domingo, 22 de novembro de 2015

A vida real

Gosto de dias nublados do mesmo modo como gosto de dias claros. Gosto principalmente da sucessão entre eles, da não uniformidade, da imprevisibilidade como seguem um ao outro. O que não gosto em tudo é a teimosia em manter-se em estado de ser o mesmo. A teimosia de continuar sendo o que era, repetindo-se. A teimosia, em si.

E não é um gostar assim abstrato, intelectual, como quem gosta de coisas que nunca experimentou, ou acha que seja melhor assim. Quando se supõe uma situação hipotética, nós somos sempre heróis. Sempre estamos identificados no lado da força e da luz. Nunca nos vemos como aquele que terá uma reação sórdida ou horrível. Exceto se esse horrível estiver de acordo com nossos princípios e valores. E então, decerto, não será assim mesmo uma coisa horrível.

Agora que sei que fazemos parte de uma ilusão de realidade, e que tudo, tudo, tudo que vemos e acreditamos ser objetivo e externo não passa de uma experiência interna, subjetiva, agora, estou mais feliz. Isso me fascina. Fascina que o destino seja uma das possibilidades que se me apresenta e que seja também fruto de minhas escolhas, profundas, intrínsecas. E fascina também o mistério que a envolve. Como é que posso viver experiências doloridas por escolha? Onde estava minha consciência nesse momento?

Bem, minha consciência estava inconsciente de que me causaria dor, claro, até o momento doloroso da vivência. Leituras e decisões envoltas em véu, que só se mostram como são depois de fazer doer. Ou não. Mostram-se também na contemplação alegre de um dia nublado e lindo por trás de árvores. Mostram-se na beleza inusitada de gotas de chuva numa folha, ou na beleza intencionada de um artista. Como caixas de surpresas, cada gesto levando a um despertar diferente, novo, sensível. E dramático. Como a beleza colorida de um pássaro que, à minha frente, sem hesitação, rouba o ninho de outro, levando consigo seu filhote frágil e indefeso.

Não. Definitivamente a vida é mais complexa do que uma sucessão de certo e errado, de bom ou mau, de céu e inferno. A vida tem mais nuances e percalços do que gostaria a preguiça em aprender e crescer. A inércia esperava pelo mesmo ritmo de sempre. Sem solavancos. Um voo sem turbulência.
Quando olho para a cena do pássaro maravilhoso em sua única atitude possível, penso que há uma explicação para tudo, até para os flagelos. Ou, ao menos, procuro ver um significado em tudo. E encontro. Porque, sim, viver é melhor que sonhar, mas uma vida sem sonho é uma existência, apenas, difícil para levar. Uma existência à mercê de eventos aleatórios demais para que eu aceite.

Necessito do sonho como da água para molhar a boca e a garganta toda manhã quando acordo. Necessito acreditar que a beleza ou alegria sejam estados internos, subjetivos, e que, portanto, depende apenas de torná-los reais ou distantes a cada dia. Claro. Nada disso é tão somente resultado de um pensar intelectual e básico. E ninguém é tão básico assim, que muda por decisão racional, independente de seus sentidos. Posso viver o atrito entre os sentidos e a razão, unificados em uma mente obcecada em acertar, ou posso viver a harmonia dos opostos em sucedâneos indo de um sentimento a um pensamento, e criando novos caminhos e novas conclusões.

Quando a realidade é um reflexo do que sinto e experimento, retroalimentada por julgamentos anteriores, então a vida se torna um lugar melhor para estar. Um lugar no qual minhas escolhas, mais do que definir a qualidade, são também o piso e o cascalho onde apoio meus pés. É como se, de repente, eu pudesse mudar o final do filme que acabei de assistir. E posso. Posso olhar para trás e verdadeiramente me perdoar, perdoar a todos, e escolher amar, ao invés de sofrer.

E no final, entre uma atitude e outra, o que quero, como todos, em tudo é amor, amar e ser amado. Da eletricidade dos átomos que se unem ou se liberam, da paisagem que se descortina iluminada ou nublada, dos gestos que estendem as mãos ou se recolhem, das bocas abertas em meio a uma palavra que reflete o que vai no peito, no âmago, em tudo que foi dito ou por dizer, e em cada som ouvido, do canto dos pássaros ao grito de horror, tudo que provoca uma reação química ou física ou magnética em mim, antes de tudo, antes do princípio, fui eu quem engendrou. E assim, mais do que nunca, sei exatamente que deus existe e que me criou à sua imagem e semelhança, um deus também que se cria e se recria.

domingo, 15 de novembro de 2015

Um dia você acorda

Um dia você acorda e vê que cresceu. Assim mesmo, se dá conta do feito. Quantas coisas você faz por decisão sua? Não quero dizer por escolha dentre as alternativas que a vida apresenta. Mas que você realmente foi atrás e conquistou. Seja um novo trabalho, seja um novo lugar. Um caminho novo, uma saída sem necessidade. Tudo caminhava bem e, então, você resolveu mexer no time que estava ganhando. Você saiu da sua zona de conforto. Você tentou, arriscou, investiu em algo inesperado, contra o senso comum, apenas porque entendeu que seria melhor, ou ainda, não entendeu, mas sentiu.

