sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Amo você

Todo início, um estranhamento. Todo começo, uma novidade. Tudo diferente, portas em lugares inesperados, temperos onde não estariam. A vida anseia por começos porque a renovação é uma necessidade. Células que se revezam. Novos galhos, novas folhas, novos frutos. Todo impacto do novo na aragem da janela aberta. Há que deixar aberta a janela para que, o que nunca foi, seja.

Nas voltas do mundo, um dia diferente. Amanhece como todos os outros. Sol em céu amarelo aos poucos se tornando mais azul. As árvores balançam ao vento leve. Flores roxas e vermelhas. Cães ladram ao longe, e perto um gato pede atenção. Podia ser mais um dia. Podia passar como todos os outros. Mas não. Um brilho no olhar, um sorriso que insiste em ficar no rosto iluminado. E eis que nada será como antes.

Tem uma receita que não falha, uma hora que o silêncio reina, e tem regras para tudo. Apenas uma coisa foge disso: a paixão. Ela rompe com a rotina, faz crescer flores no peito, e estende o tempo. Ela dá novos nomes, troca a saliva da boca, os gostos outros. Paixão, tão única na sua expressão que chega a parecer sempre uma primeira vez.

Não. Eu não estou apaixonada. Paixão tira o chão, cria novas realidades. Traz paciência para onde só havia pressa. Faz rir quando antes faria magoar. Trocam-se os apetites, trocam-se abraços, os lábios não param de se tocar. Não. Não estou apaixonada. Já fiz muito em me apaixonar. Querer muito e muito e muito, a quase querer morrer. Ou quase querer ser o outro. Tomar o ar em torno daquele que faz sorrir de lembrar. Não.

Deve haver outro nome para isso. Uma palavra melhor que paixão, que diga além de todas as palavras aquilo que é além da paixão. Sim, amor. Amor com certeza. Ainda assim, deve haver outra palavra que desenhe o significado disso, além de além de além. Amor, sim. Mas o amor que deus plantou no coração de todos para viver pleno e total. O amor que colore a cor, que ressoa violino com tambor, a voz afinada do silêncio. Que não tem medo de escuro porque faz luz. Que anda por onde não conhece, e reconhece que não sabe.

Nem é amor, é amar. Um gesto. Uma atitude. Um querer. Amar. Sim, eu te amo. Nesse momento, tudo que era absoluto e presente passou. No amar, tudo o mais virou cenário. As frases soltas, sinceras, espontâneas, preenchem o palco. A peça, meu teatro para você, de arena, enseja um balé doce e suave, pleno. Sem cortinas, sem regras e contrarregras, sem figurinos ou figurantes.

De tudo que já falaram e já foi dito sobre o amor, meu amar sobrevoa. Amar você é um sim, um talvez, um por que? É uma pergunta sem resposta, uma resposta sem sentido, um sentido direto na aorta. Que gosto tem meu amor? Você o diga. Eu quero ouvir você dizer aquilo que nunca foi dito nem que seja o silêncio, inventar uma palavra para chamar esse momento, dure o que durar, um momento infinito. Quero ouvir você gritar meu nome no meio do teu prazer. E todo o prazer seja esse amor/amar você.

 Na minha vida já vivi tantas paixões e tantos amores, tantos. O plural que me confunde. Só não me confunde o amor que sinto por você. Amor que caminha pelo corpo, tranquiliza o coração e dispara todos os sentidos. O múltiplo, a proparoxítona, o verso sem rima no ritmo da nossa canção. A música que dança. Um “eu amo você” em cada canto da casa, sob o tapete, no banheiro, pendurado na parede. Eu olho no espelho e lá está: amo. Gargalhadas vibrando na noite. Nada solene, nada pesado. Amor que falta apenas dar nome e que, por enquanto, eu insisto em chamar de você!

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Amor e Ilusão

Quanto a mim, não alimente ilusões a meu respeito. Sou daqueles humanos exagerados na paixão e apaixonados na vida. Transbordando, sou grande, espaçosa e feliz. Vazia, sou poesia. E nos outros momentos, entre uma coisa e outra, eu quero muito.

