sábado, 24 de dezembro de 2016

Feliz Natal, mamãe

É engraçado como a gente se acostuma com o amor cotidiano e nunca expressa a sua importância. É encabulante. Parece que, por estar ali desde que nascemos, desde muito tempo, desde sempre, como algo que não poderia não estar, não precisa de reconhecimento. Não precisa de palavras ou gestos, somente olhares tácitos rapidamente decodificados.

É como tudo que é certo: se está certo, não precisa de prenúncio, recomendação ou elogio. O que está certo, limpo e organizado é uma satisfação sem nome. Como se só o silêncio pudesse dar a dimensão do prazer. O cuidado que nos é dirigido diariamente parece não requerer agradecimento, não procura materialização, cênica ou não, não se transforma em aceno, num piscar de olhos cúmplice.

Não, porque eu pensaria que era necessária a minha declaração? Não era evidente minha alegria a cada degrau? Não era explícita minha felicidade a cada aniversário? O tempo dedicado, um instantâneo da dedicação, marcado como tatuagem na retina, na minha pele, num espaço exclusivo na lembrança, como se fosse um prolongamento.

Não faltou comida, ou quando muito, tudo foi dividido com apuro e justiça. Dos primeiros passos, quem lembra como foram? Quem lembra quantas vezes caiu e pacientemente foi levantado para ser instigado a continuar? Quantas tentativas infrutíferas e quantos sucessos colossais foram registrados por quem diligentemente acompanhou tudo? Testemunha ocular ou emocional de todo nosso crescimento. Cada pegada, cada passo, cada tijolo acentado na estrada, no edifício da vida, cada osso da coluna vertebral que nos pôs em pé, tudo marcado na memória como referência de si mesma.

Não faltou curativo, lição tomada, não faltou hora de descanso e hora de dormir, não faltou saber onde era a trave e onde era o gol. Não faltou o empurrão derradeiro que nos fez ter que abrir asas e voar. Mesmo quando não sabíamos que voaríamos. Até mesmo quando ainda não sabíamos qual o propósito de voar.

Agora sei que preciso expressar. Expressar minha gratidão sem fim, sem começo, sem tempo, o tempo todo. Expressar que lembro com gratidão a atenção da vida toda. A presença da vida toda. O acompanhar da vida toda, como a estrela que vela à noite, mesmo quando chove muito, ou venta muito, ou quando faz silêncio total no escuro lá de fora. Hoje entendo que meu cotidiano tranquilo ou confiante é apenas a sombra projetada pelas certezas que me deram suporte, em cada gesto, em cada momento.

Mesmo na distância, hoje eu agradeço. Porque a vida tem sido boa. Porque não preciso carregar o mundo nas costas, sem culpa. Porque tenho motivos para levantar da cama toda manhã, sem pressa - reconheço - mas levantar para viver o que me proponho diariamente.

É final de ano, quase natal, e ainda por cima chove. Configuração perfeita para a introspecção. A reflexão. E o reconhecimento. Obrigada, obrigada, obrigada, mamãe, pela abertura, pela liberdade, pela responsabilidade que aprendi na vida, pela ousadia que me permiti e a transgressão necessária para fazer meu próprio caminho, significativo e verdadeiro. Obrigada por ser minha casa para onde eu pudesse voltar se tudo o mais não desse certo. Obrigada, ainda que não tivesse nada disso, e tive! Obrigada e feliz natal!

sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

Café, pão e amor

Eu nunca soube o que era amar porque sempre fiquei presa no amor. O amor que preenche todos os pensamentos, completa todas as horas e substitui os sentidos. O amor contido ou derramado, escondido no peito, bombeado para todo o resto por um coração que não se cansa. Amor quieto. Profundo.

O amor não declarado é amor, contudo. O amor acalentado no peito de quem ama, no silêncio dos ventos passando, tarde da noite de olhos abertos no escuro, ou com lua cheia, sentido com a profundidade que todo amor merece, sentido com o corpo todo, com a alma, pelo que já foi e pelo que será, pelo que nunca será, ainda assim, é amor. Mas, ao ser amado, ignorante de assim ser, não será mais que um mistério.

Por isso, não bastará meu desejo de que todas as flores do caminho anunciem o amor incomunicável, não será o suficiente rezar todas as noites para que os anjos protejam o objeto amado. Será preciso que o verbo principie em expressar para que a vida aconteça. Para que, sob os sons das palavras, o amor possa acontecer plenamente.

Na distância e no silêncio, o amor que reina é apenas aquele sentimento universal, impessoal, por todos e por ninguém em especial. Aquele que une, entrelaça, aproxima duas pessoas num abraço amoroso, e que faz delas únicas no mundo, esse amor pede demonstração. Seja pela mão estendida à espera do toque, seja pelo olhar que se cruza num lapso de tempo, num piscar que liga, entende, explica; sejam pelas palavras cunhadas no papel, bilhetes lançados em garrafas ao mar; seja como for, o amor precisa ser anunciado, expressado, escandalizado.

Somente quando rabiscado pelos muros nas ruas, ou cantado em melodias pelo ar, ou murmurado num momento de calma, o amor existe. Somente quando desenhado em cores ou linhas, quando o gesto mudou o calor do entorno, é que o amor se realiza. Antes, ele é um sopro, uma possibilidade de salvação, uma luz. Não adianta estar escrito nas estrelas, num pastel da sorte ou na boca do sapo.

O amor precisa gritar sua existência para que o outro ouça. E, ouvindo, possa então vibrar o que significa. O ser amado precisa ser envolvido pelo abraço, pelas palavras e cores, pelos símbolos do que representa em quem ama. Sem esse clamor, ele murcha, adormece, prescinde. Segue colhendo as flores dos campos sem saber das que faz nascer no peito de alguém.

Assim é o amor. É uma poesia que não precisa de rimas, ou de palavras lindas, de ritmo, ou de sentido. O amor, assim mesmo, precisa clarear sua passagem. Precisa contar sua história, cheia de lacunas, e de palavras lacônicas, monossilábicas, desconexas. Precisa da tentativa de captura, do olhar de soslaio, das frases incompletas, um pouco nas sombras, um pouco enevoadas. Disléxico. Senil. Grotesco. Ridículo. Não importa. O amor carece de expressão.

É então que amar é uma palavra que soa. Como se me pregasse uma peça, amar me confunde, entorpece, como se me acordasse cedo demais e eu não sei para onde ir. Amar é um labirinto de vidro torturante, sem saída, onde nenhum mapa que trago parece corresponder. Amar me desaprende a ser. E assim, posta nua repentinamente, preciso me recriar em outra.

No entanto, como para tudo na vida, há várias formas de amar. É igual a farinha e água, dependendo da proporção de uma ou de outra e do movimento que faço, posso fazer um pão ou um macarrão. O apetite define o que, mas as circunstâncias dão um toque final. Na confusão da minha cozinha, sem saber o que é melhor para mim, eu me decido pelo simples. Hoje quero um amor simples como pão com manteiga. 

sábado, 3 de dezembro de 2016

Amamos o que está além

Acho que amamos sempre uma pessoa que está dentro daquela que fisicamente se apresenta para nós. Amamos o que não vemos. O que está sempre escondido, terno ou delicado, que perdemos dos olhos mas sentimos com o coração, e que nos faz bem e felizes, sem que possamos nomear ou reconhecer. Algo que está apenas no cheiro que o ar insinua quando passa uma aragem. Algo que arrepia a pele ou provoca um tremor, um estremecimento que não sabemos de onde vem, ou por quê.

Amamos o desconhecido naquele rosto conhecido. Desejamos o gesto que não se expressa, o toque que não temos, menos por querer o que não é nosso. Mas porque o que de fato nos afeta em alguém está além dele. O que nos impacta na presença de uma pessoa é o que ela não diz, é o que ela não sabe, é certa ingenuidade infantil que ninguém sabe que tem, nem eu nem ela.