Trata-se de um salto, não um degrau. Como se, de repente, aquilo que nunca você tinha querido antes, fosse tudo de que precisava agora. Diferente de subir uma ladeira, uma escada, diferente do passo-a-passo paulatino das rotinas. Dá um medo e um fascínio. Uma alegria imensamente nova. Uma energia. Agora, você pode dobrar uma barra de ferro no peito, pode quebrar uma tábua com os dedos. Mais que isso, você pode fazer o seu destino. A sensação é real como se tivesse acontecido. Falta o ar e podem descer lágrimas. A boca seca.

Quantos anos você tem? Não importa. Você simplesmente acordou. E as respostas que você dava ao mundo parecem brincadeira de criança, distantes. Já não importa mais muita coisa que importava. E o que importa parece tão mais simples.


Não é assim nada excepcional. Tem pessoas que crescem rápido por necessidade, obrigadas pela vida. Obrigadas por um destino que lhe bateu na porta até derrubar. Elas têm consciência do esforço desprendido para chegar a cruzar a fronteira entre o conforto e o necessário. É duro. E muito pessoal. Quem pode dizer quem mais sofreu numa separação? Numa falta de um pai ou mãe? Quem pode saber realmente o que passou aquele que viveu desastres, catástrofes, flagelos, abusos? No melhor dos casos, você pode compreender, ser empático, pode dar a mão. E dormir depois porque a vida continua.

Você está bem. Não teme por seu sustento, não lhe falta o imprescindível, está cercado pelos que lhe querem bem. E ainda assim, resolve assumir o leme do seu barquinho. De verdade. Sem estar apenas respondendo aos desafios que se impõem. Olha para o mar imenso e infinito que se abre à sua frente e olha para o porto onde está ancorado. Tantos barcos já se quebraram ainda amarrados ao porto apenas se chocando com outros em dias de mar arredio. Não há porto seguro de fato. Seu barco, que foi feito para navegar, começa a sofrer com a maresia. E, num repente, além do horizonte igual, você consegue entrever uma possibilidade. Você chega a ver uma ilha, uma ponta de uma montanha, uma direção se desenha aos seus olhos sonhadores. Antes que você pense melhor, seus braços começam a desamarrar os nós, suas pernas iniciam sua jornada. Quem levanta assim sua âncora e se lança na aventura de viver, não chega no outro lado do mar. Chega outro.

Outro olhar, outro sabor. Outra pessoa na mesma e velha conhecida. Chega renovado pelo esforço – porque pensar renova as células do corpo. E sonhar renova a mente e o corpo. Você é absolutamente outro. Mal tem tempo de sentir-se regozijado com a conquista, mal compreende o que se passou, já está diante de uma nova rotina. E antes do primeiro passo na nova terra, se dá conta de suas pegadas na areia. Novas. Então, lança um último olhar para o continente de onde saiu, mede a distância, se incorpora da proeza. Conseguirá transcender seu senso de identidade que ficou para trás, no cais? Conseguirá aceitar que os próximos, principalmente os muito próximos, continuem esperando de você o mesmo que já foi um dia, só porque é mais confortável para eles também? Se sim, parabéns! Você cresceu.

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Merecer ou Não Merecer

Eu queria combinar com você, que me lê, o seguinte: vamos usar a palavra merecimento, e seus derivados, apenas para coisas boas. Assim, Ricardo mereceu ganhar o prêmio, a Associação merecia passar no concurso e Tião mereceu os parabéns. Independente dos motivos, independente dos esforços ou posturas. Mereceu. E não mais usar essa expressão para coisas ruins, como: seu fulano mereceu perder a casa, ou ela merecia um castigo, ou ele bem que mereceu ficar de fora.

Não. Merecer é ganhar, é para cima. A gente vibra com o mérito de um amigo. Quer que as coisas saiam bem, resolvam. Ninguém merece ficar doente, nem sofrer. Se errou, foi resultado de escolhas equivocadas, ignorantes. Ninguém erra porque quer, errou porque tentou. Aprendemos errando, embora não seja uma necessidade. Erramos para aprender. Fazemos escolhas o tempo todo, buscamos o equilíbrio das atitudes. Ou buscamos o melhor. Quem busca o melhor, merece o fracasso?

Ah, mas tem gente que quer o melhor para si em detrimento do que quer que seja. Ora, quem nunca foi egoísta? Quem nunca foi grosseiro? Quem nunca errou? Então, se errou, merece sofrer? Não. O sofrimento é uma consequência e deve ser passageiro. Não é um prêmio negativo. É como uma bússola que indica o norte. Ela não fala para você que está errado, ou que a direção é outra. Teimosamente, continua mostrando o norte, você vire o leme para onde for.

Somente quem toma decisões pode errar. Somente quem dá um passo pode errar. Todos os outros que ficaram em casa, quietinhos e bem guardados, podem não errar. Mas isso não é garantia de que não sofrerão. Porque até mesmo não querer se comprometer com nada é uma escolha e terá consequências.