A paixão se renova a cada paixão, como as ondas do mar. Subindo e descendo, levando e trazendo. Quem, como eu, se alimenta de paixão passa fome às vezes. Mas nunca come frio. Move-se entre chamas, os pés na brasa, as asas batendo aumentando o fogo. Nunca ocupando muito espaço na hora que está presente. E jamais deixando vago quando distante. Por isso, faço da paixão a lenha para minha vida. E deixo o vento apagar o rastro de cinza inevitável.

Não alimente ilusões porque sou pouco provável. Voo na hora do abraço e despeço-me no encontro. Gargalho durante o concerto quando tocada, profunda. Já preferi o sonho, a quimera e o impossível. Hoje procuro a vida que se concretiza ereta apesar da gravidade, que flexiona ainda que certa, e, acima de tudo, a vida que se propõe aberta, quem sabe, ao amor, ao risco, ou à própria ilusão.

Porque viver é cheio de ilusões, acertos e riscos. Tudo pode dar certo. Ou não. E mesmo quando não dá, é o que deveria ser. A certeza de viver é a inconstância das emoções que podem se sobrepor, ora querendo muito, ora partindo cedo. A vida na intensidade de um instante de pleno prazer e depois passando.

Tudo passa e tudo acaba. Finda o dia com o pôr do sol. Finda a lua cheia com a minguante. Finda a vida a qualquer momento. E assim o amor. Será? Morrerá o amor com todas as flores que ele traz hoje? Morrerá depois de tantas promessas, gargalhadas e lágrimas, olhares sinceros e beijos sem fim? Amor morre, por fim?

Se o amor é qualidade da alma, ele também deve ser imortal. Deve ultrapassar os limites da vida cotidiana, de amanheceres com café perfumado e pão quentinho, de banhos abraçados, e presentes do destino. E se reencontrar em outra vida, em outro olhar, no momento certo em que chega o bilhete para a viagem prometida.

Eu me prometi você. Esperei. Distraí. Disfarcei. Agora que eu ganhei meu presente, posso abrir um sorriso para o universo saber que o amor não tem duração, não tem tempo, não tem fim. Começa quando encontra. E encontra quando nem procurava. Meu amor apenas estava apartado do seu até o dia que se lembraram de si mesmos feitos um só. Então, como a flor que se abre para o sol, ou a chuva que alimenta a raiz, invisíveis nos fios que se unem, nos abraçamos.

Posso sentir seu sorriso e ouvir seu coração. E você saberá de mim quando nem mesmo eu saberei onde estou. No mais, fazemos declarações de amor sem palavra, e nos regozijamos da presença quente, vibrante, com apenas um olhar casual. Estou em você e você em mim. Meu sangue batendo em seu peito, no calor da pele que se deseja. Não procuro seu amor, não preciso dele. Seu amor sou eu.

E quando tudo o mais falhar ou já não houver, quando tiver sede ou faltar calor, quando o abrigo não for possível, nem possível o colo, o meu amor estará lá na sua casa, à sua espera. E você deve saber para não se confundir nunca: é apenas parte do meu amor aquele que dedico a você. Na minha vida continuarão existindo outros especiais como você que já passaram ou ainda estão, outros amores, outras paixões. E, se o amor não tem tempo nem espaço posto que é alma, é todo ele seu.

Ainda assim, não alimente ilusões. Alimente o amor que é eterno, para além da vida e para além do rio que deságua no mar. Alimente a certeza de que o perfume, seja ele azul como a lavanda, ou delicado como a verbena, o perfume da vida é o mesmo em tudo que rescende amor para que possamos nos reconhecer nele. Inteiro e sem tempo.

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Sou a indisciplina

Sou a indisciplina. Repetir para mim, seja uma frase, a sobremesa ou o caminho, me mortifica. Não faço duas vezes a mesma coisa com o mesmo empenho ou determinação. Gosto do vário, do múltiplo, do incerto. Não, nada de andar sobre o fio esticado no precipício. Nada de riscos desnecessários. Mas a aventura de ver um perfil novo a cada pôr-do-sol, uma nova cor no arco-íris, uma outra linha da mão.

Porque o que fazer daquilo que é sabido? Melhor o que não sei, pois me surpreenderá um momento. Melhor o que não vejo, pois me ofuscará quando enfim me deparar. O mundo sob o mundo visível, sem sinais, sem trilhas ou bússolas, esse é o que quero viver. Aquele que já transformei em traçado, em gato manso deitado, em palavras que sei o significado, não, não me interessa.

