terça-feira, 22 de novembro de 2011

Feliz por estar comendo cogumelos selvagens


Feliz por estar comendo cogumelos selvagens em pleno novembro. Nem os próprios cogumelos entenderam 15°C num quase verão. Mas de qualquer jeito, entendendo ou não, eles foram refogados em azeite de oliva, cebolas crocantes e alho cremoso, flambados em saquê e servidos em pão tostado, delicioso. Claro, e vinho branco torrontés. Bom. 

Colhi os cogumelos quando chegava em casa, sob os pinheiros. E não me lembro sequer de estar com fome, mas logo já os preparei e devorei. Deixei um pouco pois o pão acabou antes e sei reparar no meu apetite, como o prazer de comer. Cebolas douradas e brilhantes de azeite sobre lâminas de cogumelos me olharam desapontadas. Só mais uma garfadinha, pediram. E resisti sem sacrifício.

Os tempos são outros. Alguma coisa no ar informando que algo mudou. Vento frio lá fora. Muito frio. Cogumelos de inverno no verão. Céu azul, azul, sem chuva. Silêncio de vento. Sempre que algo sai do normal, eu penso na vida. Será que em outro tempo, na idade média, alguém parou um dia de verão com sol de inverno e pensou que algo mudou? Será que sempre houve mudanças e fim dos tempos? Um dia foi a virada do milênio, outra foi o fim do calendário maia. E nós sempre e sempre pensando que é chegado o momento do juízo final.

Tenho entendido mais do que já entendi em toda minha vida, eu que passei toda ela pensando e pesquisando sobre. Lendo sobre o lado oculto, o lado obscuro, as sombras, a vida ela mesma, em si, em mim. Hoje, mais do que nunca, estou calma. A calma justa dos que puderam viver, acordar, sentir mais do que entender.

E comer cogumelos do bosque, com perfume de terra e ervas, é meio que me sentir novamente um ser terreno e vivo. Bicho. Os bichos são felizes, não pensam. Pensar é um pouco morrer ou passar o tempo. Pensar é doer como os ombros que pesam. É doer. Doer é pensar. Quem sabe da dor senão pensa a respeito? A dor é um pensamento sem tino. E pensamentos passam, se soubermos deixá-los livres, aceitá-los, deixar que vivam o tempo que precisam. E que passem depois. Passem como as lembranças, passem como sorriso que abre a boca sem palavras. A dor passa antes que nos acostumemos com ela.

Cogumelos debaixo de pinheiros, esperando o momento de ser colhidos por mãos que os reconhecem. A vida pode ser melhor quando a fazemos como o jantar colhido do quintal e levado ao fogo para dar prazer mais do que alimentar. A vida, sujeito, agente, ativa. A vida no presento do indicativo, primeira pessoa do singular. Feliz, mesmo se não houvesse cogumelos.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Domingo à noite


Diga-me sinceramente quem você conhece que pode estar, num domingo à noite, comendo salada de ovos caipiras com ervilhas frescas orgânicas, cozidas, tudo envolto em molho de maionese caseira, de alho poró? Ervilhas orgânicas tão frescas que chegam a ser doces. Sim, e pão integral tostado, claro, claro e clarissimamente acompanhado de um vinho branco torrontés refrescado. Agora, certamente você conhece quem pergunte: “maionese caseira? que medo! Ovo faz mal ainda mais à noite!”. Mas, na verdade mesmo, seria apenas e puramente despeito: imagina que isso acontece num domingo à noite!
Quanto medo em torno da mesa. Poucos os que se sentam ainda à mesa, em conjunto, para comer a comida preparada por ambos, cuidada por seus olhos atentos, mexida com sua colher. Parece mais um trabalho do que um prazer! E é mais do que prazer, é diversão. Entrar numa cozinha branca e fria, tudo organizado e limpo, tirar panelas, acender fogão, fazer um bocado de bagunça. Num momento a geladeira aberta prenuncia que há fome por perto. No outro, panelas fervendo exalando o perfume do amor que compensa qualquer colesterol alto, excesso de sódio ou glicose.
De mim, uma certeza: se um dia for proibida de comer pão, por favor, desligue os fios e vá embora porque deixei de merecer a confiança da vida. Pão é vida, meu deus! Com manteiga e café, obviamente, a essência da vida. O pão alimenta o apetite dos que têm fome transcendental. E a fome transcendental chega em geral nos domingos à noite. Devagar, inesperadamente e se instala com aquele jeito de interrogação: e agora? Bem, primeiro saciar a fome existencial, depois as outras fomes.
A beleza, a leveza e o sabor, uma tríade que facilita a passagem de qualquer portal, qualquer outra dimensão da vida. É como rezar. É como agradecer. Agora, eu só preciso aprender qual a comida do perdão porque, pelo que me consta, preciso perdoar muito. Preciso olhar para mim, para dentro da panela, antes de qualquer azeite, de qualquer tempero, olhar para o reflexo que aparece lá no fundo e sorrir com compaixão, me perdoar de tudo que não fiz, tudo que não quis, que renunciei, que amarguei um não, que me implorei silêncio em vão. Preciso colocar mel em toda a pimenta que já despejei antes, para adoçar um pouco um coração que ardeu uma tristeza até virar cinza. E, no passe de mágica que transforma o leite em queijo, a uva em vinho, me refazer em perdão por mim mesma. Lavar-me na torneira aberta desesperadamente fluindo até sentir o frio que a pureza provoca na pele. Abrir os dedos da alma, um a um, para deixar passar a luz do sol. E quando começar a aquecer, murmurar baixinho: perdoa, meu deus, perdoa. Deixa o vento soprar, deixa o pé pisar a terra tornada fértil novamente. Perdoa e sopra o som divino da vida em meu ouvido. Poderei, então, repartir o pão da minha mesa abençoado e renovado, compartilhar a alegria tornada transparente e solta, e comer salada de ovos com ervilhas com a imensidão invisível que brinda comigo!