Talvez seja
o fato de dividirmos o mundo em bem e mal que faça do perdão um gesto tão
difícil de alcançar. Que provoque movimentos endurecidos, crus e cruéis entre
pessoas. A diferença, obviamente, é uma questão de estar de um lado ou do outro
desse rio intransponível que divide o certo do errado.
É claro que
estarei sempre do lado certo do mundo, como de resto, todo o mundo a seu modo.
Acreditando estar fazendo sempre e invariavelmente o melhor. Para quem mesmo? A
pessoa da ação precisa ser colocada, nada dessa coisa de sujeito indeterminado,
oculto. Diga: isso é o melhor para mim. E, portanto, a consciência da
subjetividade do julgamento é meio caminho para entender a diferença. Só meio.
O outro é uma decisão.
E seria uma
decisão individual a escolha entre bem e mal? A vida seria assim mesmo criada
maniqueistamente, como um par corrompido, irreconciliável? Ou o mal serve ao
bem, estrategicamente? Haverá um sem o outro? A plenitude é um horizonte sem
montanhas?
A vida não
é um vazio oco onde coisas aleatórias acontecem. Ela ressoa. Reverbera.
Responde. E o sujeito que sou não é o centro de tudo, descoberta já empoeirada.
O que acontece é que a vida é cheia de interpretações, julgamentos, decisões.
Tantos quantos sejam os indivíduos vivos sobre o planeta. Um único planeta. Um
único lugar múltiplo de olhares, gestos, passos. Milhões e milhões e milhões de
pensamentos diversos entre si rompendo a crosta terrestre, dividindo opiniões, em
guerra pela verdade santa, universal.
Quem estará
certo na pluralidade da humanidade? Certo para o quê? Minorias cada vez mais auto
identificadas irrompem momento a momento rasgando a hegemonia de um agir,
mostrando a temporalidade de tudo. E todos. A vida, efêmera demais para querer
se cristalizar numa verdade, reage. Estende o estandarte branco da imensidão,
iluminado e indissolúvel da paz.
Mas o
perdão. O perdão talvez só exista para quem acredita em certo e errado, deus e
o diabo. Será que é uma atitude magnânima perdoar? É, antes de tudo, de
consciência. Entender que o sujeito que precisa de perdão é exatamente aquele
que acredita que tem que perdoar (ou, se não acredita nisso, que pensa que foi
ofendido). Não são os outros que erram ou me maltratam e me fazem sofrer. Sou
eu que estou insistindo em pessoas que não são da minha história. O perdão, então,
é para mim.
O perdão
parece mais com uma ponte que quer unir as duas margens do rio. Mas elas existem
para não deixar a água correr espraiada para todo lado. Existem para delimitar,
definir. E toda definição é limitante. Pois é assim com o bem e o mal, seja
isso um par, seja uma contraposição.
O perdão é
uma invenção ou é realmente o maior dos gestos? Aquele capaz de tirar do
pescoço uma pedra amarrada, ou algemas das mãos e grilhões dos pés? Aquele que
liberta o ultrajado de seu ultraje, que esvazia as mágoas, esfria a ira dos
ofendidos? Porque, ainda que a mágoa tenha sido real, intencional ou não, a
ofensa une enquanto for lembrada, enquanto for aclamada.
O perdão
deixa partir. Deixa correr o rio com seu estupor levando tudo pelo caminho. Deixa
o vento derrubar todas as folhas secas e mortas. Deixa escurecer a noite do
descanso, dos sonhos improváveis, da delicadeza. Sim, o perdão. Sem se importar
com certo ou errado, bem e mal, sem se importar com quem ganha e quem perde, se
é que perde. O perdão assim, ele mesmo. Perdão. Rarefeito, invisível como o
rastro de uma lágrima, quase perfeito no gesto de adeus. O perdão desvanece.