O vento. O rio que corre. O mar que explode. Todo o movimento que transgride a si próprio e o tempo. Essas e outras coisas insuspeitas, que levam mais além, é o que procuro. Aceito o não, o talvez, aceito perder, esquecer, temer. Só não suporto teimar no mesmo lugar até que a noite venha e venha o sol depois. Não posso ser a mesma pessoa ao amanhecer todo novo dia.

Por enquanto, faço muitas pegadas indo e vindo incansável. Faço perguntas, faço caso de respostas inseguras. E balanço um pouco para os lados na espera impaciente que o silêncio demora. Mas um momento aprenderei a economia do movimento. Aprenderei a esperar sem me cansar. E a ir embora quando já for a hora. De ouvir dizer o vento em murmúrio, reconhecerei que não há nada além do que meus olhos veem ou meus sentidos experimentam. Antena pineal acesa.


Porque a vontade nada tem de excitante se não trouxer em si um risco. O risco de ser feliz, de andar no sobe e desce dos humores sem perder o seu próprio. Sem escorregar na beira, comer frio, perder o sono. A vontade que tira você de querer ter uma rede embaixo. E que faz gemer de prazer de lembrar o prazer. Sonhar é bom, mas é a procura da perfeição que a vida não é. Prefiro o tremor do fascínio e medo de não saber quando, de não ter certeza, de admitir querer. Administrar a frustração é melhor do que não ter tentado. Mesmo se for um erro. 

sábado, 7 de dezembro de 2013

Tempo de Voar

Tem um momento na vida que a gente aprende a colocar paraquedas ao invés de deixar de saltar das alturas. A queda livre interminável, estonteante, desvirginal. A energia da terra entrando por suas narinas involuntariamente, afogando um pouco, quase morte. A vida vira de ponta-cabeça. Gira. Torna a girar. Enjoo. Vertigem. E por fim, o chão duro e intransigente. Tem que voltar uma hora, pisar em solo firme, reconhecer seus músculos, joelhos, voltar a ser vertical.

Descobri que não era um pássaro quando estatelei a primeira vez precipitadamente abaixo do horizonte. Foi uma decepção. Uma calamidade. Demorei para levantar a cabeça de novo. Aceitar o limite imposto. E, a bem da verdade, não aceitei. Continuei tentando uma outra e outra e outra vez o voo improvável e proibido. Sou como gato em frente de portas fechadas: quero entrar.

Talvez seja um vício, aquele de querer sentir tudo. Mesmo com medo. Mesmo quando significa perder sangue, perder a cor, sofrer inquietantemente dentro de uma gaveta com as chaves perdidas. Sentir todos os cheiros, todos os gostos, o frio, o calor, o suor. Sentir como se vivesse disso. E a vida, o que é, afinal? Voar e sentir.

Não, não vou parar de saltar para o infinito que há em não saber o onde, não saber o final de tudo. Lançar voo para o desconhecido de mim. Testar as bordas antes do precipício. Experimentar o vento. Às vezes tateando, sonâmbula, quase só resposta. E no mais das vezes, totalmente pergunta. Preciso do gosto na boca de haver muita água por engolir, como quando o desejo aparece no meio da tarde, no meio do nada, vontade pura.

Também não sou mais fiel. Prefiro ser a balança, indo e vindo, subindo e descendo, maré, luar. Nada em definitivo, nada definitivamente. Amanhã não sou mais. Fui. Gavião em mergulho cirúrgico. E no voo flanado, sem objetivo algum senão o lançar-se sem rede, passar do ponto. Sem me preocupar se alguém mais me acompanha, ou me segue, ou quer me cuidar. Quando passei a usar paraquedas também deixei de me preocupar. Abri o único par que me cabe: as asas. Nasci impar, descendente de lilith. E só soube disso recentemente.

Não abandonei a vida civilizada tão cara e imprescindível hoje em dia. Primatas que subjugam precisam de regras claras, limites curtos. Precisam inventar fechaduras, laços, fidelidade, igualdade, e o quartinho de bagunça. Porque a energia represada de continuar sendo selvagem – mas agora selvagem civilizado – faz tanta bagunça que não cabe nas prateleiras da casa. O selvagem que abriu mão do voo, que fala manso, baixo, controlado, e que cria regras para poder romper com alguma coisa. Não e não. Continuo morando em solo firme, mas subo no telhado.

