De fora
para dentro, vou renovando minha vida. Nova casa. Coisas e coisas do antigo
recicladas – não precisa senão de coragem. Caixas de papelão dispensadas.
Roupas. Minhas células renovadas no corpo. Nada ficando para depois. Nada que
me ocupe espaço. Reduzi a quantidade de paredes. O quintal é do tamanho para
andar nele, do tamanho que precisam cinco cães. E varanda para olhar as
montanhas, um horizonte tornado mais longo, tornado mais silencioso e fresco.
Enquanto
dispenso coisas, outras chegam no lugar. Um gatinho novo para olhar com aqueles
olhos de perscrutar a alma – todo gato perscruta. Galinhas do vizinho passeando
solenes no meu quintal. E bois ou vacas em visita constante ao lado da cerca.
Pássaros desconhecidos fazendo sons estranhos à noite. E, para variar muito,
mas muito mesmo, minha ordem nas coisas de dentro. Não sei decorar, meu senso
de beleza é esquisito, sou solta demais. Misturo a dança da criação de shiva
com kombi e fusca de brinquedo. Quase irreverente, quase mau gosto. Quase um
erro de harmonia, mas não é. Agora é minha casa. O meu jeito é só um outro
jeito.
A névoa
não, ela continua a invadir os espaços, entrando lentamente, penetrando as
árvores, o vale do entorno. Brumas. Por trás delas, quantos seres devem estar
festejando a vida? Quantos não devem aproveitar que a nuvem desceu à terra para
viver um dia no céu? O verde escurecendo do entardecer nevoento me fazendo
feliz. Outra vez.
A
felicidade é assim, uma névoa que entra no quintal e muda tudo. Muda o olhar.
Muda a distância de tudo, o tamanho. Relativiza a importância, troca a ordem.
Amacia a língua, o toque. Dá vontade de abraçar.
Hoje, como
se fosse um aviso da natureza, choveu. Choveu muito. Desde cedo. Como precisava
dessa chuva. Uma chuva de chuveiro, mansa e contínua. Foi como se lavasse o meu
rastro. Foi como se apagasse os sentidos que já não têm mais lugar. Lavar de
escorrer, de levar para a terra, penetrar no solo, carregando o peso de outras
vidas para além dos pés, para além das sombras. Chuva fria, que arrepia, que se
faz presente, impossível de não ser reconhecida. A alma precisa de uma dessas a
cada temporada. Para ficar pronta para uma próxima.
E sempre há
novas temporadas. Dá para tornar a vida uma aventura apenas seguindo em frente,
sem se virar para trás. Só com coragem. E a coragem, o que é senão confiança?
Caminhar à beira de si mesmo, ousar olhar para dentro, para o abismo, sentir
vertigem e ter um frio na barriga, sentir a morte chegar, correr riscos. Morrer
de medo. E, apesar do insólito, da falta de sentido, apesar de não entender o
que está acontecendo, apesar de tudo contra, de todas as portas fechadas, de
toda dor, toda impotência, apesar do apesar, seguir em frente. Abrir caminho
onde falta direção. Romper os obstáculos. Ter tempo de pensar, mesmo quando o
que há para fazer é pular para a outra margem. Aventura pura.
E agora,
que entrou em cartaz um espetáculo de porta aberta, de teatro de arena, de
espaços amplos, de possibilidades desconcertantes, de rimas fáceis e
divertidas, agora, que o tempo de chuva é apenas uma limpeza para o azul que
virá, agora, exatamente nesse instante, estou com o bilhete na mão, com o pé no
palco. A luz em mim me ofusca um pouco. Posso entrar tropeçando, mas recupero o
prumo, a proa. E me encontro.
Para fugir
dos monólogos, busco aqueles que entendem minha língua. E para melhorar meus
diálogos, procuro quem não entendo. Às vezes acerto, outras não. Quando não, é
duro. Difícil de aceitar e de dormir. Eu sou do lado luminoso da vida, o palco,
aplausos, músicas, palavras, pessoas. Prefiro o sol à lua, mas como ela é
linda. Ainda assim, algumas vezes, preciso seguir sozinha, no escuro ou sem
fundo musical. Nos contrastes, a vida vai se revelando.