Não amamos a pessoa comum que se faz presente cotidianamente, que passa o braço pelas nossas costas, ou que estende a mão quando precisamos. Amamos a que não faz falta, a que podemos passar sem, que não liga, não pergunta como estamos, não sabemos quem é nem o que pensa, que ignoramos completamente e que está por trás daquela. Na verdade, não amamos a sombra projetada quando passa, mas sua luz incógnita, minimamente aparente, quase apenas sonhada, invisível.

Por que amamos assim, aquilo que não podemos alcançar ou conter? Por que queremos mais o que está além do toque ou do gosto, que não faz parte da vida que passa, que não tem tempo ou duração? Por que insistimos naquilo que não tem explicação ou sentido? Por que procuramos pelo que não nos é dado? Pelo que nem é secreto posto que não seja sabido por ninguém? Haverá uma razão a ser entendida?

Talvez não. Talvez o amor seja um magneto que desnorteia todas as bússolas internas, desgoverna todas as intenções, desconecta os sentidos. Ou não seja amor.

Porém, todas as formas de amor, desde as mais óbvias ao afetivo, todas elas expressam esse devaneio: para elas as pessoas amadas são sempre lindas, inquestionavelmente merecedoras desse amor. Mesmo quando não são. Quem pode julgar?  Existe beleza o bastante em não haver atrativo algum. Existe até mesmo bondade onde não há gesto. Poesia concreta. Existe sentido até quando não encaixa, não responde, não permanece. É uma incógnita. Uma formulação secreta demais, perdida há muito.

O que encabula, no entanto, é a procura, a busca paradoxal de sentido onde não há senão vazio, de gesto onde não há sequer vontade, como se procurasse um fantasma, algo que já foi ou será, mas não é ainda.

O amor, por mais intenso ou surreal que seja, não salva. Ao contrário, faz perder. Despe. Desorganiza. Desarranja. É essa desordem que nos faz seguir em frente. É esse caos, esse caldo primordial, o cordão umbilical repentinamente rompido, o cair no abismo, a falta de limites, esse estado de ser desconformado do corpo é o que procuramos no outro. O amor é um suicídio do que pensamos que somos. 

segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Perdoar, verbo bitransitivo

Fico pensando se o verbo perdoar não deveria conjugar assim como o lembrar e esquecer, e aceitar a forma de verbo transitivo direto e indireto, afinal quem perdoa, perdoa alguma coisa a alguém, necessariamente. Mais ou menos assim: eu te perdoo a mim, ou eu me perdoo a você. Porque da outra forma tudo fica muito genérico, abstrato, mais para espiritual do que algo concreto, real.

Quando eu me perdoo a você, rompo laços, liberto ambos, sujeito e objeto, da ligação indesejada. Promovo a sanidade, a cura, o bem-estar. Uma nova troca de olhares será mais leve, certamente, mais solta, descompromissada e verdadeira.

Um perdão amplo é espiritualizado demais, largo demais, longe demais. Parece superior, algo que está além da compreensão humana, além de um gesto interessado, efetivo. Soa falso, como se, para chegar até ali, não houvesse passado pela dor, a pele arrepiada, os olhos marejados. Como se tivesse sido uma caminhada na areia, úmida e fina, areia da praia, com horizontes longínquos e indiferentes. Como se não deixasse marcas profundas, cicatrizes desenhadas em giz, como se fosse o caminho da gota dágua no vidro do carro que passa.

Não. De jeito nenhum. O perdão precisa deixar claro toda a história que percorreu para chegar ali, frente a frente, prestes a cortar o cordão que unia, invisível ou risível, duas pessoas. Precisa mostrar as mãos queimadas de segurar a corda tão vorazmente, mostrar o risco no peito, as veias dilatadas sem tempo de respirar.

Ou, talvez, assim no formato tradicional, o perdão conte com a participação soberana do tempo. O tempo que seca a sangria, estanca as lágrimas e ameniza o aperto entre os maxilares. Dizem que o tempo cura tudo. Mas não acredito também. O tempo não cura vista cansada, nem palpitações no peito. Ele apenas atua na memória, trocando as cores originais por outras mais sensacionais, ou mudando os gestos dos personagens, tornando-os mais heroicos, estoicos, ou estrábicos. O tempo é uma ilusão. Um disfarce, descompromissado e descomprometido. Eufemismo de quem não quer falar o que realmente importa. Não quer tocar no que precisa ser tocado, limpo, renovado. Pode ser uma ladeira para baixo, despencando descontrolado o que quer que seja, rumo ao inevitável esborrachar-se final, ou pode ser uma ladeira acima, passo ante passo rolando a pedra pesada da memória, esperando que ela vá se desgastando e turvando no atrito continuado.

Não, não. O perdão que espera pelo tempo perderá muitos trens até que chegue a hora de partir definitivamente. Até que chegue aquele que o levará rápido e certeiro para outra estação. O perdão que espera não liberta de vez. Só promete. Só presume. 

Eu me perdoo a você. Porque reconheço a ligação que nos une, de medo e frio, como se não houvesse mais ninguém no mundo, ninguém na vida que pudesse criar outro cenário, desenhar outro dia, outro amanhecer. Ligação que me faz sentir falta, como se eu mesma já não bastasse, que me faz sentir pequena, como se meu olhar não pudesse alcançar além. E eu te perdoo de mim também, para que a reciprocidade possa ir soltando a teia tecida nos espaços da nossa distância e, assim, que o entorno tornado vazio não permita a manutenção dos ecos do que já foi. No silêncio do peito aberto, pode brotar a paz outra vez.

Assim, livres e em paz, as emoções sinceras e consistentes, subliminares, podem vir à tona, desprotegidas, empoderadas de novo, inteiras de novo, renovadas.

E depois, sem ter que esperar pela moldura do tempo, essa história passará a ser mais uma pendurada na parede da sala, ou no corredor, entre troféus e máscaras, como a figurinha de uma coleção incompleta. E depois ainda, pode até se transformar numa ponte erigida corajosamente sobre um abismo, onde, mais corajosamente ainda, duas pessoas possam vir a se encontrar novamente. Mas só depois.

domingo, 30 de outubro de 2016

O bem, o mal e o perdão

Talvez seja o fato de dividirmos o mundo em bem e mal que faça do perdão um gesto tão difícil de alcançar. Que provoque movimentos endurecidos, crus e cruéis entre pessoas. A diferença, obviamente, é uma questão de estar de um lado ou do outro desse rio intransponível que divide o certo do errado.

É claro que estarei sempre do lado certo do mundo, como de resto, todo o mundo a seu modo. Acreditando estar fazendo sempre e invariavelmente o melhor. Para quem mesmo? A pessoa da ação precisa ser colocada, nada dessa coisa de sujeito indeterminado, oculto. Diga: isso é o melhor para mim. E, portanto, a consciência da subjetividade do julgamento é meio caminho para entender a diferença. Só meio. O outro é uma decisão.

E seria uma decisão individual a escolha entre bem e mal? A vida seria assim mesmo criada maniqueistamente, como um par corrompido, irreconciliável? Ou o mal serve ao bem, estrategicamente? Haverá um sem o outro? A plenitude é um horizonte sem montanhas?

A vida não é um vazio oco onde coisas aleatórias acontecem. Ela ressoa. Reverbera. Responde. E o sujeito que sou não é o centro de tudo, descoberta já empoeirada. O que acontece é que a vida é cheia de interpretações, julgamentos, decisões. Tantos quantos sejam os indivíduos vivos sobre o planeta. Um único planeta. Um único lugar múltiplo de olhares, gestos, passos. Milhões e milhões e milhões de pensamentos diversos entre si rompendo a crosta terrestre, dividindo opiniões, em guerra pela verdade santa, universal.