Vamos combinar que não podemos julgar senão nossos próprios atos. E assim mesmo, com toda a paciência do mundo, cordatos, amorosos. Porque a dureza não é humana. Ser humano por natureza é flexível, maleável, doce. A dureza não pode ser justificada de maneira alguma, mas entendida. Absolvida. Adoçada.

Quando chamamos a dor de alguém por merecimento, nós endurecemos por dentro. Aceitamos a dor e ela é aviltante, humilhante. Deveríamos repudiá-la. Ninguém precisa sofrer para aprender, mas precisa acordar. Ninguém precisa merecer sofrer para tomar consciência. Ninguém sofre porque quer. Mesmo os mais relutantes, os mais obstinados, obcecados e teimosos. Até quando apenas reage, o ser humano quer o melhor.

O diabo serve a deus, se ele é sua cria. Então, se até ele merece perdão, o que dirá nós, mortais procurando um caminho de alegria e felicidade, andando sobre pedra e lama. A vida não é a perfeição. Respiramos porque sem oxigênio morreríamos, mas o oxigênio enferruja o corpo, e morremos aos poucos. A vida é um paradoxo e é mais complexa do que esse jogo de certo e errado. Por isso, você merece o melhor, e merece ser reconhecido nesse melhor.

sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Porque sim

Mas o que esperar de um relacionamento? Que ele possa acrescentar, fazer uma diferença, ser importante, dar importância. Que traga significados além dos ansiados. Que seja um sim.

O sim é especialmente mais importante que quaisquer outros pontos. Sim quer dizer: quando um não quer e o outro quer, sim. Quando houver uma divergência de pontos de vista, nenhum precisa ganhar, não é uma competição. É inclusivo. Mais ou menos como dizer: eu não concordo, mas compreendo.

Sim quer dizer ultrapassar limites auto impostos, conformados, não questionados. É uma possibilidade de reflexão, de autoanálise, de tomar consciência. É uma abertura para poder crescer onde, talvez, de outra maneira nunca teria sido tocado.

Sim é soma. É andar no escuro. É confiar. E confiar é tudo num relacionamento. Mais que tudo. Não existe relacionamento sem confiança. O resto é apenas tensão, jogo de azar, desgaste desnecessário, relação de poder. Confiar é trilhar um caminho com entrega, com bondade. Embora haja o risco, embora haja incerteza, ainda assim, dar o passo. Confiança é a árvore que está dentro da semente.

Sim é encontrar encantamento onde até o pó já se instalou. É contar histórias, rir do próprio erro. Sobretudo, é não ter medo de errar. E se tiver medo, não se deixar subjulgar por ele. Pode haver encantamento na teia de aranha, que surgiu de um dia para outro, ou no desenho que a água do chuveiro faz no azulejo. Há beleza nos olhos dos animais, nas folhas que caem das árvores, mesmo que nos faça varrer o quintal todo dia.

Deixar entrar o sim na vida, entre duas pessoas, é como derramar a calda sobre o pudim: deixa tudo mais gostoso. Porque, de outra maneira, era melhor ficar sozinho. Viver numa ilha. O desafio de estar perto, de poder esbarrar um no outro, ou de escolher estar junto, esse desafio é o que torna a vida mais interessante. Porque uma vida-sim não é a solução mais fácil. É a melhor. É a mais importante. E o que é importante, não se faz assim, de qualquer jeito.

O sim é a diferença que acrescenta assunto na vida. Apenas pelo motivo de que, a negativa exclui possibilidades. Enquanto o sim abre espaços e, se não ilumina por si, promove chances de iluminar. Ele estende fronteiras, amplia horizontes, faz o sol tardar a se esconder.

Sem detrimento de encontrarmos significados na trajetória individual – porque o crescimento de cada um é individual – a vida se traduz em mais significados quando se deixa permear por outra. Universos únicos e completos, de todo jeito, podem se tornar mais conscientes no contato.

Relacionamento é relacionamento, seja ele afetivo, fraterno, profissional. Todos igualmente sim. Todos plurais, possíveis, luminosos. Todas as pessoas procuram relacionamentos significantes, gratificantes, por mais que se sintam bem consigo mesmas. Procuram no externo aquilo que é reflexo de si mesmas: sua divindade. Veem nos entes amados o brilho e a luz que, aos poucos, vão se apropriando como sua também.

Então, o que diferencia uma amizade de um relacionamento afetivo? Por que as pessoas não se casam com amigos? Talvez porque amigos não precisam de compromissos formais. É uma união estável e livre. E o relacionamento afetivo se compromete no tempo e no espaço para que as mudanças necessárias para o crescimento possam se instalar, pouco a pouco, degrau por degrau. Porque crescer exige esforço, não é um mecanismo automático, requer atitude. Precisa ser alimentado, ser cuidado. A amizade é um relacionamento mais fácil porque é sempre sim, não precisa de nada. O afetivo precisa ser lembrado de quando em quando que querer caminhar lado a lado não significa impor o ritmo de um sobre o outro, que viver junto não significa ter que gostar das mesmas coisas, do mesmo jeito, no mesmo tempo. Diferenças não são um problema no relacionamento, o crucial é saber aceitá-las. 

terça-feira, 14 de julho de 2015

Perto do fim, o sim

O caos. Num movimento inesperado, tudo em barulho, embrulhado, entornado. O que estava inteiro, quebrou. O que estava sobrando, acabou. E o que era verdade, falhou. As certezas todas descem corredeira abaixo levando a chuva que agora pouco era céu. E descendo assim, vão carregando o que encontram pela frente: um olhar que sustenta, a mão que acena, um coração que ainda bate forte e desgovernado.

