei
o curso de regatos.
O passado,
assim, parece ser apenas uma história contada por outrem, uma história
distante, diferente, um retrato congelado de alguém que você já não se
reconhece. E então, não há mais julgamentos, não foi nem bom nem mau, nem feio
nem bonito. O que passou foi apenas uma forma de falar, um jeito de ver, e não
mais uma marca na pele, uma cicatriz.
Olho pela
janela e, enquanto vejo a paisagem acinzentada pelo sol, na verdade estou
encarando o hiato entre duas mãos estendidas, procurando, tateando no escuro o
que poderia ter sido um universo, uma nuvem passageira, um voo flanado no
horizonte. O encontro do desencontro. O bilhete para o espetáculo errado, o dia
errado. O momento do desengano.
Mas se
ainda resta um momento de desengano, então é que falta mais tempo na caminhada.
O tempo resgata o desengano, e no passo certo sobre o passeio torto, vai
deixando para trás as ilusões, os devaneios, um pouco dos aromas e cheiros, vai
desnudando o peso dos ombros, desmarcando reencontros. Como o mar que arredonda
a areia, o tempo nivela as paixões.
O tempo
preciso para transformar o passado em histórias, para fazer brotar musgo na
pedra, aquecer o coração como se fosse folhas secas, caídas no outono, o fim
que tudo terá um dia. E também passar, não deixar senão pegadas que o capim
cobrirá. Perder seu nome no vento, esquecer o nome de quem foi uma história no
seu caminho e hoje, tendo permanecido naquele caminho, você sequer lembrar em
qual curva, sob qual árvore, em que momento foi essa história.
Hoje, como
quem se embriaga para sentir prazer, eu tomo o tempo em goles largos,
espalhados por toda a boca e língua, tomo não para esquecer, dado que não sei,
mas para reviver o sonho possível, a beleza palpável, que toda embriaguez
recria. Tomo para recontar uma nova fábula de mim mesma.