segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Mudar é preciso

De fora para dentro, vou renovando minha vida. Nova casa. Coisas e coisas do antigo recicladas – não precisa senão de coragem. Caixas de papelão dispensadas. Roupas. Minhas células renovadas no corpo. Nada ficando para depois. Nada que me ocupe espaço. Reduzi a quantidade de paredes. O quintal é do tamanho para andar nele, do tamanho que precisam cinco cães. E varanda para olhar as montanhas, um horizonte tornado mais longo, tornado mais silencioso e fresco.

Enquanto dispenso coisas, outras chegam no lugar. Um gatinho novo para olhar com aqueles olhos de perscrutar a alma – todo gato perscruta. Galinhas do vizinho passeando solenes no meu quintal. E bois ou vacas em visita constante ao lado da cerca. Pássaros desconhecidos fazendo sons estranhos à noite. E, para variar muito, mas muito mesmo, minha ordem nas coisas de dentro. Não sei decorar, meu senso de beleza é esquisito, sou solta demais. Misturo a dança da criação de shiva com kombi e fusca de brinquedo. Quase irreverente, quase mau gosto. Quase um erro de harmonia, mas não é. Agora é minha casa. O meu jeito é só um outro jeito.

A névoa não, ela continua a invadir os espaços, entrando lentamente, penetrando as árvores, o vale do entorno. Brumas. Por trás delas, quantos seres devem estar festejando a vida? Quantos não devem aproveitar que a nuvem desceu à terra para viver um dia no céu? O verde escurecendo do entardecer nevoento me fazendo feliz. Outra vez.

A felicidade é assim, uma névoa que entra no quintal e muda tudo. Muda o olhar. Muda a distância de tudo, o tamanho. Relativiza a importância, troca a ordem. Amacia a língua, o toque. Dá vontade de abraçar.

Hoje, como se fosse um aviso da natureza, choveu. Choveu muito. Desde cedo. Como precisava dessa chuva. Uma chuva de chuveiro, mansa e contínua. Foi como se lavasse o meu rastro. Foi como se apagasse os sentidos que já não têm mais lugar. Lavar de escorrer, de levar para a terra, penetrar no solo, carregando o peso de outras vidas para além dos pés, para além das sombras. Chuva fria, que arrepia, que se faz presente, impossível de não ser reconhecida. A alma precisa de uma dessas a cada temporada. Para ficar pronta para uma próxima.

E sempre há novas temporadas. Dá para tornar a vida uma aventura apenas seguindo em frente, sem se virar para trás. Só com coragem. E a coragem, o que é senão confiança? Caminhar à beira de si mesmo, ousar olhar para dentro, para o abismo, sentir vertigem e ter um frio na barriga, sentir a morte chegar, correr riscos. Morrer de medo. E, apesar do insólito, da falta de sentido, apesar de não entender o que está acontecendo, apesar de tudo contra, de todas as portas fechadas, de toda dor, toda impotência, apesar do apesar, seguir em frente. Abrir caminho onde falta direção. Romper os obstáculos. Ter tempo de pensar, mesmo quando o que há para fazer é pular para a outra margem. Aventura pura.

E agora, que entrou em cartaz um espetáculo de porta aberta, de teatro de arena, de espaços amplos, de possibilidades desconcertantes, de rimas fáceis e divertidas, agora, que o tempo de chuva é apenas uma limpeza para o azul que virá, agora, exatamente nesse instante, estou com o bilhete na mão, com o pé no palco. A luz em mim me ofusca um pouco. Posso entrar tropeçando, mas recupero o prumo, a proa. E me encontro.