O cais. Tudo balançando no movimento de sobe-e-desce de barco atracado. O vento fez onda sem parar por todo lado. E a perspectiva insólita do horizonte móvel parece enjoo. Um nó no estômago. Um grito de socorro. Eu não sei o que quero, nem sei o que seria bom. Não sei se erro de não saber, ou se erro por querer. Um leme que vira para a direita quando quer ir para a esquerda. Um capitão que não deixa o navio naufragar sozinho.

O tao. Se eu pudesse não causar desarmonia, já teria valido a vida. Mas falar é bem mais fácil que viver. E viver é o contrário de tudo que já foi dito. Viver é um sonho de ponta-cabeça; se apoia no vazio, ruma o inesperado, desenha na areia segundos antes do mar passar. Se eu pudesse apenas amar e ser amada, já seria o bastante. Mas não basta nunca. O querer é um passo atrás do que me faria feliz. E a felicidade parece uma janela embaçada, que quase mostra o que tem dentro, que deixa passar a luz, o frio, o barulho do vento e, no entanto, não permite que o vento toque a pele ávida.

O teu. O que eu poderia deixar para trás e seguir sem sentir dor, o que de meu posso perder sem temer ser infeliz, o que, meu deus, de mim pode ficar sem mim até o fim dos tempos para que o que sobrar sobreviva, resista, reviva? O que ressoa e ecoa feito um tambor vital me fazendo crer que ainda devo crer, que ainda devo permanecer, insistir, persistir? O que me faz gritar quando deveria calar? Calar no sussurro de quem compreende, de quem sabe, de quem acordou. Ao invés disso, ao invés de tudo, lanço meu olhar perplexo ao encontro do teu, na tentativa de tatear alguma saída, alguma resposta, alguma coisa.

O tom. Na reprovação geral dos limites e das fronteiras estendidas, em sabendo que todo esforço atinge uma cerca de arame farpado e embrenhado, ainda assim, a mão procura no escuro. Não sei onde dará, nem sei se dará, mas fico esperando o trem com o bilhete no bolso, certa de que ainda passará. Mesmo que não pare no porto, não apite na curva, que não espere ninguém, eu insisto na estação.

O fim. Eu não acredito na morte. Não acredito em limites. Como o adolescente que foge de casa, que não sabe de nada, e ainda assim vai para a rua porque precisa ir, eu não acredito que tenho que partir, que a oração chegou ao ponto final. Que não há mais nada a dizer. Que não há mais o que fazer. Eu, que já me lancei de penhascos e mergulhei em mares bravios, que me deixei morrer na praia, e morrer no chuveiro, morrer desnuda, descalça, desfeita, morrer todos os amores pelos quais mataria, morrer bêbada, sem me lembrar de nada, sem entender nada, eu talvez não queira mais a loucura. Quero o macio do abraço, o doce da língua, o amanhã possível, sensível, visível. Quero o riso áspero mais que a lágrima fina.

O céu. À beira do abismo, o frio subindo pela coluna vertebral, o vento e a possibilidade do fim ou o início do voo. O risco traçado no azul. É preciso coragem para saltar no desconhecido. Sem chão. Sem apoio. Mas a vida pede riscos. A vida é a coragem de arriscar errar. Novamente, quantas vezes forem. Errar sem medo. Errar na nuvem. Correr o risco de acertar, no quê? Qual é o alvo? Qual o objetivo? A vida e o que a recheia, com gosto e com vontade. Para além da cerca. Para além do olhar que cruza. A vida é o amor que transpõe.

quarta-feira, 17 de junho de 2015

O outro lado do espelho

Acredito que tudo que duas pessoas – ou mais – procuram mutuamente, seja em relacionamentos afetivos de toda ordem ou comerciais, é cumplicidade. A cumplicidade pressupõe igualdade, inclusividade, aceitação, multiplicidade, parceria (embora nem sempre isso seja evidente para quem a espera). Ela é mais energética do que qualquer aditivo químico. Aliás, ela é “a” química. A ligação forjada através dela é praticamente indissolúvel por si só. Tem que fazer um grande esforço para quebrá-la.

Ela é tão forte na expectativa geral, que todas as pessoas que não se apresentam cúmplices são inicialmente vistas com desconfiança. Ou classificadas como más ou segmentadas. Em geral, pessoas que tomam atitudes pensando em si mesmas sem medir consequências para os outros – o que é não-cúmplice por excelência – são abjetas. Eu, que não acredito na maldade, penso que esse seja o maior vilão de todas as relações.

