sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Outra poesia

Escrever é uma forma de estar sozinho. A palavra apenas expressando o pensamento que não se sabia presente. A companhia esconde a palavra. Emociona, abraça, perpetua-se no gesto que a escrita não permite. O beijo ou a palavra? Um ou outro. Escrever é comer o que não está na panela. É permitir o que não tem perdão. É a falta de chuva, a falta de sono, a falta de coisa melhor por fazer.

A poesia se faz sozinha. No banheiro, na cama, na varanda. Um pouco de tempo perdido, apetite perdido. Outro pouco, quando o sol se põe. Acontece quando não há sombra, não há reflexo. Escolhe o ouvido desavisado para soprar seu silêncio. Poesia não fala.

Depois, quando todos se foram, a casa ainda acesa, passeia por ela experimentando seu efeito. As imagens enlaçadas sonoramente. O efeito na pele. Na língua. Tremor leve no estômago. E o resto. O resto é apenas uma nota que continua dançando quando tudo o mais se foi. Dançando nas pontas dos pés, doído. Dançando quieto e sem par. Toda poesia é ímpar.

No silêncio que a música não irrompe, a palavra descuidada e desarrumada paira. Quantos conseguiram ver? Quantos alcançaram? Não importa, traçando na poeira dos móveis, o ritmo marcado sem compasso enumera-se. A poesia é matemática. A matemática, um sinal, uma equação do que quis ser dito.

Não, não. Eu não sabia que era preciso estar só para parir palavras desconexas e sem redes. Palavras que sequer rimassem. Sequer soubessem. Roubassem como um anzol fisgando o que não viu. Eu não imaginava que era preciso conversar sozinho, abraçar o travesseiro, perder a hora. Morrer mesmo.

Morrer sem que ninguém desse pela falta. Sem que ninguém desvendasse o sentido. Estado desmanchando-se de sólido para gasoso. De uma só vez. Como a lenha que pega fogo. Como o arroz que se perfuma de jasmim e se transforma em macio.

Ah, quem me dera, a poesia. Na noite que passa sem. Ausente. Fora. Desmedido. Somente. Tão somente. Palavra de estar só. Uma única palavra, um som, uma pedra. Ao invés disso, você. A me abraçar, e me beijar, e me acalentar até dormir. Você a me fazer perder o sentido. Você que nem sei onde, nem como, apenas sinto a pele quente recostando na minha pedindo. Num instante o calor da coberta jogada ao chão. E no seguinte, o frio que pede sua mão.


No papel em branco refeito em lençol, vou perpetuando as palavras que não disse e não direi, seguida tão somente por aragem da sua respiração morna. Você embaçando minha pele. Escrevendo nela com o dedo leve. Escrevendo e apagando. Nas declarações desapercebidas, vou recitando meu amor. E você, minha poesia.

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

A Loucura Encanta

Fico pensando que um bom dia para um casamento perfeito é o dia dezoito de maio: dia internacional da luta antimanicomial. Claro. Porque, se a loucura é branda, criativa e brilhante deve ser livre, correr solta pelas ruas, deixar-se ser vista além das sacadas, das janelas e portas dos relacionamentos. E se a loucura é atormentada, deslumbrada e descompromissada, deve ser despejada, aberta a porta para que alce voo, perca o chão e se deixe ir, partir, perder-se.

Não existe razão para ficar amontoando emoções desconexas e fragmentárias dentro de casa. O peito é um lugar para aconchegar e não para entulhar. Não basta abrir os braços e aceitar o contato de outro coração apertando o seu. Tem que ser um abraço sem nós, poucos rodeios e nenhuma mentira. Quantos foram os pousos forçados porque o trem não baixava!

Muito melhor a loucura que solta pipas em plena segunda-feira. Que se regozija de ter perdido a hora. Que não sabe de que lado da cama está. E que, por alguns segundos, ao abrir os olhos na claridade da manhã, ainda sente o gosto da primeira noite, do primeiro beijo, do primeiro olhar cúmplice que forjou sem pensar, espontâneo quando todos indicavam cautela, alegre quando tudo apontava esquecer.

O sorriso é uma cura até para a loucura descabida. Para a necessidade de pular sem paraquedas que dá às vezes de estar tanto tempo no ar, sem vinco. O risco iminente de romper fronteiras erguidas para a proteção. Uma cura para o suicídio que é atrelar sua locomotiva a foguetes apontados para o vazio do céu. O céu, antes um alvo óbvio, agora descalabro. Antes um sonho lindo, agora um fundo vazado pronto para o teatro dos movimentos vãos.

A felicidade talvez seja a cura e não o remédio. A felicidade de poder olhar para frente e entender-se na realidade que se descortina. A felicidade de se saber no seu lugar, mesmo que provisório, temporário. O tempo que passa não existe na loucura, fascinante como um cometa, efêmero como a calda. Há que experimentar o gosto amargo de ter pulado pela janela, da ponte, de cima de sua própria visão de mundo. O gosto de ter ido além do que seria plausível, aceitável.

Mas quem quer ser apenas aceitável? Quem aceita ser apenas eficiente? O mundo urge por aqueles que rompem barreiras, não param no semáforo, correm pelas ruas pensando ser corcéis em prados livres. E depois, quando tomados pela loucura que é o próximo passo, tentam vencer a si mesmos, identificando-se com os destroços ao invés de se reconhecer outro, plural e simples.

Essa loucura que não encontra espelhos, engrandecida, divinizada, que não encontra limites no gesto ao ponto de inventar outro nome para o egoísmo. Loucura desconstruída, desfacelada, desfragmentada, remendada para erguer-se nos saltos, borrada nas faces falsamente coradas. Essa que faz sorriso perene no rosto de gesso, não me ínsita.

Não. Essa loucura forjada de sucesso, brilhante, sistêmica não me interessa definitivamente. Venha assim, com sua loucura cheia de terra e raízes. Essa sua loucura perfumada das flores do caminho, dos barrancos, dos traços soltos e torcidos como galhos do cerrado. Venha a mim assim no sorriso encantado dos duendes, dos elfos, os cabelos enredados de cores e cachos. Venha assim mesmo, como quem acabou de acordar, menina. Então, de todas as loucuras, case-se comigo.