Quem estará certo na pluralidade da humanidade? Certo para o quê? Minorias cada vez mais auto identificadas irrompem momento a momento rasgando a hegemonia de um agir, mostrando a temporalidade de tudo. E todos. A vida, efêmera demais para querer se cristalizar numa verdade, reage. Estende o estandarte branco da imensidão, iluminado e indissolúvel da paz.

Mas o perdão. O perdão talvez só exista para quem acredita em certo e errado, deus e o diabo. Será que é uma atitude magnânima perdoar? É, antes de tudo, de consciência. Entender que o sujeito que precisa de perdão é exatamente aquele que acredita que tem que perdoar (ou, se não acredita nisso, que pensa que foi ofendido). Não são os outros que erram ou me maltratam e me fazem sofrer. Sou eu que estou insistindo em pessoas que não são da minha história. O perdão, então, é para mim.

O perdão parece mais com uma ponte que quer unir as duas margens do rio. Mas elas existem para não deixar a água correr espraiada para todo lado. Existem para delimitar, definir. E toda definição é limitante. Pois é assim com o bem e o mal, seja isso um par, seja uma contraposição.

O perdão é uma invenção ou é realmente o maior dos gestos? Aquele capaz de tirar do pescoço uma pedra amarrada, ou algemas das mãos e grilhões dos pés? Aquele que liberta o ultrajado de seu ultraje, que esvazia as mágoas, esfria a ira dos ofendidos? Porque, ainda que a mágoa tenha sido real, intencional ou não, a ofensa une enquanto for lembrada, enquanto for aclamada.

O perdão deixa partir. Deixa correr o rio com seu estupor levando tudo pelo caminho. Deixa o vento derrubar todas as folhas secas e mortas. Deixa escurecer a noite do descanso, dos sonhos improváveis, da delicadeza. Sim, o perdão. Sem se importar com certo ou errado, bem e mal, sem se importar com quem ganha e quem perde, se é que perde. O perdão assim, ele mesmo. Perdão. Rarefeito, invisível como o rastro de uma lágrima, quase perfeito no gesto de adeus. O perdão desvanece.

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

Acreditar me salva

A minha natureza é acreditar. Pode ser a história mais surpreendente. Pode ser a conversa mais mole, ou mais incrível. Pode não chamar testemunhas, pode não ter nenhuma prova. Eu acredito. Acreditar é um pouco acender o fogo que aquece o peito, que faz queimar a escuridão, que desintoxica, que renova.

Eu acredito naquilo que não vejo. Até porque, somos feitos de coisas que não vemos. Milhões de átomos, micróbios, bactérias, coisas tão minúsculas que, no entanto, nos tornam sólidos e visíveis. Acredito numa palavra dada mais do que em fotos publicadas, em fatos revelados ou histórias contadas para serem críveis.

Sim. Isso é diferente de se deixar manipular, se deixar enganar. Acreditar quer dizer estar aberta, e não que me tenha tornado boba. Dá para ouvir uma história mirabolante, mas dá também para observar até onde ela vira um conto de fadas ou de carochinha.

Se acredito assim na vida e nas pessoas e na possibilidade de ser diferente da próxima vez, e da próxima, é porque me alimento dessa confiança. Confiar tem mais proteína do que carne. Tem mais adrenalina ou serotonina do que correr ou ser feliz. É um elixir, na verdade. E para aqueles que, como eu, veem nela a substância da própria vida, ela acalma, cuida da ansiedade, traz novos sonhos. Acredito até mesmo que a autorregeneração reside aí.

Acreditar ainda que acabe a luz, ainda que os ânimos se exaltem, que falte energia para sorrir, e tudo o mais parece longe e insólito. Não é outra coisa que me faz levantar da cama pela manhã, ou me faz seguir em frente em dias de chuva intensa, quando faz dias de lamaçal ou todos já foram dormir.

Não vou dizer que não vivo sobressaltos por acreditar. Vivo. Chego a perder o ar e me faltar o chão quando o que acreditei me levou ao precipício. E, olhando a altura infame, ainda assim me debrucei perigosamente em suas bordas, tive vertigens, escorreguei, me agarrei em raízes mortas, me esfolei, pensei que ia morrer. Acreditar não me impede de correr riscos, ou de sofrer perdas. 

Sobretudo, não elimina as ilusões. Mas ilusão não tem nada a ver com confiar.
O fato de acreditar que o meu barquinho vai conseguir atravessar o oceano não significa que eu tenha a ilusão de que não encontrarei marolas, tubarões ou outros perigos. Significa que eu acredito em sua estrutura, que confio na minha navegação, e sei que, com bússolas, mapas e combustível, poderei chegar onde quiser.

A beleza da confiança me salva.De onde ela vem? Como se chama? É um deus ou uma deusa? Estendendo a mão na minha direção, cuidando para que tudo me seja dado, e tudo esteja de acordo. E me pondo no colo quente e carinhoso da vida, me prometendo a vida que quero. Não exigindo de mim senão o gesto, a atitude, um passo além.


Acreditar me salva. Sou eu estendendo pontes para mim mesma? Deixando bilhetes com rotas que deram certo, com rumos que deram em nada? Está dentro de mim ou é uma rede que me perpassa ligando quantos outros numa certeza de braços abertos? Eu não sei o que é, mas é da minha natureza.

sexta-feira, 15 de julho de 2016

Você e eu

- Gosto de ficar em silêncio com você.

- Sim, eu também te amo.

- Gosto de ficar em silêncio com você e poder deitar meu olhar no seu olhar quase timidamente, quase naturalmente, como quem apenas respira, como se a vida pudesse ser eternamente esse olhar você tão próximo que é tocar um violão.

- A música... sabe, eu queria dançar.

- Piano de calda, flauta transversal no tempo e a nota musical dançando no seu sorriso que não desmonta, que permanece mesmo depois que acabou o motivo, que fica no gosto, na língua, mesmo depois de engolir. Sorriso que fica no meu olhar como um toque delicado, um sorriso que faz um sorriso em mim também.

- Às vezes eu não entendo nada do que você fala...

- Mas o encantamento persiste. Persiste como a luz da lua noite adentro, como estrelas no escuro sem lua, ou no brilho invisível dos olhos do gato quando não há nem estrelas. O encantamento que vem feito onda de mar, banhando o peito até que todo o abdômen se deixe levar pelo ritmo leve e morno. O encantamento, no entanto, queima, fogo sem fim, incandescente, abrasador.

- Você me perturba um pouco quando fica com esse olhar vidrado, meio torto, meio parado. Eu não sei falar bem, me perco um pouco no meio de tanta palavra.

- Mesmo quando o sol não abre e o frio se instala nos meus pés, eu espero por você, espero sua mão na minha, espero seu olhar no meu. Mesmo quando demora para amanhecer ou há mais fumaça do que chama, em todos os momentos, a solidão não me atinge, porque eu sei quem é você.

- Nossa, o dia foi intenso, muito movimento, me deu um cansaço. Posso apagar a luz?

sexta-feira, 1 de julho de 2016

Plantar batatas

Antes que alguém me mandasse, fui plantar batatas, vinte batatinhas, para ser mais precisa. Não tinha ideia de como se fizesse isso, de verdade, para quem quer colher depois. No entanto, pareceu-me fácil: vinte covinhas espalhadas pelo quintal em terra macia, uma batatinha já brotando em cada uma. E esperar pelo resultado. Afinal, tudo na vida imita o funcionamento das coisas. A boa intenção de hoje pode dar frutos amanhã. Ou mostrar-se um grande fiasco. Aliás, fiasco é não ter plantado pra não correr o risco de estar errado. Ou certo.