Por exemplo, a Rainha Vermelha de Alice parece desgovernada gritando o tempo todo ”cortem-lhe a cabeça”. Mas é apenas porque reis e rainhas nunca são cúmplices. Eles mandam. Estão acima do bem e do mal. Não chegam a ouvir o que há de fato, o que está sendo contado. O que é que está envolvido, quais as nuances. Eles estão sempre em oposição, e não em conformidade, em atitude de confronto e não gregária. A exclusão da decisão faz com que os demais – que não partilham de seu poder – classifiquem-no como mau/mal.

A autoridade faz isso em geral. É como as traves de um gol dizendo onde está certo e todo o resto errado. Quanto a mim, talvez seja eternamente adolescente. Acredito que existam noventa e nove formas de acertar e apenas uma de errar. Acreditar nisso me empodera, traz multiplicidade e complexidade à vida. Faz da vida uma aventura real. Onde cada opção leva a uma direção. E assim, meu caminho vai entortando para cá, arretando para lá, descendo ladeiras ou subindo morros, cruzando precipícios. Já tive que subir em árvores para descobrir onde estava, e vi passar muita tempestade também. No mais, estou caminhando ainda.

O certo é que parece ser mais fácil errar sozinha do que com alguém. Eu não gosto de errar duas vezes a mesma coisa. Não gosto de repetir lição, sou impaciente com voltar à mesma estação para esperar o mesmo trem para ver se sentando em outro lugar posso chegar em lugar diferente. Mas acertar ou errar é só um ponto de vista. E se procuro alguém na vida é porque quero outro modo de ver, outra perspectiva, outras certezas. Porque, quem quer encontrar continuidade, saudosismo, manutenção e não efetiva mudança, fica melhor se ficar sozinho.

O encontro com outra pessoa pode ser a guerra, pela disputa de espaço ou voz. Pode ser a tentativa de encontrar súditos ou carneiros para pastorear. Ou pode ser apenas um ringue para gastar energia. O contrário disso tudo pode ser diferente. Ser cúmplice. Talvez seja mais difícil que ganhar um round na luta. Mais difícil que fixar um olhar no horizonte e dizer categoricamente que é esse o lugar mais lindo. Mas fazer poesia também é difícil, pintar um quadro ou fazer uma estátua de ferro fundido. Difícil é tudo aquilo que exige mais de nós. E isso é que é abrir fronteiras, abrir caminhos, construir, criar.

Ser cúmplice é um exercício. Exige determinação, como fazer abdominais, ou dietas, ou contas. Pode doer no início. Pode até parecer inútil. Agora, tem uma coisa bem a favor: só depende de nós mesmos. 

sexta-feira, 6 de março de 2015

Amanhã é tarde demais

De repente, tudo estará acabado quando amanhecer. Feito bruma à luz do sol. Feito fumaça ao vento. O sonho todo de uma noite desaparecendo como água derramada na terra. Devaneio de louco. Flor exalando perfume tênue, aberta apenas para um único beijo de uma abelha descuidada. Murchou. Morreu. Foi-se sem deixar vestígio.

As promessas todas vãs e descompromissadas. Ou, pior que tudo, as condições todas desperdiçadas. Não ungidas. A mão deixada espalmada em troca de nada e, então, aproveitar e abanar um adeus. Simples. Dolorido, mas simples. Depois de amanhã, será como se nada houvera. Todos os pratos no lugar de sempre. Os barulhos da casa, menores. E tudo o mais no silêncio dos que se foram.

Não adianta olhar para trás e ver o ano que passou em tijolos soltos, sem arrimo. Ver os suplícios feitos aos gritos de “vai embora, fique”. Não adianta avaliar que tudo poderia ter sido diferente. A diferença é um gesto. E o gesto precisa de vontade. Se não houve vontade, não tem nada a reclamar. Ninguém por chorar. Não houve desejo – o motor da vida e da morte. Até mesmo a vela que fica solta ao vento move o barco. Mas o gesto.

O amanhecer pede um banho para reconhecer que tudo não foi só um sonho colorido que ficou no escuro. Pede água morna caindo sobre os olhos para desenevoar as incertezas e as dúvidas que o amor impõe. Todo movimento traz incerteza. Caminhar requer um pé no ar. E o amor é uma caminhada na direção de algo maior. Maior que todos os desejos juntos. Tão grande e tão lindo que não pede rede embaixo. Se pedir, não valerá o salto.

Viver é melhor que sonhar. Porque sonhar é fácil. Não move um músculo, talvez um sorriso. Talvez os olhos. Mas não requer energia. Pode promover vibração, calor, e entusiasmo. Ainda assim, um sonho é só um sonho. Ficar esperando que um vento certo venha para inflar o balão, não vai tirá-lo do chão.

O que faz você se mover de verdade? Dizer: é aqui, é agora. O que faz você sair para a rua sem pensar se vai chover, se é hora, se é tarde, se dará certo, se é seu, se se se se? O que faz com que a mão estendida aperte outra? Que ambas estejam estendidas na direção uma a outra, no mesmo momento, e próximas. E pensar que imaginava o amor uma emoção mais sutil, menos física ou real.