Ainda preciso aprender muita coisa, é verdade. Aprender a impor limites, estabelecer meus contornos. E tantas outras coisas que nem sei ainda. Fazer de mim o pássaro que anseio, capturando nas asas abertas as correntes que passam ao invés daquelas que prendem. O ar. Parece que o melhor remédio é respirar. Encher de vazio o peito. O oco. Até ecoar total e alegre. Desprendidamente.  Nada no pescoço além de cachecol. Nada nos pés senão areia, o pó da estrada insistente. O abraço apenas no momento do abraço.

Talvez eu não saiba o que é liberdade. Mas sei que viver não prende, nem aperta, nem sufoca. Viver é olhar o infinito de braços abertos, beijar muito e deixar ir. Deixar-se ir.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Paixão e Medo



O medo e a paixão são a mesma emoção. Descargas de adrenalina no sangue. Os músculos enrijecem. O mesmo frio a percorrer a pele. Uma quase dor no estômago. Mas eu gosto mesmo é da paixão. E, se tivesse que explicar, diria que é uma questão simples: a paixão move para frente. 


Terei salvação? Abandonei a arena de gladiadores para enfrentar os monstros na rua, de cara limpa, sem armadura. Invadi a sala de espera fazendo barulho, de botas sete léguas, com capacete de motocicleta. Inapropriada e desconcertante. Ponham-me para fora, se puderem. Não ligo a tv, não tomo remédio, falo sozinha. No limiar entre a loucura e a sanidade sem promessa de vida eterna. Esbanjando sorrisos e acenando com a cabeça.


No mais, a paixão me diverte. É um bocado de bandeira hasteada, enfileirada, numa orla de praia. Todo mundo vê. Todo mundo sabe. Mas ninguém entende. Parece improvável. Não importa se tem validade curta ou se a perder de vista. Se ficará além de pegadas na areia ou se cravada na rocha. A água vai passar por cima. Muita água. Transbordando de tudo que é lado. Enveredando espraiada pela mata.


A paixão é assim, mata fechada em cima e embaixo. Um perigo. O sol lá fora esparramando vida tornando tudo o mais dourado. E cá na floresta a vida escorrendo desperdiçada e, se foi percebida, ainda assim sem sentido ou direção. A alegria, em geral, não tem sentido algum. 


Sim, a paixão passa ligeiro, bem ligeiro. Tão rápido, às vezes, que chega a não dar tempo de apontar no céu, de reconhecer no espelho, de entender. Eu já quis negar a paixão em prol do amor. Mas isso é o mesmo que o fogo não querer mais a lenha. O mesmo que a planta não aceitar mais água. Cortar o fio que traz energia para a lâmpada. Derrubar as paredes pelo lado de dentro. Então, o medo.


E o medo? Que diferença faz? Um estado de constante transe. Sobressalto. Como a paixão, tirando o apetite, tirando o sono, tirando tudo. Mas só a paixão tira a roupa, claro. Os dois iguais no risco de morte. Se eu pudesse escolher, morreria de paixão. Olhando o horizonte a procura do que virá, uma falta de certeza, uma música interrompida, silêncio justamente na hora do sim.


Ou talvez sem o medo não haja paixão. Um aperto para que o sangue volte a subir. Retorne ao peito. Porque paixão, diferentemente da plenitude da felicidade, embala feito onda de mar, vai e vem, sufoca a garganta e solta o ar, endurece e depois esmorece. 


Mas medo de que? Da morte. Do fim. De perder-se. Porque apaixonar-se é se perder no outro. É perder o dia. Perder o ar. Perder o caminho de casa, do plano de seguro, da aposentadoria certa. Perder o lugar na cama. Perder a hora. O trem. Ir a pé. Sem bilhete de volta. Sem certeza de acerto ou erro. Sem calma. Apaixonar-se, meu deus, intransigência do destino, incoerência dos sentidos, sinal piscando no vermelho. 


Gosto mesmo de regato que despenca sobre pedras, de tempestade que derruba as folhas, de gosto de cachaça na boca: queimando e docinha. A ordem do dia invertida, a começar pela noite que mal dormiu. O sonho preterido à vigília, de olho fechado, ouvindo o bater insistente da aorta no pescoço. A vida, se for ver direito, é paixão pura.

terça-feira, 19 de novembro de 2013

Violão e Vida



Eu queria que o violão entrasse em mim e eu me tornasse uma melodia. Ao invés disso, desisto. Não sou ritmo. Sou pura fama. Não tenho mãos que se falam. Não sabe a minha mão direita o que faz a esquerda. E o mundo todo gira à minha volta na total ignorância. A escura e fria ignorância. Mas boa e fácil também.

