Queria ter a alegre jovialidade dos gatos que brincam
sozinhos, com o pé da mesa, com uma bola de papel, com o tapete. A descontração
das abelhas de flor em flor como um motor ligado sem fazer força. Ser como um
regato correndo solto, uma folha balançando ao vento antes de despregar-se e
voar sem destino rumo ao chão. Por que haveria de ter nervos? Por que tantos
neurônios? A natureza é plácida porque não pensa. Ou porque não age. Ou seria
uma atitude o contemplar, apenas, durante toda a vida? Olhar o pássaro voar e
capturar a abelha, olhar o gato que captura o pássaro, olhar e não julgar.
A sucessão de dias e noites não tem significado maior, a
chuva ao invés do sol, o sol ao invés da brisa, a brisa ao invés da chuva. Nada
precisa significar. E isso me parece apenas com o ser criança. Ser criança é
não pensar em nada, apenas e tão somente viver. Viver sem nem se dar conta de
que está viva. Que diferença faz saber o que está fazendo e não saber? Talvez
isso seja o crescer.
A beleza perdida de se perder a criança. Por que é tão mais
fácil decidir quando se é criança? Parece que antes não havia tantas portas
para abrir, não havia tantas encruzilhadas. O mundo era feito de uma vontade
só: a sua própria. Então, um dia a gente acorda e tem um monte de gente dizendo
o que tem que fazer. Tem um povo todo dando palpite na nossa vida. Tem um tanto
de possibilidades divertidas e outras nem tanto. Podia ser criança de novo. Mas
até os gatos crescem e deixam a bolinha de papel passar por eles sem movimento.
Crescer mas não deixar de ser criança. Brincar com os dias
passando. Passar sem se prender pelo portão fechado, pela luz apagada, pela
bagunça toda que ficou. A bagunça me incomoda mais agora. Olho no espelho
firmemente. Olho para os cabelos desalinhados caídos na testa. Olho para meus
olhos, inexpressivos, me olhando. Dura? Indiferente? Cínica? Ontem foi uma
coisa, hoje é outra. Daqui a pouco outra ainda. Posso mudar de feições num
piscar de olhos. E posso voltar a ser quem eu era quando criança. Inquieta,
irrestrita, impossível.
Eu brincava sozinha muito tempo. Subia no telhado, saia de
bicicleta, lia a tarde toda. Ninguém tinha me falado que as pessoas sentiam
medo. Eu não sentia. Pulava de trampolim, subia na árvore, dormia no beliche.
Colhia uma cenoura na horta e limpava na roupa, saia comendo. Doce, amarela,
com cheiro de terra. Pendurava uma corda no galho e fazia um balanço. Descia o
morro em carrinho de rolimã, caia, me ralava toda. Pulava cerca de arame, fazia
fogueira, mexia com cachorros. Caí do cavalo, fui mordida por cães, caí no rio,
e continuo andando a cavalo, enfrentando cães e navegando. Nem tudo é perdido,
pois.
Não é que não queira as responsabilidades do adulto. Eu não
quero a seriedade demasiada, o descontrole exagerado, o excesso de razão. Eu
simplesmente não quero ter razão. Nada de enlouquecer, sair correndo sem roupa
pela rua. Nada de matar ou morrer por alguém. Não, a razão ela mesma. Minhas
razões são passageiras. Minha lucidez nunca me ajudou. A lógica do pensar só me
prendeu no chão o pé que queria dar o outro passo. Andar é ter um pé no chão e
outro no ar. E nos leva longe. É disso que falo. Eu quero ter uma razão no chão
outra no ar, voando, perdida, vagando, inútil. Assim. Ser o samurai que cuida
das crianças. Ser o empresário que cuida do jardim. Ser o conhaque em chamas, a
flor de um dia, um perfume que passa. Leve. Tão leve que desmanche no ar. Leve e
efêmera. Como tudo. Como o tempo. Como a vida.