O amor é apenas um amanhecer com vontade renovada. Com a mesma pele querente. Com o mesmo gesto desprotegido e ingênuo, espontâneo. Amanhecer os olhos abertos e ainda em sonho da noite que passou. O amor é a passagem que dura. Permanece não a eternidade prometida e desejada, mas a renovação continuada do sonho.

Encanto. Magia. Emoções quase parecidas com acreditar em contos de fadas. Mas, haveria amor realmente sem encanto? Haveria como seguir em frente se o horizonte que se abre não tenha um arco-íris, uma alvorada dourada, ou uma luz que seja pela fresta do que estreita? Haveria amor na submissão? Na conformidade? No medo?

No medo de repetir todas as dores, ou de viver o desengano, ou de não acreditar nas mudanças, ou de sofrer antecipadamente por tudo que pode dar errado. Medo de embarcar por não saber se o mar não engolirá tão rápido que não terá tempo de ser feliz? Ou medo da plenitude – todo amor é pleno – que vem com a entrega.

O amor é um embarque sem bilhete. Um embarque sem saber a direção, ou onde será a parada. É uma viagem que se faz sozinho ao lado de quem faz bem estar. O amor não é um estado do ser. É a transformação do ser. Quem partiu nessa viagem, não é o mesmo que desembarca. Não há como continuar no mesmo lugar e viajar. Algo fica para tras. Algo tem que se desapegar. Preço que tem que ser pago antes de saber se vale a pena pagar. E sim, o amor é uma viagem sem volta. Agora.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Antes de conhecer você

Eu era feliz antes de conhecer você. Já fazia comida para mim em panelas que cabiam todo meu cuidado. Dormia bem. Acordava bem. Eu ia trabalhar com a vibração do canto dos pássaros que acordam tarde – nada de excessos, obviamente. Sim. E o céu já era azul, o ar fresco e renovado, o mundo era como é hoje: lindo em dias lindos, triste em horas tristes. Árvores com copas em verdes os mais diferentes. E flores com perfumes de se adivinhar ao longe. Dava para reconhecer a divindade nas aragens balançando folhas, nos córregos cristalinos do caminho.

Antes de conhecer você, meu mundo existia na plenitude possível do meu querer. Ansioso em momentos que o fôlego faltava. E risonho por pura vaidade. As pessoas passavam pela minha vida e marcavam presença. Deixavam sinais ou recados no embaçado da janela. Deixavam marcas de baton nas xícaras. Ou pegadas sobre a grama no envolta da casa. As pessoas que amei já tinham me feito feliz e nem tanto, à medida que o tempo passava. Até o dia em que deixei de procurar ser feliz no encontro com alguém.

Deixei de procurar na vida que ela fosse mais que o encontro dos desencontros, ainda que todos os desencontros cruzassem o mesmo caminho: a aorta. Tão próximo do coração, tão insistentemente nervosa quanto os batimentos mais excitados do peito, mas ainda desabilitados, descabidos, desconexos. Deixei de procurar segurança onde queria paixão, de procurar certezas onde havia amor, de esperar abraços onde estavam as certezas. Isso tudo, ainda antes de conhecer você.

Eu já tinha descido corredeiras geladas em busca de conforto, comida, amparo. O colo macio e despreocupado, regozijador, eu já havia buscado em portas abertas, portas fechadas, em tantas portas que nem lembro mais. Encontrei e perdi. Fui e voltei. E tornei a ir. Esqueci o caminho, esqueci o destino, esqueci o porque. Trouxe apenas as pedras que poderiam marcar o trajeto. Trouxe excessivamente nos bolsos, nos olhos, na pele do corpo. Trouxe para minha vida na confusão que se formava: o que vivia era minha vida, ou a vida ainda se apresentaria mágica e repentina, cheia de flores e perfumes paradisíacos, sonho de criança que não desiste de seus quereres?

Sim. Antes, muito antes de imaginar conhecer você, toda minha vida já se descortinava em amor. Em promessas de amor eterno, profundo como poço de cachoeira, largo como o horizonte do oceano. Amor alegre e incansável, sem sono, sem dono, sem fim. Amor que parece ser o último sobrevivente de uma catástrofe chamada nascer. E depois de nascer, de buscar significados em tudo. O amor que vai se despetalando como flor antes de se pronunciar o fruto. A vida me vertia como cachaça na língua seca, sedenta.

Eu já sabia que havia dor. Já sabia que havia fronteira até para o horizonte. Que havia o esmorecer, o anoitecer, o escurecer sem lua e sem estrela. Eu já havia experimentado o gosto de venenos doces e suculentos, que vão tomando o sangue como se fosse saliva, fazendo das noites insones, vazias e solitárias. Já ocultara sob as cinzas do fogão muito arroz que queimou em vão, muito pó de café sem gosto – quando até o amargo é melhor do que nada.