Na verdade, o que não sei é persistir. Procuro o jeito mais curva-de-nível-possível. Não quero nada que arda, coce ou dure. Dureza é um investimento num tempo que não virá mais. Quero o peso que não caia. A folha que revoe. O chão que cede. No mais, já estou indo embora.

Mas o violão vibra sua corda em mim. Numa escala de zero a dez, nada. Parece que ando para trás. Não subo a montanha, desço de costas. Não perco o fôlego, o ar me foge. No que vibra o peito, a caixa de ressonância impugnada, fico perplexa. Só a impotência me consumiria mais. E é ela que me consome.

Lágrimas incontidas escorrem quentes. Que gesto esse tão assustador que desmonta? Tão impregnado de uma tristeza grudenta e salgada a ponto de secar a garganta? A violência. Que envergonha até de contar. Que humilha. Oco. Profundo. Batida de atabaque nas cordas dedilhadas. 

Eu queria saber contar os causos tristes dos outros porque os meus desencantos me paralisam as cordas vocais. E de todos os cantos, uma voz soerguendo em notas desafinadas. Só queria ser um acorde frouxo e descontraído, fácil, fácil, repetindo sem dó a mesma canção. O vazio.

No vazio não há vibração. Apenas no amplo e aberto. Motivo pelo qual a dor viceja: a dor perpetuada pela insolência, pelo cinismo, pelo arcaico. Faz-me rir até às gargalhadas, um lampejo de luz piscando rápido. E depois passando. A mão perdida na passagem do som. Foste um difícil começo.

Quero erguer meu estandarte marron e amarelo sobre a cabeça de todos os desgostosos, de tudo sonso e de mau gosto, de toda a falta do que fazer, de todo o lodo e lama que há nos sapatos de todos os que têm razão. Eu ando descalça. A pedra me fere a pele, mas eu ando descalça. Devagar, com cuidado, mas solta e despenteada. Ergo meu triângulo da vida sobre a cabeça da morte para renascer o impossível, o inveterado, o devaneio. Ergo minha flâmula ao vento para ver balançar o cabelo dos meus pensamentos soltos como notas que se vão ressoar.

Do meu olhar, úmido da última lágrima, corre o rio todo desse novo mundo. O mundo que tem tempo para tudo, mas não espera ninguém.

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Filosofia da paixão



Eu não entendo nada de Foucault. Como, de resto, não entendo nada de tanta coisa. Mas ainda assim, e, talvez, por esse motivo, me apaixone tanto em ouvir. Fale-me de Foucault, fale-me da vida e de tudo que na vida não faz sentido. De todos os sentidos e direções a serem tomadas. Os propósitos e descaminhos que as pedras desavisadas se impuseram. Faça-me ouvir atentamente todo o vai e vem que for possível dentro e fora de um aquário. Mas faça-me parar para olhar fundo esse seu contar verdadeiro. Porque o olhar no olho me apaixona.

O olhar toca mais que a pele. Tateia como se estendesse a mão em aceitação. Tem palavras que não precisam ser ditas quando o olhar permite. E tem gestos mais precisos no olho que não teme do que é possível em quantos abraços forem dados. Perpassa por ele mais eletricidade, mais significados, mais paisagens do que pela janela do trem, mais calor.

Ou vai ver que qualquer pessoa que fique olhando nos olhos de outra pessoa por algum tempo, um bom tempo, acabe se apaixonando. Sim. Olhar nos olhos, bem dentro deles. Deixar-se embebedar pelo mar profundo, essa alma que se esconde no brilho. Ficar com medo, vergonha, incômodo, depois sim, ter coragem, se abrir, se expor. Sim, sim, sim. Olhar nos olhos é um sim.