Abri bem a água para escorrer sobre a terra onde havia plantado. Assim, a terra ficou mais preta e macia. E, sob o sol, fez subir um cheiro de terra, correndo para todo lado. A água, como as emoções, se puder, espraia. Só corre num caminho se for obrigada. Eu acho que toda a água do rio só está ali por falta de escolha. Se ela pudesse mesmo, estaria em toda parte, entrando em todos os lugares, penetrando sob as folhas secas, os galhos soltos, as pedras.

Depois de ter que lidar com a ansiedade de ver nascerem os brotos, e aprender a esperar o tempo que o tempo de tudo tem, foi uma alegria ver despontar um resultado tão bom de ações experimentais. Lá estavam elas, mostrando que sabem para onde tem que ir. Lá estavam as mudas crescendo, prenunciando que poderei ter batatas no futuro. Por ora, apenas um compromisso de aguar todo dia.

Nesse tempo de querer vir o inverno, falta chuva. Ou melhor, não sei se falta ou é assim mesmo: o ar é seco. E eu gosto. Gosto desse frio intenso de dia, apesar do sol, e noite limpa e estrelada. Gosto de ter que usar cachecol no pescoço e boinas, gorros e chapéus para proteger do frio a cabeça. Gosto da brisa fria batendo no rosto. Os gatos vêm se encostar para dormir quentinhos enquanto leio sentada no sofá. E tudo é mais translúcido.

Embora não chova, às vezes uma névoa se forma no final da tarde encobrindo a paisagem. Parece que entrei num sonho, de repente. Tudo fica insólito. O mundo desaparece. O que era conhecido submerge em metades, em partes, em sinais. Há que seguir com cautela mesmo pelo caminho de todo dia.

Plantei também outras mudas. Eu sei que é insistir muito plantar no inverno, na montanha. Mas eu não resisto. Ganhei as mudas numa feira de trocas e não posso ficar acreditando nas impossibilidades mais do que nas oportunidades. É um risco para o sim. Sim, brotarão. Sim, vingarão. Sim, terei uma cerca de ora-pro-nobis e suas flores lindíssimas, entremeada de malvaviscos.

E, para me resguardar do frio em dias em que o sol não aparece senão sob brumas, acendo um fogueiro com lenhas do quintal. Deixo-me hipnotizar pela dança das chamas e pelo crepitar das brasas. E me aqueço. Sob esse encantamento, sei que estou protegida, amparada.

Talvez daqui a alguns dias possa assar batatas nessas brasas, que além de me aquecerem ainda me alimentarão. E nunca poderei reclamar da vida que me provê diariamente, cotidianamente, diligentemente.

quarta-feira, 29 de junho de 2016

Depois do Tempo

Antes de buscar entender o que havia atrás da floresta, daquela intensidade de árvores e copas e bosques, daquele silêncio repentino que foi o encontro de olhares numa clareira desconhecida, antes de começar a seguir em frente, sem bússola, sem plano de voo, é preciso deixar que o tempo verta espraiado como água escorrendo em todas as direções e sobre tudo, inundando de dias e noites em camadas sobrepostas, como areia de duna, como folha caída, até que, se por ventura ainda restasse algo vivo e sensível, tenha sido mansamente apaziguado ou anestesiado.

Depois, o tempo cobre de pó e descasca um pouco a imagem que restou, tirando às vezes um pouco do brilho, se havia, mas também remendando os espaços vazios, esmaecendo o que já não tinha cor ou amaciando os cantos escuros. E, ao cobrir de matizes mais deglutíveis, torna fácil relembrar o que passou, recontar o que a pele sentiu sem chegar a doer ou fremir novamente.

Assim, faz parecer que foi uma decisão lúcida o que era apenas falta de saída, o que era uma porta fechada, secreta, cuja senha ou palavra mágica se perdera por desuso. Faz crer que a insistência em continuar tentando era uma visão romântica e não cansaço. O cansaço das relações impressas em papel de pão, amassado, vulnerável. Cansaço reticente, resistente, reativo, mas ainda assim, cansaço.

Olhar para trás depois, muito depois, não faz estátua de sal, e pode ser facultado por cuidar do jardim, arrumar plantas em vasos, cuidar de cães e dar atenção a outros detalhes que, se observar bem, a vida é cheia.

Olhar para trás, depois que tudo se acabou, é como querer lembrar o cardápio da noite anterior, querer recuperar o gosto ou o cheiro, lembrar os sons dos talheres, as conversas, os silêncios, na expectativa de sentir aquilo que não sentiu, de responder ao que ficou sem resposta, tomar mais vinho.

Quando olho para trás, para o rastro que deixei no caminho que sou eu, onde me detive frente às pedras, onde fiquei à sombra ou mergulhei no riacho, vejo que, por vezes, plantei mudas que crescerão árvores e obscurecerão minha passagem, e em outros momentos, para que pudesse passar, amassei a erva, quebrei galhos, mudei o curso de regatos.

O passado, assim, parece ser apenas uma história contada por outrem, uma história distante, diferente, um retrato congelado de alguém que você já não se reconhece. E então, não há mais julgamentos, não foi nem bom nem mau, nem feio nem bonito. O que passou foi apenas uma forma de falar, um jeito de ver, e não mais uma marca na pele, uma cicatriz.

Olho pela janela e, enquanto vejo a paisagem acinzentada pelo sol, na verdade estou encarando o hiato entre duas mãos estendidas, procurando, tateando no escuro o que poderia ter sido um universo, uma nuvem passageira, um voo flanado no horizonte. O encontro do desencontro. O bilhete para o espetáculo errado, o dia errado. O momento do desengano.

Mas se ainda resta um momento de desengano, então é que falta mais tempo na caminhada. O tempo resgata o desengano, e no passo certo sobre o passeio torto, vai deixando para trás as ilusões, os devaneios, um pouco dos aromas e cheiros, vai desnudando o peso dos ombros, desmarcando reencontros. Como o mar que arredonda a areia, o tempo nivela as paixões.

O tempo preciso para transformar o passado em histórias, para fazer brotar musgo na pedra, aquecer o coração como se fosse folhas secas, caídas no outono, o fim que tudo terá um dia. E também passar, não deixar senão pegadas que o capim cobrirá. Perder seu nome no vento, esquecer o nome de quem foi uma história no seu caminho e hoje, tendo permanecido naquele caminho, você sequer lembrar em qual curva, sob qual árvore, em que momento foi essa história.

Hoje, como quem se embriaga para sentir prazer, eu tomo o tempo em goles largos, espalhados por toda a boca e língua, tomo não para esquecer, dado que não sei, mas para reviver o sonho possível, a beleza palpável, que toda embriaguez recria. Tomo para recontar uma nova fábula de mim mesma.


domingo, 3 de abril de 2016

o que é felicidade?

Eu não sei o que é felicidade. Quero dizer, não sei conceituar. Parece que é daqueles sentimentos inomináveis, exceto pela própria palavra que é seu nome. Sei o que é na pele, quando ela fica tão sensível que a mais leve aragem faz levantar os pelos todos e esquentar a nuca. Sei o que é no peito, quando faz um aperto, uma falta de ar, parecendo um baque, como se de repente, tivesse fechado a porta, batendo. Sei o que é na boca, quando fica seca e não passa com água alguma. Mas sei também o que é quando fecho os olhos e lembro. Detalhes, aromas, sensações.

Felicidade parece ser um fragmento, não uma peça toda. Às vezes se faz representar como monólogo, outras como teatro de arena. E ainda há aqueles momentos insólitos de picadeiro. Nos outros dias, é a casa aberta para a paisagem. O movimento do sol desenhado na sua sombra. Nuvens que passam, pássaros que piam, ventos que chacoalham folhas e derrubam as secas pelo chão. E, muito a miúde, é o silêncio.