Estive prestes a desistir. E prestes a me deixar largar sobre a areia onde o mar chegará um dia para lavar e levar. Estive à beira de mim mesma, num sacolejo de quase cair, quase despencar, quase deixar de existir. Porque a existência ela mesma não tem o preço que seja viável. Não tem o custo que seja aceitável. E, então, melhor seria o fim. O fim quase impossível.

E por fim, você. Um cotidiano que não havia planejado. Um voo que não tinha espaço. Um mergulho de olho aberto num fundo azul. Você. A me tirar todas as certezas e todas as esperanças. A me tirar o fôlego e me atirar ao chão. A me desconstruir. Eu. Que já tinha percorrido o meio do caminho criando minha própria bússola. Que já tinha me perdido, me encontrado, me matado, me salvado. Nós. Numa improvável via de acesso de mão dupla, de destinos dúbios, de cruzamentos e inserções, no infinito. Em tempo integral, sem hora marcada. Um nós que não aceitava as margens, que corria sem prumo, obstinado e doce.

Eu hoje não posso mais dizer nada que não conheça senão depois de você. Porque troquei o vagão pela locomotiva, porque troquei a locomotiva pelo avião, e troquei o avião por ter asas. As asas me levam ou trazem como fazem a você. A vida é mais confusa agora. Mas tem mais letras também. E de tantas palavras faladas e expressas no silêncio da madrugada, um amor reticente e maduro vai se descolando, decolando. Antes mesmo que se configurasse o par, o inusitado se desenhou. Só assim eu permitiria um triângulo na minha vida. Eu, você e o amor.

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Aos Poucos

Aos poucos, fui apaziguando meu coração, num cortejo de fantasmas que ficarão para sempre enterrados ali, no jardim da praça central, sob o ipê, onde joguei pás de terra santa e palavras nem tanto. Mas joguei flores também (não tirei os espinhos). E, selei com cal. Para não sobrar nem a possibilidade de virar estátua de sal.

Um dia, sem saber mais as dores que me marcaram o coração, vou lembrar apenas do que ficou para fora, fotos, viagens, prazer. Afinal, ninguém tira fotos de momentos desagradáveis. Depois de queimar todos os rastros das sombras, das incoerências e do desamor, o álbum de retratos estará mais leve como a memória.

Poderei olhar para mim, desapegadamente – o quanto conseguir , e sentir um pouco de alegria na imagem reconhecida. Poderei sentir um pouco de orgulho de quem me tornei. E um bocado de amor-próprio, pois o coração estará afagado, acarinhado no peito.

Já recobrei a respiração normal; já o coração parou de pular aceleradamente, nervosamente, insistentemente. E aquela ansiedade da noite passou. Passaram os barulhos da madrugada, quando não dormi. Agora, o silêncio reflete a paz. A lucidez. A mínima certeza de que o rio encontrou seu rumo (inquietante saber que as emoções, como água de rio, encontrarão um caminho para seguir até encontrar o grande oceano primordial).

Um dia nós aprendemos. Aprendemos a entender os mecanismos internos e, então, o lá fora deixa de ser tão importante. Deixa de ser tão frustrante. E as dores tornam-se superficiais e passageiras. O tempo, só o tempo, o grande mestre.

Também a paciência é um remédio que se destila de veneno. Precisou ferver muito, precisou secar muito, precisou quase reduzir a pó cada nervo do corpo, cada neurônio ativo, para somente depois, formar-se uma gota. Engendrado no próprio sangue, inoculado no plasma, e retirado ao amanhecer, quando ainda não nasceu o sol. A vantagem é que cada gota, de tão concentrado poder, prepara litros e litros de um remédio pastoso, grudento e doce.

Outra descoberta inquietante é que todo aprendizado é passado. Só serve para o que passou. Não traga café quente e fresco para o novo relacionamento. Ele não gosta. O outro é que pedia, exigia, reclamava. Não faça comedida a sua parte da pimenta. Era um antes que não gostava. Então, se o que você aprende nessa vida, só vale para essa vida, que permaneçam os personagens para ver se você realmente aprendeu a lição, com eles. A lição de hoje não serve para o personagem de amanhã. O novo pede o novo.

O mais difícil é dançar no mesmo lugar, é renovar o bom dia, diariamente, como se fosse outro o acompanhante da noite. Tentar um quase dilacerante olhar para o lado e não reconhecer os trejeitos, os símbolos, não adivinhar os comentários, não esperar nada. Por algum erro de formatação, nós sempre esperamos alguma coisa. Ou que seja rápido o que demora, ou que nos interpretem os sinais corretamente (sim, porque, diferentemente da poesia, nós teimamos em ter um único significado). Ou que se escute o silêncio e se entenda o pedido contido. Renovação no mesmo fôlego.

Renovar o amor cotidiano. O amor que já amanheceu tanto que nem sabe mais o que é paixão. Desejo. Precisa deixar com fome. Deixar com sono. Deixar um pouco de molho numa marinada azeda e picante para ver se volta a tomar gosto. O amor que se perdeu feito gelo, preservado, intocável, insonso. Renovar o olhar. Renovar a música, a dança, o pegar na mão. Fazer comida chinesa, baiana, argentina. Preparar o que nunca viu e nem sabe como fazer. Arriscar. Arriscar amar novamente num outro tempo, outro lugar, o desconhecido que há no outro. O mesmo outro.

