No meu quintal tem uma fábrica de folhas secas, uma árvore
de abelhas, uma banda acústica. O ar condicionado é descongestionante, o som é
stereo, a tela não é plana, é 3D. Tem um tapete verde bordado de flores que,
aos meus pés, vai se estalando como se fosse um assoalho de madeira de casa
velha. Elfos desenham nas nuvens, a cada momento, uma nova aquarela, agora é um
dragão que se transforma em coelho que se transforma em tartaruga que vira um
cogumelo gigante no céu azul. Definitivamente, no meu quintal, você não
precisará fumar ou beber nenhuma coisa e ainda assim fará uma viagem para
estados alterados de consciência.
É assim a natureza. Uma viagem de cara limpa. Um silêncio de
espaço sideral: e se você for esquecido? E se Huston sofrer um atentado? Você no
espaço, a esmo, a vidrar na paisagem de uma terra azul e o silêncio. Mas daqui,
onde meus olhos alcançam, as vacam estão pastando, as abelhas em uníssono
disputam as flores cor de rosa da cerejeira com os colibris e, de vez em
quando, uma metralhadora de pinhões é disparada de uma das araucárias.
Com toda essa diversão, ainda assim, Bill, o gato
desbravador, vem para o meu colo andar para lá e para cá, como se eu fosse uma
árvore, um tronco, um objeto escalável. Bill se deita e relaxa de tal maneira
que tenho dó de me mexer. Ao sair andando deparo com umas amoreiras que
secaram, suas folhas completamente no chão dando-lhes a aparência de mortas, os
galhos projetados para o céu em vão. É assim mesmo. Algumas coisas têm que
morrer às vezes. Ou quase. E a renovação vem a seguir. Tudo recomeçará daqui a
pouco. Deixa o sol esquentar, as chuvas voltarem, e lá vem o ciclo todo de
novo. Para que se apegar? O negócio é largar a mão, soltar as rédeas, fechar os
olhos e acreditar que no próximo ciclo você não vai repetir a lição.
Eu já repeti tantas vezes as mesmas lições que estou um
pouco cansada. Cansada de mim. Cansada de não aprender, de não entender. Talvez
eu não esteja pronta para a paz. A paz de ter terminado tudo antes do pôr do
sol. De ter arrumado a casa, de ter me alimentado e alimentado os cães e os
gatos que dependem de mim. A paz que é o fim da linha. Depois, sim, talvez
depois eu tenha que trocar de trem. Ou trocar de forma de seguir. Daqui para
frente vou a cavalo. Os cavalos são mais que um meio de transporte. São mais
que animais de estimação, domésticos. Eles olham. Do lado de lá da cerca, do
lado das vacas, um belo animal me encara. Ele sabe do meu medo, ele entendeu.
Meu medo que ele tocasse a cerca e se machucasse no arame. Ficou me olhando de
frente o tempo todo, sem se alterar, sem dar um passo, sem descansar uma pata. Vou
a cavalo porque os cavalos me entendem, sem que eu precise me entender antes.
Fico pensando se é uma coisa de competência. Porque todos
nós somos competentes com uma coisa ou outra. E se não estamos dando conta,
algo está errado. E é conosco, não é com mais ninguém. Por que insisto no erro?
Insisto na hora errada? Insisto até quando já deveria ter ido embora. Toda
simplicidade tem uma certa complexidade. Eu mesma não sou tão óbvia assim. E,
quem pensa que me conhece porque já agi desta ou daquela maneira, pode me
explicar então quem sou. Eu queria ser simples como meu quintal. Mas mesmo ele
é ambíguo, tanta vida e as mortes cotidianas se revezando sem ter fim. Queria ser
apenas essa paisagem plácida que se descortina na janela. Mas ao sair vejo que
os detalhes são muitos, muitos atores, muita arte para ser vista. Agora a
plateia sou apenas eu. Eu, que plantei a maior parte dessas árvores e plantas,
um sujeito que não aparece na cena. Ela é a minha realização material. Eu, o
espírito.
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