O silêncio calmo do fim do dia, sem zunido de insetos ou qualquer coisa. O silêncio que faz o peito, aquietado repentinamente, como se fosse parar e fosse bem perto mesmo de parar, mas, se você observar bem, verá o leve arfar do abdómen descendo e subindo.

Sim. Eu antes pensava que felicidade fosse festa, gargalhadas, uma mistura de champanhe com olhares explícitos. Que fosse só assim, uma expressão ostensiva e radiante, difícil de controlar e de conter. Como quem ganha na loteria sozinho. Hoje eu sei que não há felicidade sozinha, mesmo quando o momento é quieto e intenso. A felicidade é contagiante como vírus em vias aéreas. Não dá nem para falar perto.

Hoje sei que ela pode ser tão minimalista que passa despercebida se você não estiver atento. Você abre um livro e lá está, passeando pelas palavras, pulando páginas. Você joga um tempero que fica grudado em parte nas pontas dos dedos e o perfume que sobe melhora sua vida por alguns instantes. Você olha para o rastro que deixou no chão, ora pegadas marcantes e firmes, ora oscilantes e leves, e sente um arrepio percorrer a espinha: você cresceu. Desgrudou de várias máscaras confortáveis e seguras que ao longo da caminhada vestiu. Identificou, no meio de tanto espelho refletido nos olhos dos outros, a sua própria imagem, real ou ficcional, mas a sua cara. Cantou afinado. Nadou ritmado. Pôs sua melhor roupa e perfume e sentou para jantar, sozinho, uma comida maravilhosa.

Dá para perder as contas dos momentos em que a felicidade esteve sentada no seu colo: o gato pulou brincando na bolinha de papel; você fez pipoca com manteiga; tinha uma cerveja escondida no armário; um chocolate meio amargo; chegou uma mensagem no seu celular; entrou um dinheiro que você já nem esperava mais; deu para chegar no horário para o cinema; os amigos o convidaram para uma festa; havia uma lua imensa lá fora; o chuveiro estava maravilhoso; você dormiu como um anjo. A muda que você plantou, pegou; a alface ainda deu para aproveitar bem; você viu passar de novo, sem querer, aquele carro, com aquela pessoa que salvou seu dia só de passar. Aquele filme que você adora reprisou pela enésima vez.

Agora, e quando nem tudo saiu como você previu? O relógio não tocou; o carro não pegou; faltou sal no arroz, ficou duro e papa; os amigos não chegaram. Como sentir-se feliz em circunstâncias tão desapontadoras ou frustrantes? Dá, ainda assim. A fruta azeda tem mais sabor, o amargo realça o doce. Não tem como ser feliz sem haver uma referência na normalidade, um contraponto na rotina. No mundo dos contrastes, a felicidade também corre pelos vales para chegar ao mar. Então, a vida é cheia de momentos felizes. Basta abrir os olhos e deixar-se tocar.

sexta-feira, 1 de abril de 2016

nem caça, nem caçador

Agradeço à cientista que fez um vídeo demonstrando sua teoria de que nós, humanos, diferenciamos nosso cérebro devido ao fato de que aprendemos a cozinhar. Cozinhando o alimento, e, portanto, facilitando a digestão, ganhamos tempo de vida. Não precisamos passar o dia todo pensando no que iremos comer e nem passamos o dia todo digerindo o que ingerimos. Talvez, se ela estiver certa, esse fato combinado com o próprio desenvolvimento do córtex cerebral tenha inibido uma característica da maioria dos primatas: ser predador.

Hoje não mais. Competidor sim, mas predador não. Competidor quase ao ponto de ferir, violentar, construindo casas umas sobre as outras, perdendo a capacidade de nos sensibilizar com o outro, deixando de ser empáticos senão com nossos familiares. Mas predador, nesse sentido exato, não. Está certo que a consciência adquirida ainda perde um pouco desse tempo ganho justificando atitudes beligerantes, um tanto guerreiras e onipotentes. Usamos nossa capacidade desenvolvida para explicar nossos gestos mais aberradores, como matar animais, desmatar florestas, manipular outras pessoas, usufruir de tudo que encontramos pela frente sem nos preocupar senão com uma saciedade obsoleta. Até a miséria no mundo é forjada. E poderia ser redimida com um esforço extra do cérebro.

Desenvolvemos o córtex cerebral num ponto especialíssimo, cozinhando nossos alimentos e deixando-nos com tempo para viver sem pressa, sem tensão. Comemos o que precisamos sem necessidade de ficar vigiando se algo mais forte virá nos roubar ou nos devorar. Estamos no topo da cadeia evolutiva, auto proclamado o mais desenvolvido. No entanto, paralisamos diante de uma abordagem mais direta, de uma crítica certeira, qualquer coisa que fuja ao controle.

Talvez, em muitos momentos, tenhamos dificuldade em sustentar o olhar no olhar do outro, coisa de predadores. E de não darmos respostas quando nos sentimos ameaçados, seja por um gesto, seja por uma carta, uma palavra. Até quando essa ameaça possa advir de um sentimento interno, pequeno, de impotência, de fragilidade. Aliás, ser frágil ainda é um problema para esse ex-predador que não virou de todo a chavinha. E que não sabe lidar completamente com adrenalina descarregada no sangue.

Temos medo de ser tolos, de ser inocentes, de rir por bobeira, de parecer bobos. Temos aversão pelo lado feminino da vida, de esperar, de sentir, de perder. E perder é tudo aquilo que nos frustra: do desejo não atingido ao tempo perdido no investimento mal sucedido. É muito difícil admitir a frustração em não atingir objetivos ou não realizar desejos. É quase impossível. Mais fácil aceitar o fato do que admitir o motivo. Aliás, nada é fácil em matéria de frustração. E nesse bololô entra não aceitar o fim da vida, o fim do prazo, o fim de qualquer coisa.
É engraçado pensar que foi justamente um gesto tipicamente feminino – cozer e nutrir – que nos possibilitou fazer essa trajetória de desenvolvimento cerebral. E, portanto, nos afastando desse ser predador original. Mesmo que falte muito para o equilíbrio da balança, o passo foi dado.

Quanto a mim, gosto de pensar que a evolução me atingiu bem mais que um córtex, ou na quantidade de neurônios, herança ancestral e benevolente. Que, embora eu mesma tenha medo de e-mails recebidos, com interesse na minha vida, e que tenha me quedado paralisado sem resposta, na surpresa, como um confronto, um olhar que me espreitasse, eu gostaria de saber de mim que tenha evoluído para uma pessoa melhor. Melhor para meus próprios padrões. Melhor do que eu pudera sonhar a vida toda que já vivi. E usar meu corpo e emoções para realizar o que esse cérebro consegue ministrar. Agir como um ser diferenciado no planeta.

quarta-feira, 16 de março de 2016

Pela Paz

Hoje, finalmente, tomei a primeira cachaça do ano pela paz mundial, pela erradicação dos preconceitos, pela intolerância, pela paz de espírito. Tomei com júbilo. Com fervor. Em prece, em agradecimento, em sinal de reconhecimento pelo que a vida me dá: amplitude, liberdade e horizonte. Hoje, depois de ter escorregado muito subindo a montanha, alcanço o topo, onde o limite do meu olhar é o céu, e, abaixo, uma terra verde de encosta generosa.

Sim, brindei com cachaça boa. Daquelas que fazem esquecer todos os percalços do caminho, todas as pedras em falso, todos os falsos paraísos que ficaram para trás. E não pelo excesso, mas pelo prazer. O prazer, assim como o amor, faz neutralizar as dores, faz rir os dramas e, sobretudo, deixa um sorriso duradouro no rosto.

