quarta-feira, 23 de maio de 2012

Do Livro de Receitas


Eu queria um livro de receitas que colocasse os detalhes assim: descasque a fruta puxando delicadamente a pele com a unha, cuidando para não escorrer muito sumo, deixando entrever a carne macia, doce e perfumada, que rescende a manjericão em água de banho, que encanta como a lua de dia. Assim, sem ao menos perceber, você terá a mais fina iguaria entre os dedos, para usá-la na sobremesa, após o último gole de vinho.

Eu queria um pote de geleia que viesse com um manual de instruções para uso em caso de engarrafamento no trânsito ou perda do trem na estação: quando assim estiver, entre um instante e outro, disfarce; vá abrindo devagar e com muita educação até ouvir o estalo de liberação; contenha-se ainda um pouco mais, sinta os aromas, os primeiros aromas que exalam a liberdade de expressão e a ansiedade juntas, guardadas no vácuo, no minuto justamente antes da introdução da colher, sem pressa, sem medo, consistentemente delicada, depois, e somente então, desfrute.

Ah, encontrar uma nota de cinquenta reais, ou cem, novinha em folha, marcada em tinta invisível e que apenas eu pudesse ler, ao levá-la ao vento, contra o céu azul de inverno: minha querida, esperei o quanto pude naquela noite e você não passou; mas não desisto, nunca desisto, todas as outras noites, todas as horas que posso, e não posso, volto lá e me sento demoradamente, peço um pouco de água do mar que vem fria, como deve ser, em espuma de sal, e me detenho a esperar que desta vez sim, você vai passar.

Na minha inquietude passageira e sem reflexos, olho pela janela da minha casa, olho através do vidro, sem abrir e sem pensar, olho o movimento das folhas das árvores que caem sem vontade de voltar e o seu balé me introduz no mundo da música que perdura mesmo depois que acabou o vento, que acabou a luz do sol, e tudo o mais ficou no escuro e meu olhar se queda melancólico sabendo que a melancolia é minha e não da árvore que perdeu as folhas, ou do dia que perdeu a luz, ou da vida que perdeu o sono. A música sem fim do infinito que é não pensar em nada.

Na construção das palavras que escolho, uma a uma, como se escolhesse feijão, ponho o dedo em cada letra tocando seu âmago, o dentro de cada sílaba, de cada significado significante da palavra escolhida. Experimento levando aos lábios, escuto seu som particular balançando-a bem perto, como se falasse segredos ao pé do ouvido. Na construção da frase, a palavra assim escolhida repete-se em atenção e desejo, eu escuto, finjo que não, mas escuto seus pedidos, e vou trazendo mais sons, mais ritmos, mais doces lembranças e uma infinidade de madeiras cheirosas, resinosas, que queimo com vírgulas, papel branco, amarrotado, tinta preta ou azul. 

Depois, desfaleço sobre o edredom da cama. Deixo os gatos brincarem de correr por todo lado, derrubando as coisas e pulando em mim, me lembrando de que tenho estômago e é preciso comer, aterrissar do sonho, esse balão em governo autocrático que não devolve o passe, não libera a senha, não entrega senão num pulo. O pulo que o gato deu sobre minha barriga deitada para cima, sempre para cima, mesmo quando quero apenas paz. A paz é o meu olhar para cima, o espelho no teto, as estrelas que somos pela casa que anoitece.

terça-feira, 22 de maio de 2012

O caçador que come de colher


Certa vez li um texto de um antropólogo que afirmava ter nossa civilização começado da junção de dois povos diferentes: um nômade, caçador e o outro agricultor, sedentário. Os dois se digladiaram em algumas circunstâncias e, obviamente, os caçadores venceram. É fácil ver esse traço na nossa civilização atual. Em geral as pessoas saem de casa para caçar. Vestem-se para caçar. Andam em tribos para ganharem forças, mas o resultado da caçada é individual. Alguns ostentam seus troféus pela casa, ou virtualmente pela net. Fotos de suas conquistas por todos os lados. Reconhecimento do seu poder e heroísmo. Pegar, caçar, ficar. Tudo muito rápido e ágil. Tudo estrategicamente arquitetado e descartável. Tudo isso devidamente valorizado e estimulado.

