Tem um
momento na vida que a gente aprende a colocar paraquedas ao invés de deixar de
saltar das alturas. A queda livre interminável, estonteante, desvirginal. A
energia da terra entrando por suas narinas involuntariamente, afogando um
pouco, quase morte. A vida vira de ponta-cabeça. Gira. Torna a girar. Enjoo.
Vertigem. E por fim, o chão duro e intransigente. Tem que
voltar uma hora, pisar em solo firme, reconhecer seus músculos, joelhos, voltar
a ser vertical.
Descobri
que não era um pássaro quando estatelei a primeira vez precipitadamente abaixo
do horizonte. Foi uma decepção. Uma calamidade. Demorei para levantar a cabeça
de novo. Aceitar o limite imposto. E, a bem da verdade, não aceitei. Continuei
tentando uma outra e outra e outra vez o voo improvável e proibido. Sou como
gato em frente de portas fechadas: quero entrar.
Talvez seja
um vício, aquele de querer sentir tudo. Mesmo com medo. Mesmo quando significa
perder sangue, perder a cor, sofrer inquietantemente dentro de uma gaveta com
as chaves perdidas. Sentir todos os cheiros, todos os gostos, o frio, o calor,
o suor. Sentir como se vivesse disso. E a vida, o que é, afinal? Voar e sentir.
Não, não
vou parar de saltar para o infinito que há em não saber o onde, não saber o
final de tudo. Lançar voo para o desconhecido de mim. Testar as bordas antes do
precipício. Experimentar o vento. Às vezes tateando, sonâmbula, quase só
resposta. E no mais das vezes, totalmente pergunta. Preciso do gosto na boca de
haver muita água por engolir, como quando o desejo aparece no meio da tarde, no
meio do nada, vontade pura.
Também não
sou mais fiel. Prefiro ser a balança, indo e vindo, subindo e descendo, maré,
luar. Nada em definitivo, nada definitivamente. Amanhã não sou mais. Fui.
Gavião em mergulho cirúrgico. E no voo flanado, sem objetivo algum senão o
lançar-se sem rede, passar do ponto. Sem me preocupar se alguém mais me
acompanha, ou me segue, ou quer me cuidar. Quando passei a usar paraquedas
também deixei de me preocupar. Abri o único par que me cabe: as asas. Nasci impar,
descendente de lilith. E só soube disso recentemente.
Não abandonei
a vida civilizada tão cara e imprescindível hoje em dia. Primatas que subjugam
precisam de regras claras, limites curtos. Precisam inventar fechaduras, laços,
fidelidade, igualdade, e o quartinho de bagunça. Porque a energia represada de continuar
sendo selvagem – mas agora selvagem civilizado – faz tanta bagunça que não cabe
nas prateleiras da casa. O selvagem que abriu mão do voo, que fala manso,
baixo, controlado, e que cria regras para poder romper com alguma coisa. Não e
não. Continuo morando em solo firme, mas subo no telhado.
Ainda preciso
aprender muita coisa, é verdade. Aprender a impor limites, estabelecer meus
contornos. E tantas outras coisas que nem sei ainda. Fazer de mim o pássaro que
anseio, capturando nas asas abertas as correntes que passam ao invés daquelas
que prendem. O ar. Parece que o melhor remédio é respirar. Encher de vazio o
peito. O oco. Até ecoar total e alegre. Desprendidamente. Nada no pescoço além de cachecol. Nada nos pés
senão areia, o pó da estrada insistente. O abraço apenas no momento do abraço.
Talvez eu
não saiba o que é liberdade. Mas sei que viver não prende, nem aperta, nem
sufoca. Viver é olhar o infinito de braços abertos, beijar muito e deixar ir. Deixar-se
ir.
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