Mas a verdade é que me apaixono fácil. Preciso da paixão como do ar. Careço do brilhar os olhos que a paixão me faz tanto quanto me exige a vida que o coração bata no peito. É meu nome. Minha alma. Apaixono-me pelo sorriso antes do café e pelo olhar que sorri depois de tudo. E sobretudo, me apaixono pela poesia que é sorrir com os olhos. Pelo segredo doce escondido no silêncio do canto dos lábios, em sorriso não expresso. Pela poesia que há em não haver mais do que o encontro fortuito de olhares. 

E sim, a intenção me apaixona. A intenção tácita de querer saber ao outro o que não diz. A intenção velada que aprisiona minha vontade. E me faz virar a cabeça acompanhando o gesto. Cada gosto que a palavra dita faz ecoar em mim, como um beijo lembrado no instante seguinte ao adeus. O piscar, o engolir a saliva que sobra na boca de haver muitas emoções. Tudo isso e mais um pouco, todas as formas de ouvir, de querer, de estar, me fazem apaixonar. Por isso, fale-me do que não entendo, faça-me o que não sei, mas olhe-me sem disfarçar, confiante e doce, e assim saberei: na retina guardarei o instante exato em que ganhei o dia. Ganhei a vida. Porque minha vida vale cada paixão que vivi e ainda vivo.

terça-feira, 29 de outubro de 2013

Por que a morte?



Por que a morte? Por que a morte? Por que não, o amor?

Eu não entendo a morte. Porque antes tinha que entender a vida. A vida, eu não entendo nada. Parece um caminho a ser aberto numa imensidão. E, outras vezes, se apresenta uma trilha única num espaço exíguo. Tem hora que voa. E outras que não passam nunca. É como gente que está quando você não quer, e desaparece quando você precisa. A vida, uma mentira? Uma falácia? Que verdade existe na vida? Ou as verdades são humanas...

E se não entendo da vida, o que posso esperar da morte? A falta. O vazio. A dureza do vidro pela janela que mostra tudo e não dá nada. A luz do meio-dia, a pino, ofuscante de tão clara, e quente. A vida, ao contrário, cheia de mistérios e segredos, passa pela noite sem lua. Passa lá dentro do peito que anseia. No querer que não tem, nos diálogos controversos da mão que estende e dos olhos que se fecham.

Eu não vi tanta coisa. A cobra coral que passou por mim. O pássaro que levantou voo com a cobra no bico. O sorriso perdido sozinho no escuro. Eu não vi tantos gestos quantas palavras foram ditas sem que ouvisse. O mundo que passa girando, sem parar na estação. O vento, o mar, o sol. Tudo que se move sem parar, sequer para pensar. Tudo que me faz pensar. A chuva que cai. A maçã que amadurece. O café que esfria. Tudo que não tem sentido algum. A formiga que acha o cristal de açúcar. O pássaro que pousa no fio. O seu olhar.

O seu olhar que se perdeu de mim e que era triste. Por que terá sido triste? E por que tão profundo? E por que me capturou sem pressa, ressonante feito nota musical de um tambor, bateu no peito e me atravessou, flecha envenenada de vida? Agora, que voltou para a vida que não tem forma, que não tem contrários, que é clara sem ofuscar, agora você pode me explicar?

Você pode me explicar por que a dor escolhida – tanta dor, meu deus – pode ter sido escolhida para ser vivida quando, ao mesmo tempo, no mesmo suspiro, o ar o mesmo, fazia tanta beleza ecoar pelo desejo dramático pela vida? Como ser tão importante e impactante na vida de outra pessoa que a faz se mover, virar a mesa, trocar de jogo, derrubar o balde, subir a ladeira, descer sem trem de pouso? Você saberia? Saberia que no toque de midas do gesto minimalista, mímico, econômico, preciso, você abria o canal porque passaria um rio? Você abria um caminho pelo qual pousaria um avião? Você poderia ter me dito isso.

E no susto de pular a janela aberta inesperadamente, no susto de quase congelar o grito, antes insuspeito na garganta, nesse momento em que você mostrou o fio invisível que se desenrolava, como efeito mágico de um espetáculo programado, eu me vi. E me vendo, você pode imaginar isso? – encontrei o farol da alegria a me assinalar o rochedo e o porto. Sim. Escolhi o rochedo, como bem você me enunciou.

Se um dia eu entender a morte, vou entender mais sobre a vida. Mas se hoje entendo mais sobre a alegria, um caminho que não tem volta, uma linha escrita na palma da minha mão, tenha certeza, isso foi você.
(à Silvana Abreu)