Até que o suficiente seja conquistado. Ou seja preso pela presa. Sim, porque a presa também sabe se defender. Como a aranha que tece e espera, a presa indefesa se prepara. Vai cozinhar, arrumar, limpar, casar. Então, o guerreiro se acomoda um pouco e deixa o poder adormecido na lembrança de quem foi. Encontrou um pasto gordo para sua criação crescer. Pode dormir tranquilo, seguro. Pode engordar a barriga, pode perder tempo, relaxar, comer doces a valer. A agilidade de antes não é mais necessária. Não precisa fugir correndo de outros predadores. Sobretudo valoriza-se, pois o mercado prefere os empregados. Desocupados e avulsos não são confiáveis.

Ainda assim, claro, tem aqueles que não se contentam com nada. Podem ter o melhor troféu em casa, mas ainda são caçadores: procuram desafios e novas fronteiras. Voltam para casa diariamente apenas para ganhar forças. Precisam do risco. O risco de serem pegos, o risco de serem caçados. Existe em todo caçador um desejo secreto de virar presa, tanto quanto a presa sonha um dia virar predador. É fato que caçadores históricos foram fisgados por alguma horta bem preparada, uma comida bem cozida, e uma roupa de cama limpa. E, de nômades, tornam-se sedentários felizes. Pode soprar o vento norte. Pode correr a água por baixo da ponte. Os cavalos ficam inquietos. E eles nem percebem que as lanças perderam o fio, enferrujaram frouxas nas paredes; agora são apenas estandartes do que foi um tempo um guerreiro.

Talvez um dia a paz seja declarada e todos os voluntários da guerra quedem-se para festejar com vinho e pão feitos em casa. E massa fresca com tomates pelados. E doce de casca de laranja, e todo tipo de coisa boa. Sim, e que todos se contentem com sua própria despensa, porque o desejo de querer mais vem do olho. O olho é um ladrão insatisfeito. Saber olhar a vida é uma mistura equilibrada de desejo com felicidade, porque só deseja quem não está verdadeiramente feliz.

segunda-feira, 14 de maio de 2012

O drama e o Outro


A dramaticidade me capturou. Olhos vermelhos, veias saltadas no pescoço, nas mãos. Os maxilares presos, tensos. Era Julio Cesar reconhecendo Brutus. Era o segundo antes do fim da guerra, antes do sim. Era meia noite, sem lua. Sombras e brilhos fugidios no momento da promessa. A palavra começada na boca entreaberta. “eu juro”.  Silêncio. Profundo. O drama no primeiro ato, o primeiro personagem encontrado sob a luz que se acende. Levantando a cabeça devagar, deixando entrever o olhar duro. O olhar que olha diretamente no meu. Um encontro que me reconheceu como o espelho.

Olho para o espelho e gosto do que vejo. Aquelas roupas que não eram as minhas. Aquela expressão que não era eu. “quem está aí?” a pergunta ecoa no vazio, sem resposta. A madeira do assoalho estala sem nenhum passo. “quem está aí?”, a insistência nervosa, a voz destacada na penumbra. Todo o cenário pronto, descrito com o sangue que escorria das veias. Um bilhete de despedida. Leio. Letra trêmula, disfarçando o ato premeditado. “eu não queria isso”. E queria o que? Dissimulação. 

O rosto marcado, cansado, tarde demais para se arrepender. Tarde demais para voltar atrás. Ou nunca é tarde. Nunca é demais. O mesmo olhar a me olhar na dureza da falta de luz. A me olhar como se soubesse o que fiz. Você não pode abreviar o que já foi escrito. Não pode mudar o que já viveu. Ela perplexa, por trás da maquiagem bem feita, começa a escrever o bilhete. Já escrevera com baton no espelho o recado base de sua vida: “te amo”. E ao acordar, no meio da manhã, surpreendeu-se com a delicadeza. “você é linda”. Todas as palavras já ditas que o amor sempre repete. Que há de novo? Sim, é sempre de novo.  Na hora de abaixar as cortinas, um pouco de pó se deixa cair na luz do refletor. Porque tem muito pó no drama. O papel que, ao pegar fogo, se derrama como se fosse líquido. 