É mais fácil variar, mudar, fechar a porta. Ir embora como sempre. Não olhar para trás, não querer saber. Dar por entendido e findo. Morrer na praia. Vestir o casaco para se proteger do sol. Fazer o silêncio superior de quem não ficará para brigar por nada. Ignorar os motivos de haver um coração entre as costelas. Protegido. Fazer de conta que a vida é assim, um amor em cada porto. Adolescente e serviçal, um pelo outro, troca fácil. E, quando for dormir, rezar em segredo para que alguém o ame e permaneça (quem parte, em geral, só acredita no abandono).

Agora, cansei de partir. Cansei de fechar a porta e jogar as chaves por baixo. Cansei de tudo. De ir, de ficar, de esperar, de me cansar. Agora que sei o que demorou tanto para se fazer saber, depois de tantas partidas, de tantos amores vãos, perdidos no espaço-tempo, perdidos na memória, no peito, perdidos em algum cruzamento de artérias, agora (e só agora), a coragem me retorna para que eu encare acreditar. Mergulhar. Sem improvisos. Sem escusas. Para o amor, enfim, que não pede nada a não ser entrega.

terça-feira, 6 de janeiro de 2015

Quero a poesia fina da vida

Eu quero a poesia fina da vida. Quero a beleza insólita do amor. Quero a delicadeza passageira do olhar que ri. E quero a permanência do rio que corre. Quero tudo, desde que não sou nada. Nada em mim reflete essa magia, senão no meu querer. A vida ordinária que passa pela estrada é cheia de pó ou lama, que um dia seca, no outro, escorrega. A vida bruta, ela mesma, no que sou eu, me corre pelas veias feito fumaça.

Na fumaça que sou, um pouco sombra e um pouco chão, o que me salva é o meu querer. Quero voar, não voo. Quero ser leve, e afundo no mar de emoções desconexas e desencontradas. Na vida que é tanto o fogo como a fumaça, que é tanto a água que corre como as margens que ficam, eu também sou a folha que ora cai da árvore, ora sobe com o vento.

Quanto a mim, bastava-me ser a letra A e estar presente em todas as falas e bocas. Ser o calor da pele e o frio da alma diante do perigo. Ser esse rojão no estômago quando o amor invade o espaço conhecido e traz o caos. A vibração do fogo que transforma terra em ar. Mas no mais das vezes, faço espuma nas bordas do copo, faço barulho com a respiração descontrolada nas noites sem guarda-chuva. Corro do amor, emparelho com o barranco, me referencio com o horizonte enquadrado da janela.

O que me salva, me salva de mim mesma, inquieta e relutante, é um querer além da cerca em frente. Além da montanha mais adiante. Além do céu tão vário todo dia. Um querer que me tira da cama diariamente. Que me confisca as dores do movimento e me intercala com silêncios e pensamentos emaranhados.

Às vezes cala em mim um medo paralisante de sofrer, como se a vida fosse dor só por haver nervos. Como se a vida fosse cristal tão delicado que até mesmo um canto de pássaro solitário pudesse rompê-la em mil cacos irreconciliáveis. Um medo do que não sei, do lugar onde não há amor. Um medo apertado no peito que me faz duvidar. Tropeçar. Gaguejar. Nesses momentos, sou um par de vasos cujo par quebrou; sou a parte da lua que desapareceu no escuro. Em mim, na noite grande demais para que haja sonhos, um desalento sem ar me sufoca a quase tirar a roupa. Preciso de espaço e preciso de um aperto de braços consoantes.

Mas o olhar pela janela embaçada me traz o desejo de volta. Quero tudo de novo. Quero todas as dores dos partos que não tive e todos os que vi nascer um mundo novo, uma nova vida, um novo querer. Quero todos os sofreres que vieram junto com um fim, com um perdão atravessado, com uma bandeira embolada no alto do mastro. Quero, mesmo depois do medo. Mesmo durante o medo. Mesmo que me assuste toda noite e toda manhã de haver um dia seguinte para a paixão.

Não há dia seguinte para a paixão. Ela vai embora no meio da noite, depois de saciada. Ela não aguenta o tédio do pão com manteiga e café. A paixão, como o orvalho que umedece o vidro da janela, desaparece quando o sol nasce. Quem procura paixão no feijão com arroz, morre de fome. Aliás, a paixão é a fome. É não ter apetite. Não ter sede. Não precisar continuar vivo. Porque já é encarnado na fonte.

Na minha paixão, ensandecida, que se perdeu dentro de mim entre a cabeça e o coração, um caminho torto e engruvinhado, onde não sei que pássaro tentou voar e se quedou expectante, na minha garganta aberta, boca aberta, toda minha vontade desperta. E no que foi ou será ainda minha vida, estendo a mão. Aperta-a, que ela quer ser livre, mas é sua. Não traz nada. Não leva nada. Apenas estende para a sua. Vem. A paixão é a vida, mas a vida é bem mais que paixão.