Não é mérito da cachaça trazer esse prazer. O prazer vem de haver ultrapassado os limites. As fronteiras auto impostas das crenças restritivas. Você pode acreditar por muito tempo que basta retirar as pedras para o rio virar mar, mas antes terá um longo percurso a percorrer.

Hoje, no marco da minha pegada no chão, eu comemoro. Fiz pastel de meia cura com tomate. E sopa de lentilha. Cardápio que me regozija apenas pelo fato de ser o que eu queria comer. A paz é isso. É chegar ao ponto de equilíbrio entre o que há para comer e o que você quer. Basta ser flexível. Basta abrir a geladeira e aceitar.

Embora você possa dizer que paz é muito mais e vou concordar. Isso é muito mais, também. Soltar os grilhões que prendem seus pés ao chão, saltar da imaginação leve para o sonho, como um gato, transcender a nuvem, a foto do celular, ir além do olhar, isso é paz.

O mundo gira sem pressa quando você sabe para onde vai. E o melhor de tudo, gira na mesma direção que você seguir. A isso, brindo. E aproveito para saldar os novos ventos, e os novos eflúvios, todo o ar que me salva de ter estado sufocada pelo simples fato de paralisar. Às vezes é difícil dar um passo quando tudo em volta não nos atende, ou até mesmo quando tudo no entorno é duro como pedra ou frio como a solidão. Dar o passo de acreditar que pode ser diferente, ainda que precise mudar o jeito, o traçado, ou o olhar.

Não dar o passo para deixar de doer. Parece absurdo. Mas às vezes, a dor faz crer que seja necessária, como a margem do rio que limita e restringe seu acesso. Até você entender que seu destino não é ser rio, mas nuvem.

sexta-feira, 11 de março de 2016

Não Levarei Nada

Não. Não tenho como devolver o que levei. Sobretudo, não tenho como recuperar o tempo que levei para entender que não havia saída, que não havia opção, e todas alternativas eram um erro. O tempo que o espetáculo ficou no ar, fazendo estripulias num trapézio sem rede embaixo. Que meu coração ficou em suspenso, querendo acreditar que, se houvesse amor, bastaria.

Talvez não houvesse. E minha teoria continua válida. Bastaria amar, amar verdadeiramente acima de todas as incertezas, de todas as coisas fora de lugar e da ordem. Amar, independente das datas, dos dias marcados, das regras. Amar nos salvaria.

Talvez o amor fosse pouco. Precisaria mais energia ao acordar, mais disposição ao levantar, mais alegria no passar do dia. Precisaria parar de chover, e toda lama secar. Os cães deveriam ficar quietos, e o guarda-roupa precisava deixar de cheirar, o mundo pararia de girar para acertar o passo errado. O meu.

Quando o amor é pouco, todas as diferenças são grandes demais para serem superadas. E o que é igual, não extasia. As noites não descansam, os dias não alegram. Sequer a beleza das árvores é notada no entardecer, sequer o caminho encontra um rumo de prazer. As flores desabrocham para nada.

Mas o que é pouco? O que é bastante? Pouco é o tijolo que não chega a erguer a casa, que não sustenta o telhado. Pouco é o ficar esperando que um trem pare por aqui, mesmo que não haja trilhos, mesmo que não haja estação. Pouco é o amor que espera pelo outro, sem dar sinal do que quer. Pouco é aquilo que não mata a sede, não apetece, não desmancha na língua, não deixa as pálpebras descerem lentas e confiantes.

Agora, pouquíssimo é o amor que mendiga promessas, gestos dramáticos, e, acima de tudo, que precisa de sacrifícios. Não atitudes abnegadas e generosas, mas sacrifício mesmo, com dor, com peso e sangue. O amor que cobra tributos e impostos, que cobra pedágio.

Por isso, porque sei o que levei, e levei muito pouco, também sei que não deixarei muito. Não deixarei rastros pela casa, nem meu olhar ficará gravado no vidro da janela. Talvez um livro me aponte o dedo, ou talvez uma árvore plantada no meio do quintal ainda possa dar muitos frutos, frutos que não colherei, mas que serão sumarentos e doces. Talvez coisas que não me chamem pelo nome, que poderiam ser de qualquer um, fiquem pelos porões, nas gavetas, ou em vasos espalhados por todo lado. Mas meu coração não deixará parte alguma. Não ficarão cacos do que se partiu. Nem sob o tapete.

A vida não parou para eu nascer, nem pararia para eu descer. Eu pulei e saí nadando, quase sem fôlego, quase sem acreditar na água fria. O bom do frio é que ele faz você se mover, sair do lugar cômodo, tentar alguma coisa diferente. Sim, porque repetir é demais. Agir como se estivesse sempre à frente da mesma pessoa ou situação, em confronto com o mesmo inimigo, dançando com o mesmo par, é, dentre tudo que posso viver aquela que mais me cansa, me desanima, me faz cair os braços e os ombros, sem tentar segurar o pão que estava ali antes.

Eu vou seguir assim, sem levar nada por ora. Sem levar sequer a lembrança do que foi, maculada que está acorrentada com cadeado sem chave, para ser lançada ao fundo do rio. Um pouco da lama da estrada vai junto. E a chuva, que cai sem trégua, vai lavando todas as marcas, todos os registros e sinais que poderiam indicar quem sabe uma porta possível para um depois. Ao invés, pisoteada com a lama, a grama encobre os passos e as direções. Vou rumar para longe. Olhar para o horizonte, contemplar a paisagem renovada. A hora é do vento levar, de se deixar levar.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Mudar é preciso

De fora para dentro, vou renovando minha vida. Nova casa. Coisas e coisas do antigo recicladas – não precisa senão de coragem. Caixas de papelão dispensadas. Roupas. Minhas células renovadas no corpo. Nada ficando para depois. Nada que me ocupe espaço. Reduzi a quantidade de paredes. O quintal é do tamanho para andar nele, do tamanho que precisam cinco cães. E varanda para olhar as montanhas, um horizonte tornado mais longo, tornado mais silencioso e fresco.

Enquanto dispenso coisas, outras chegam no lugar. Um gatinho novo para olhar com aqueles olhos de perscrutar a alma – todo gato perscruta. Galinhas do vizinho passeando solenes no meu quintal. E bois ou vacas em visita constante ao lado da cerca. Pássaros desconhecidos fazendo sons estranhos à noite. E, para variar muito, mas muito mesmo, minha ordem nas coisas de dentro. Não sei decorar, meu senso de beleza é esquisito, sou solta demais. Misturo a dança da criação de shiva com kombi e fusca de brinquedo. Quase irreverente, quase mau gosto. Quase um erro de harmonia, mas não é. Agora é minha casa. O meu jeito é só um outro jeito.

A névoa não, ela continua a invadir os espaços, entrando lentamente, penetrando as árvores, o vale do entorno. Brumas. Por trás delas, quantos seres devem estar festejando a vida? Quantos não devem aproveitar que a nuvem desceu à terra para viver um dia no céu? O verde escurecendo do entardecer nevoento me fazendo feliz. Outra vez.

A felicidade é assim, uma névoa que entra no quintal e muda tudo. Muda o olhar. Muda a distância de tudo, o tamanho. Relativiza a importância, troca a ordem. Amacia a língua, o toque. Dá vontade de abraçar.

Hoje, como se fosse um aviso da natureza, choveu. Choveu muito. Desde cedo. Como precisava dessa chuva. Uma chuva de chuveiro, mansa e contínua. Foi como se lavasse o meu rastro. Foi como se apagasse os sentidos que já não têm mais lugar. Lavar de escorrer, de levar para a terra, penetrar no solo, carregando o peso de outras vidas para além dos pés, para além das sombras. Chuva fria, que arrepia, que se faz presente, impossível de não ser reconhecida. A alma precisa de uma dessas a cada temporada. Para ficar pronta para uma próxima.

