Eu era feliz antes de conhecer você. Já fazia comida para
mim em panelas que cabiam todo meu cuidado. Dormia bem. Acordava bem. Eu ia
trabalhar com a vibração do canto dos pássaros que acordam tarde – nada de
excessos, obviamente. Sim. E o céu já era azul, o ar fresco e renovado, o mundo
era como é hoje: lindo em dias lindos, triste em horas tristes. Árvores com copas
em verdes os mais diferentes. E flores com perfumes de se adivinhar ao longe. Dava
para reconhecer a divindade nas aragens balançando folhas, nos córregos
cristalinos do caminho.
Antes de conhecer você, meu mundo existia na plenitude
possível do meu querer. Ansioso em momentos que o fôlego faltava. E risonho por
pura vaidade. As pessoas passavam pela minha vida e marcavam presença. Deixavam
sinais ou recados no embaçado da janela. Deixavam marcas de baton nas xícaras. Ou
pegadas sobre a grama no envolta da casa. As pessoas que amei já tinham me
feito feliz e nem tanto, à medida que o tempo passava. Até o dia em que deixei
de procurar ser feliz no encontro com alguém.
Deixei de procurar na vida que ela fosse mais que o encontro
dos desencontros, ainda que todos os desencontros cruzassem o mesmo caminho: a
aorta. Tão próximo do coração, tão insistentemente nervosa quanto os batimentos
mais excitados do peito, mas ainda desabilitados, descabidos, desconexos. Deixei
de procurar segurança onde queria paixão, de procurar certezas onde havia amor,
de esperar abraços onde estavam as certezas. Isso tudo, ainda antes de conhecer
você.
Eu já tinha descido corredeiras geladas em busca de
conforto, comida, amparo. O colo macio e despreocupado, regozijador, eu já
havia buscado em portas abertas, portas fechadas, em tantas portas que nem lembro
mais. Encontrei e perdi. Fui e voltei. E tornei a ir. Esqueci o caminho,
esqueci o destino, esqueci o porque. Trouxe apenas as pedras que poderiam
marcar o trajeto. Trouxe excessivamente nos bolsos, nos olhos, na pele do
corpo. Trouxe para minha vida na confusão que se formava: o que vivia era minha
vida, ou a vida ainda se apresentaria mágica e repentina, cheia de flores e
perfumes paradisíacos, sonho de criança que não desiste de seus quereres?
Sim. Antes, muito antes de imaginar conhecer você, toda
minha vida já se descortinava em amor. Em promessas de amor eterno, profundo
como poço de cachoeira, largo como o horizonte do oceano. Amor alegre e
incansável, sem sono, sem dono, sem fim. Amor que parece ser o último
sobrevivente de uma catástrofe chamada nascer. E depois de nascer, de buscar significados
em tudo. O amor que vai se despetalando como flor antes de se pronunciar o
fruto. A vida me vertia como cachaça na língua seca, sedenta.
Eu já sabia que havia dor. Já sabia que havia fronteira até
para o horizonte. Que havia o esmorecer, o anoitecer, o escurecer sem lua e sem
estrela. Eu já havia experimentado o gosto de venenos doces e suculentos, que
vão tomando o sangue como se fosse saliva, fazendo das noites insones, vazias e
solitárias. Já ocultara sob as cinzas do fogão muito arroz que queimou em vão,
muito pó de café sem gosto – quando até o amargo é melhor do que nada.
Estive prestes a desistir. E prestes a me deixar largar
sobre a areia onde o mar chegará um dia para lavar e levar. Estive à beira de
mim mesma, num sacolejo de quase cair, quase despencar, quase deixar de
existir. Porque a existência ela mesma não tem o preço que seja viável. Não tem
o custo que seja aceitável. E, então, melhor seria o fim. O fim quase
impossível.
E por fim, você. Um cotidiano que não havia planejado. Um voo
que não tinha espaço. Um mergulho de olho aberto num fundo azul. Você. A me
tirar todas as certezas e todas as esperanças. A me tirar o fôlego e me atirar
ao chão. A me desconstruir. Eu. Que já tinha percorrido o meio do caminho
criando minha própria bússola. Que já tinha me perdido, me encontrado, me
matado, me salvado. Nós. Numa improvável via de acesso de mão dupla, de
destinos dúbios, de cruzamentos e inserções, no infinito. Em tempo integral,
sem hora marcada. Um nós que não
aceitava as margens, que corria sem prumo, obstinado e doce.
Eu hoje não posso mais dizer nada que não conheça senão
depois de você. Porque troquei o vagão pela locomotiva, porque troquei a
locomotiva pelo avião, e troquei o avião por ter asas. As asas me levam ou
trazem como fazem a você. A vida é mais confusa agora. Mas tem mais letras
também. E de tantas palavras faladas e expressas no silêncio da madrugada, um
amor reticente e maduro vai se descolando, decolando. Antes mesmo que se
configurasse o par, o inusitado se desenhou. Só assim eu permitiria um
triângulo na minha vida. Eu, você e o amor.