Para fugir dos monólogos, busco aqueles que entendem minha língua. E para melhorar meus diálogos, procuro quem não entendo. Às vezes acerto, outras não. Quando não, é duro. Difícil de aceitar e de dormir. Eu sou do lado luminoso da vida, o palco, aplausos, músicas, palavras, pessoas. Prefiro o sol à lua, mas como ela é linda. Ainda assim, algumas vezes, preciso seguir sozinha, no escuro ou sem fundo musical. Nos contrastes, a vida vai se revelando.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Amanhã vai ser outro dia

Eu não estou preparada para a perda. É sempre um impacto. Preciso de tempo para mudanças. Preciso de sentir um pouco antes de conseguir pensar. Olho para o vazio que ficou e paro. Meu coração vai aos poucos desacelerando e ficando normal. Meus olhos deixam de olhar de um lado para outro e acalmam. Deixo de segurar o ar no peito, um medo sempre enorme de sufocar. Sento. Espero a saliva voltar para a boca e afinar a língua. Encosto. Os ombros caem um pouco até ficarem no lugar. Respiro fundo.

Perder alguém é como entrar num túnel longo e curvo, onde não há como ver a luz do outro lado. É como mergulhar no mar de noite: escuro e silencioso. É como ficar para trás quando todos se foram. Sinto-me como se tivesse sido traída, abandonada, esquecida. Fiquei. Perdi o trem. Perdi o voo. Perdi o vento que anunciava e me anteciparia se eu tivesse ouvido. Perdi de entender por quê. Tudo fica colossal e descomunal. E eu pequena no meio de tudo.

Não. Não sei perder nada nem ninguém. Eu espero ainda por um tempo que tudo volte ao normal. E o normal era como era. Eu não me conformo, não me conforto, não me convenço. Procuro um sinal, procuro um recado sobre a mesa, um bilhete de adeus. Procuro atrás dos móveis, debaixo do tapete, algum motivo, algum traço perturbador que me indicasse, me prevenisse, que me dissesse apenas que fui eu quem não viu, mas estava lá. Estava lá o tempo todo. Todos os semáforos vermelhos, todas as portas fechadas, todas as ligações não respondidas, não retornadas, todas as vezes que minha mão vagou no vazio estendida.

Ou o inesperado, aquilo que leva para longe os braços do abraço. Aquilo que irrompe pela porta sem ser chamado ou querido, e que afugenta cumprimentos, que corta como faca a carne desavisada. Que leva pra nunca mais o olhar, como névoa que encobre o que havia. E esconde a presença. Deixa apenas a lembrança, tênue, da alegria que vivi.

Ao menos isso. O que vai leva consigo os momentos ruins, desconjuntados, destorcidos, todas as situações de desencaixe. Só fica na lembrança o que deixou marcas boas, o sorriso repentino, o olhar de aconchego. Ficam as tardes de sol, os passeios em que o silêncio refletia cumplicidade; ficam cotidianos de filmes e livros e jantares e amigos. A vida, enfim. O bom da vida.

Então, nesse passar do tempo, o vazio vai se preenchendo de novo. Não mais com o movimento de outrora. Mas com fotografias vivas das emoções que ficaram. Ficaram retidas na retina e que apenas uma pincelada inadvertida de alguém pode mostrar. Ou ficam presas na pele e talvez, numa noite de leitura, algumas centenas de palavras espalhadas por um pacote de folhas de papel possam demonstrar.

E nesse tempo, um novo vem habitar os minutos que contam. Uma nova lufada de vento. Uma tempestade que arrasa tudo e deixa o vazio limpo, desobstruído. Ou um rio crepitante como uma fogueira, mas sempre correndo. E, de repente, como se nada tivesse acontecido, percebo que a vida continuou, intacta e conecta. Que as pessoas seguiram seu ritmo e inclusive eu, que pensei que morreria, que dramaticamente chorei e sofri, estou firme e forte olhando pela janela em busca do novo horizonte.

Eu não sei perder e por isso, a cada perda, ainda sinto falta de outra forma de resolver as dificuldades. Ainda penso que existe um jeito de contornar e se restabelecer. Apenas a morte fica ali me acenando dizendo para que tenha calma. Tudo morre em algum momento. Só o que já morreu há muito tempo mantém-se de pé imutável. A vida passa. A vida muda. A vida revive, semente de uma nova planta. De um novo amanhã.