domingo, 30 de outubro de 2016

O bem, o mal e o perdão

Talvez seja o fato de dividirmos o mundo em bem e mal que faça do perdão um gesto tão difícil de alcançar. Que provoque movimentos endurecidos, crus e cruéis entre pessoas. A diferença, obviamente, é uma questão de estar de um lado ou do outro desse rio intransponível que divide o certo do errado.

É claro que estarei sempre do lado certo do mundo, como de resto, todo o mundo a seu modo. Acreditando estar fazendo sempre e invariavelmente o melhor. Para quem mesmo? A pessoa da ação precisa ser colocada, nada dessa coisa de sujeito indeterminado, oculto. Diga: isso é o melhor para mim. E, portanto, a consciência da subjetividade do julgamento é meio caminho para entender a diferença. Só meio. O outro é uma decisão.

E seria uma decisão individual a escolha entre bem e mal? A vida seria assim mesmo criada maniqueistamente, como um par corrompido, irreconciliável? Ou o mal serve ao bem, estrategicamente? Haverá um sem o outro? A plenitude é um horizonte sem montanhas?

A vida não é um vazio oco onde coisas aleatórias acontecem. Ela ressoa. Reverbera. Responde. E o sujeito que sou não é o centro de tudo, descoberta já empoeirada. O que acontece é que a vida é cheia de interpretações, julgamentos, decisões. Tantos quantos sejam os indivíduos vivos sobre o planeta. Um único planeta. Um único lugar múltiplo de olhares, gestos, passos. Milhões e milhões e milhões de pensamentos diversos entre si rompendo a crosta terrestre, dividindo opiniões, em guerra pela verdade santa, universal.

Quem estará certo na pluralidade da humanidade? Certo para o quê? Minorias cada vez mais auto identificadas irrompem momento a momento rasgando a hegemonia de um agir, mostrando a temporalidade de tudo. E todos. A vida, efêmera demais para querer se cristalizar numa verdade, reage. Estende o estandarte branco da imensidão, iluminado e indissolúvel da paz.

Mas o perdão. O perdão talvez só exista para quem acredita em certo e errado, deus e o diabo. Será que é uma atitude magnânima perdoar? É, antes de tudo, de consciência. Entender que o sujeito que precisa de perdão é exatamente aquele que acredita que tem que perdoar (ou, se não acredita nisso, que pensa que foi ofendido). Não são os outros que erram ou me maltratam e me fazem sofrer. Sou eu que estou insistindo em pessoas que não são da minha história. O perdão, então, é para mim.

O perdão parece mais com uma ponte que quer unir as duas margens do rio. Mas elas existem para não deixar a água correr espraiada para todo lado. Existem para delimitar, definir. E toda definição é limitante. Pois é assim com o bem e o mal, seja isso um par, seja uma contraposição.

O perdão é uma invenção ou é realmente o maior dos gestos? Aquele capaz de tirar do pescoço uma pedra amarrada, ou algemas das mãos e grilhões dos pés? Aquele que liberta o ultrajado de seu ultraje, que esvazia as mágoas, esfria a ira dos ofendidos? Porque, ainda que a mágoa tenha sido real, intencional ou não, a ofensa une enquanto for lembrada, enquanto for aclamada.

O perdão deixa partir. Deixa correr o rio com seu estupor levando tudo pelo caminho. Deixa o vento derrubar todas as folhas secas e mortas. Deixa escurecer a noite do descanso, dos sonhos improváveis, da delicadeza. Sim, o perdão. Sem se importar com certo ou errado, bem e mal, sem se importar com quem ganha e quem perde, se é que perde. O perdão assim, ele mesmo. Perdão. Rarefeito, invisível como o rastro de uma lágrima, quase perfeito no gesto de adeus. O perdão desvanece.

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

Acreditar me salva

A minha natureza é acreditar. Pode ser a história mais surpreendente. Pode ser a conversa mais mole, ou mais incrível. Pode não chamar testemunhas, pode não ter nenhuma prova. Eu acredito. Acreditar é um pouco acender o fogo que aquece o peito, que faz queimar a escuridão, que desintoxica, que renova.

Eu acredito naquilo que não vejo. Até porque, somos feitos de coisas que não vemos. Milhões de átomos, micróbios, bactérias, coisas tão minúsculas que, no entanto, nos tornam sólidos e visíveis. Acredito numa palavra dada mais do que em fotos publicadas, em fatos revelados ou histórias contadas para serem críveis.

Sim. Isso é diferente de se deixar manipular, se deixar enganar. Acreditar quer dizer estar aberta, e não que me tenha tornado boba. Dá para ouvir uma história mirabolante, mas dá também para observar até onde ela vira um conto de fadas ou de carochinha.

Se acredito assim na vida e nas pessoas e na possibilidade de ser diferente da próxima vez, e da próxima, é porque me alimento dessa confiança. Confiar tem mais proteína do que carne. Tem mais adrenalina ou serotonina do que correr ou ser feliz. É um elixir, na verdade. E para aqueles que, como eu, veem nela a substância da própria vida, ela acalma, cuida da ansiedade, traz novos sonhos. Acredito até mesmo que a autorregeneração reside aí.

Acreditar ainda que acabe a luz, ainda que os ânimos se exaltem, que falte energia para sorrir, e tudo o mais parece longe e insólito. Não é outra coisa que me faz levantar da cama pela manhã, ou me faz seguir em frente em dias de chuva intensa, quando faz dias de lamaçal ou todos já foram dormir.

Não vou dizer que não vivo sobressaltos por acreditar. Vivo. Chego a perder o ar e me faltar o chão quando o que acreditei me levou ao precipício. E, olhando a altura infame, ainda assim me debrucei perigosamente em suas bordas, tive vertigens, escorreguei, me agarrei em raízes mortas, me esfolei, pensei que ia morrer. Acreditar não me impede de correr riscos, ou de sofrer perdas. 

Sobretudo, não elimina as ilusões. Mas ilusão não tem nada a ver com confiar.
O fato de acreditar que o meu barquinho vai conseguir atravessar o oceano não significa que eu tenha a ilusão de que não encontrarei marolas, tubarões ou outros perigos. Significa que eu acredito em sua estrutura, que confio na minha navegação, e sei que, com bússolas, mapas e combustível, poderei chegar onde quiser.

A beleza da confiança me salva.De onde ela vem? Como se chama? É um deus ou uma deusa? Estendendo a mão na minha direção, cuidando para que tudo me seja dado, e tudo esteja de acordo. E me pondo no colo quente e carinhoso da vida, me prometendo a vida que quero. Não exigindo de mim senão o gesto, a atitude, um passo além.


Acreditar me salva. Sou eu estendendo pontes para mim mesma? Deixando bilhetes com rotas que deram certo, com rumos que deram em nada? Está dentro de mim ou é uma rede que me perpassa ligando quantos outros numa certeza de braços abertos? Eu não sei o que é, mas é da minha natureza.