E sempre há novas temporadas. Dá para tornar a vida uma aventura apenas seguindo em frente, sem se virar para trás. Só com coragem. E a coragem, o que é senão confiança? Caminhar à beira de si mesmo, ousar olhar para dentro, para o abismo, sentir vertigem e ter um frio na barriga, sentir a morte chegar, correr riscos. Morrer de medo. E, apesar do insólito, da falta de sentido, apesar de não entender o que está acontecendo, apesar de tudo contra, de todas as portas fechadas, de toda dor, toda impotência, apesar do apesar, seguir em frente. Abrir caminho onde falta direção. Romper os obstáculos. Ter tempo de pensar, mesmo quando o que há para fazer é pular para a outra margem. Aventura pura.

E agora, que entrou em cartaz um espetáculo de porta aberta, de teatro de arena, de espaços amplos, de possibilidades desconcertantes, de rimas fáceis e divertidas, agora, que o tempo de chuva é apenas uma limpeza para o azul que virá, agora, exatamente nesse instante, estou com o bilhete na mão, com o pé no palco. A luz em mim me ofusca um pouco. Posso entrar tropeçando, mas recupero o prumo, a proa. E me encontro.

Para fugir dos monólogos, busco aqueles que entendem minha língua. E para melhorar meus diálogos, procuro quem não entendo. Às vezes acerto, outras não. Quando não, é duro. Difícil de aceitar e de dormir. Eu sou do lado luminoso da vida, o palco, aplausos, músicas, palavras, pessoas. Prefiro o sol à lua, mas como ela é linda. Ainda assim, algumas vezes, preciso seguir sozinha, no escuro ou sem fundo musical. Nos contrastes, a vida vai se revelando.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Amanhã vai ser outro dia

Eu não estou preparada para a perda. É sempre um impacto. Preciso de tempo para mudanças. Preciso de sentir um pouco antes de conseguir pensar. Olho para o vazio que ficou e paro. Meu coração vai aos poucos desacelerando e ficando normal. Meus olhos deixam de olhar de um lado para outro e acalmam. Deixo de segurar o ar no peito, um medo sempre enorme de sufocar. Sento. Espero a saliva voltar para a boca e afinar a língua. Encosto. Os ombros caem um pouco até ficarem no lugar. Respiro fundo.

Perder alguém é como entrar num túnel longo e curvo, onde não há como ver a luz do outro lado. É como mergulhar no mar de noite: escuro e silencioso. É como ficar para trás quando todos se foram. Sinto-me como se tivesse sido traída, abandonada, esquecida. Fiquei. Perdi o trem. Perdi o voo. Perdi o vento que anunciava e me anteciparia se eu tivesse ouvido. Perdi de entender por quê. Tudo fica colossal e descomunal. E eu pequena no meio de tudo.

Não. Não sei perder nada nem ninguém. Eu espero ainda por um tempo que tudo volte ao normal. E o normal era como era. Eu não me conformo, não me conforto, não me convenço. Procuro um sinal, procuro um recado sobre a mesa, um bilhete de adeus. Procuro atrás dos móveis, debaixo do tapete, algum motivo, algum traço perturbador que me indicasse, me prevenisse, que me dissesse apenas que fui eu quem não viu, mas estava lá. Estava lá o tempo todo. Todos os semáforos vermelhos, todas as portas fechadas, todas as ligações não respondidas, não retornadas, todas as vezes que minha mão vagou no vazio estendida.

Ou o inesperado, aquilo que leva para longe os braços do abraço. Aquilo que irrompe pela porta sem ser chamado ou querido, e que afugenta cumprimentos, que corta como faca a carne desavisada. Que leva pra nunca mais o olhar, como névoa que encobre o que havia. E esconde a presença. Deixa apenas a lembrança, tênue, da alegria que vivi.

Ao menos isso. O que vai leva consigo os momentos ruins, desconjuntados, destorcidos, todas as situações de desencaixe. Só fica na lembrança o que deixou marcas boas, o sorriso repentino, o olhar de aconchego. Ficam as tardes de sol, os passeios em que o silêncio refletia cumplicidade; ficam cotidianos de filmes e livros e jantares e amigos. A vida, enfim. O bom da vida.

Então, nesse passar do tempo, o vazio vai se preenchendo de novo. Não mais com o movimento de outrora. Mas com fotografias vivas das emoções que ficaram. Ficaram retidas na retina e que apenas uma pincelada inadvertida de alguém pode mostrar. Ou ficam presas na pele e talvez, numa noite de leitura, algumas centenas de palavras espalhadas por um pacote de folhas de papel possam demonstrar.

E nesse tempo, um novo vem habitar os minutos que contam. Uma nova lufada de vento. Uma tempestade que arrasa tudo e deixa o vazio limpo, desobstruído. Ou um rio crepitante como uma fogueira, mas sempre correndo. E, de repente, como se nada tivesse acontecido, percebo que a vida continuou, intacta e conecta. Que as pessoas seguiram seu ritmo e inclusive eu, que pensei que morreria, que dramaticamente chorei e sofri, estou firme e forte olhando pela janela em busca do novo horizonte.

Eu não sei perder e por isso, a cada perda, ainda sinto falta de outra forma de resolver as dificuldades. Ainda penso que existe um jeito de contornar e se restabelecer. Apenas a morte fica ali me acenando dizendo para que tenha calma. Tudo morre em algum momento. Só o que já morreu há muito tempo mantém-se de pé imutável. A vida passa. A vida muda. A vida revive, semente de uma nova planta. De um novo amanhã.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Acreditar é melhor que sofrer

Eu acredito em Deus. Aquele que criou todas as formas de vida, as pessoas que concordam comigo e as que discordam, aqueles que eu prezo e os que nem tanto. Que criou as pessoas que um dia passaram pela minha vida fazendo dos meus dias alegres ou tristes, intensos ou leves, e dos quais eu também participei permitindo que fossem o que queriam ser. Mesmo nos momentos em que eu não entendia nada. Mesmo naqueles em que eu sabia tudo.

Acredito em deus. Que ele, ao criar todos os personagens que interagem nessa peça, o fez sem concluir o roteiro. Permitiu de forma bastante original que os atores mudassem cenas, alterassem falas, criassem suas próprias marcações no palco. Um deus que me deixa errar o momento de entrar. Me deixa errar o passo. Que faz vistas grossas para meus desatinos, meus erros de percurso. A mim e todos os outros que contracenam. Não adianta você olhar da coxia e achar que está tudo errado. Ele não interrompe a sessão. Ele não edita sozinho depois.

Sim, acredito num deus da mesma forma como acredito em cada célula do meu corpo, em cada neurônio que responde imediatamente a cada pensamento que sequer percebi que estava tendo. Como acredito que haja um universo imenso, repleto de mundos e seres que os habitam, seres diferentes de mim, que não choram ou riem, ou que temem e têm frio. Como há pessoas diferentes também onde vivo. Pessoas diferentes frente às suas respostas. Mas não importa, porque não tem um gabarito. Não tem um modelo.

E porque acredito em deus sei que tenho uma bússola interna me indicando a direção. É certo que nem sempre eu sigo. Nem sempre eu aceito. E, na maior parte das vezes, não entendo nada. Não é uma decisão. É apenas um sinal. A estrela polar. Uma constelação. A posição do sol. Algo que me aponta onde estão as traves para que eu chute a bola.

Mas e se deus não existir? E se esse for mais um dos meus enganos? E se não sou mais do que uma peça num grande quebra-cabeças que despencou da mesa por um braço descuidado? E se toda essa inteligência que vejo no mundo não for senão um reflexo torto do que meus olhos querem ver? Uma ilusão que chamo de realidade, um sonho que se apresenta como verdade?