Papel de quem não se importa mais, não importa mais para nada. Deixou-se cair no sofá, depois no tapete e, semidesperta, despida já do calor que lhe fazia humana, o brilho opaco dos lábios na frase incompleta, “o que que eu fiz?”,  não tirou o olhos do meu fitá-la, incompreendida, largada no chão frio. Eu, testemunha do seu ato. Eu, apenas pagante de seu drama. Eu. E ela embriagada, embargada, sem voz, perdendo-se no lá dentro de si mesma. Até não restar nada de si. Nada do que fora. Nada. O gesto paralisado no meio. E depois, segue o silêncio e o escuro. Instantes de hesitação e logo a vibração irrompe nos aplausos da plateia que está ainda em prantos, acabada, soluçando, levantando-se e aplaudindo mais. 

Eu, ainda tonta do que houvera, a cabeça em maresia, vou despertando aos poucos do fundo da minha alma estraçalhada no espelho. Não aplaudo, agradeço mecanicamente. Depois, mais recomposta, entendendo o que está acontecendo, levanto e recebo com prazer o que me é dado. “obrigada, obrigada”.

quinta-feira, 10 de maio de 2012

Reencontro


Imagine que eu já sei quem você é. Que marcamos de nos encontrar essa semana, talvez a semana que vem, na rua, na passagem das horas, no cruzamento de olhares que se reconhecerão. Imagine que não temos tempo de mais nada, apenas nos encontramos como a lua se encontra, de repente, com a noite. De repente e pronto. Sem convites, sem telefones, sem escolhas. A rua fria, quase nublada daquela névoa que aparece nessa época. A rua deserta como são desertas as noites sem guarda-chuva. E imitando um sonho, história contada e recontada tantas vezes que virou verdade, você vem descendo o passeio do outro lado, sob as luzes acesas, apenas contando os passos, olhos baixos, desatentos. 

E porque sei quem você é, eu espero, ando com vagar, uma música tocando ao fundo da alma. Procuro estrelas para contar, procuro contar os pulsos, completamente absorta do que será. Já escuto os passos, já entrevejo o balançar dos seus cabelos na brisa fria daquela hora. E como se ouvisse meus pensamentos, você levanta o braço e, dedos envoltos, joga-os para trás. Assim, no acaso da calçada, no compasso do quase inverno, estamos indo para o mesmo ponto, o mesmo lugar. Você sabe que horas são? Sabe qual é aquela estrela? Posso falar sem parar de todas elas, posso falar do rio que corre transparente, e dos seus cabelos estrategicamente espontâneos voltando a cair para frente. Ao invés, calo as palavras capturadas e sem sentido. Calo o silêncio entre duas notas, a pausa retida no pedal, a duração ansiosa de segundos intermináveis.

Cada movimento sem pensar está sob o controle de um ímã, que atrai enquanto despista. Você vem? Eu vou. A sequência de pensamentos perdida e inútil. Falarei alguma coisa? Conseguirei articular uma frase?  E tal como um filme em câmera lenta, vejo ainda cair os seus cabelos pela fronte e esvoaçar para cima novamente. Cadência de pêndulo adivinhando meu destino. Sigo em frente sem perceber a hora que parei, o momento que sentei na calma, à espera de sua passagem. Do lado contrário, você não reduz, não perde o ritmo, e quando assim me vê, parada na sua passagem, sorri apenas, o sorriso do feitiço da lua cheia. Claro e brilhante. “olá”. “olá”? pergunto, mas deveria responder. 

E se você ainda pensa em seguir em frente, eu interrompo o gesto. Vou pedir alguma coisa, perguntar as horas, tossir, espirrar, qualquer coisa que faça você parar. Então, você me verá. Outro sorriso, agora de reconhecimento, e eu de novo tremendo, sorrio para me apresentar. Você sabe quem sou eu. Eu sou todas histórias contadas à exaustão toda noite antes de dormir. Sou o final feliz, o momento do beijo, o sim. 

Meu nome é árabe, das mil e uma noites, meu nome vem do oriente, do sol poente, meu nome foi escrito nas pedras dessas montanhas, foi escrito com a tinta das nuvens que passam baixas quase tocando as faces descobertas. Ele combina com o seu que foi feito de fogo, riscado à flecha na areia do caminho, que arde na noite quando não há lua. Seu nome ligado ao meu é um mantra que o céu canta sem parar. É o amor que entrelaça sem amarrar, que enlaça sem prender. Seu nome sussurrado assim na noite de névoa é o presente que sabia que iria ganhar.