Se deus não existir, repentinamente todo o meu mundo se resumirá em peças aleatórias que se encontram por acaso. Não desenham gestos, não encenam dramas. Não são mais personagens de coisa alguma, dado que não há roteiro, mesmo que incompleto, a ser criado. E quem sou nesse emaranhado de fios e teias caminhando ou parando pelos nós é apenas uma célula com um fim em si. Um fim que recrio a cada instante, a cada passo que dou. Ou não.

Posso escolher haver ou não um deus, ser ou não uma criatura co-criadora. Posso escolher essa ou aquela peça para encenar, esse ou aquele personagem mais simpático. Posso achar que faço escolhas inclusive. Tudo isso porque penso. Porque tenho uma mente autoconsciente. E isso não é nenhum prêmio porque fui boazinha a vida toda, porque não fui. Não sou melhor que qualquer outro animal do planeta. Então, quando volto a mim para me deparar com um ser dentre milhares em milhares e milhares de planetas num universo que é um dentre quantos?, então naturalmente me tranquilizo e vou dormir bem. Em seus braços.

domingo, 17 de janeiro de 2016

Procura-se uma casa

A casa que procuro é uma casa na roça. Não é difícil querer uma casa na roça. A roça muda todo dia: a cada estação é de uma cor. Tem poeira e barro se revezando. Tem pássaros cantando. Deve ter uns 50 tons de verde. Ou mais. Tem o frio quando é frio e tem calor quando é calor (verdade, não é um cenário). E quando esse campo é uma montanha, então, tudo fica ainda mais divertido. Os pinheiros são altíssimos. Neles, esquilos sobem e descem numa destreza que encanta. As copas das árvores se encontram contra o céu azul, desenhando rendas ao crepúsculo.

Nessa montanha está minha casa me esperando. Uma casa quentinha no frio e fresquinha no verão. Bem iluminada, que suporte cães e gatos no quintal. Não me importo se alguma galinha do vizinho vier me visitar. Quero uma casa simpática, cômoda. Que goste de receber amigos e onde meus amigos gostarão de vir. Com uma cozinha boa, espaçosa, que caiba uma grande mesa ao redor da qual todos se sentarão para conversar antes de comer.

Minha casa tem lareira onde crepita a lenha fazendo uma chama brincante. O fogo é da mesma natureza da alma, então, na sala, o calor inspira poesias e amores incansáveis. Enquanto isso, lá fora pode a chuva cair e o frio branquear tudo. Pode fazer um breu nas noites sem lua ou silêncio de arrepiar. Podem os insetos ficar batendo na lâmpada, no vidro da janela, a vida toda que há quando escurece bem e tudo acalma. O fogo do coração não deixará que nasçam flores amarelas e medrosas no peito.

Dela, nos dias de azul infinito, verei passar um anjo escondido sob a forma de nuvem, magnífico. Cavalos passarão ruidosos na estrada, acompanhados de cães ruidosos. E sobre eles, homens e mulheres conversarão sobre a vida que passa olhando de mais em cima, por sobre os muros, sobre as cercas vivas, coloridas. Verei um olhar se esgueirar para dentro do meu quintal, buscando o cheiro do jasmim florido.

Essa casa, que procuro para viver a felicidade do agora, está pronta, ou está ficando pronta para mim. Está na urgência dos que têm sede e que sabem onde encontrar água. O vento já está varrendo o seu telhado de todas as emoções impregnadas e esquecidas de outrem. O sal da terra seca todos os animismos por ventura perdidos pelo caminho. O orvalho da manhã caído na grama e folhagens começa a preparar novas vidas, germinar o novo. Tudo para que eu leve o fogo da alegria para iluminar cada canto da casa.

Minha casa tem paredes que esperam por meus livros. Livros que contam histórias dessa vida e da outra. Livros que me fazem viajar para outros mundos, outros olhos, para além da paisagem da janela. Paredes cujas prateleiras esconderão a cor da pintura desenhando em seu lugar as cores das especiarias.

Ela tem dois quartos para que eu possa receber amigos buscando a aventura da montanha. Amigos que me privem de sua companhia para conversas da madrugada. Ou para um café da manhã na varanda. Ou apenas para registrar na minha vida mais um dia em que fui feliz.

Se você ao andar por essas estradas reconhecer essa casa, se você souber onde ela está ou como posso encontrá-la, por favor, me avise. Mande-me sinais de fumaça, acenda um laser no telhado, estoure rojões no quintal, empine uma pipa vermelha bem alta me apontando o local. Me avise que eu vou morar nela. E depois, venha tomar um café comigo.


O Rochedo e o Mar

A vida toda bateu no rochedo, o mar. Alguém pode dizer “que horror”, outro pode pensar “que paixão”. E se bem que no passar dos dias ninguém perceba nada, diminui o rochedo e aumenta a areia. Quanto ao mar, esse continua batendo.

Qual o sentido disso? Nenhum, exceto que eu paro para pensar nisso e me emocionar. Me emociona toda persistência e toda a resistência que a cena tem. E a espuma. Volátil, efêmera, perfeita no voo estraçalhado que percorre. E o som, repetindo e repetindo o vai e volta sem fim. Mas também o silêncio que preenche os espaços entre uma coisa e outra. Tal como o amor.

O amor é o silêncio entre uma onda e outra a quebrar na rocha. O amor é o momento que não tem movimento. Que não tem pensamento. Que não tem. O amor não tem. Quem pensa que tem amor, só pensou. Amar é não pensar. É um deixar-se ser. Quando o meu deixar-me ser encontra com o seu deixar-se ser, o amor nos tocou.

Já me fiz crer que amor fosse como um presente que se recebe por algum merecimento. Hoje sei perfeitamente que ele é um fio estendido sobre um precipício pelo qual tento andar. Precisa de equilíbrio. Não o equilíbrio do sóbrio, mas do ébrio, isso sim. Um andar sem olhar para o perigo, sem encarar a possibilidade do não. Precisa querer mais chegar ao outro lado do que ter medo do fim embaixo.

É por isso que o desejo serve ao amor. Se não houver desejo, a construção do amor é apenas um projeto burocrático. Cheio de assinaturas e identidades e pouco significado. O desejo faz de cada onda a energia necessária para manter-se sólido. Ou parecido com isso. A ilusão também serve ao amor. Para que ele possa amanhecer todo dia em festa, com o assombro do sobrevivente.

Se, no entanto, você tentar aprisionar o gesto, se ousar querer entender o olhar, um leve quase imperceptível levantar do canto dos lábios, então, você estará prestes a perder o amor. Ele escorrerá do peito até o dedo anelar gota a gota até secar. E restará apenas saudade ao final de tudo. Ou, se nem isso puder restar, no final de tudo você nem se lembrará do que ficou para trás, do que perdeu.

Porque tão insano como o mar bater no rochedo, tão surreal como o silêncio que segue a onda, é querer entender o amor. Amar é ritmo, não é o que. É a luz que projeta sombras na parede, não importa se você só veja terror ou diversão, se tremula, esconde ou envolve. É uma luz intocável. Que cega. Cala. Despe. Abraça. E só assim pode enfim penetrar delicadamente a pele. Não dá para queimar etapas.


Sim. E o amor não ensina nada. Não queira aprender com o amor. O amor é. No tempo e no espaço. É. Não conjuga pessoa, nem nada. Por isso, não espere amar para ser amado, não espere nenhuma condição especial para fazer amor. Amar é o mais intransitivo dos verbos. E ele pode existir independente de sua declaração. Mas, por favor, não deixe de declarar.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

Não faça nada por mim

Depois de escurecer repentinamente, e de cair uma chuva mole e fina, depois de parecer que não haveria mais dia seguinte, e que tudo, enfim, se quedou silente, então pude pensar um pouco, ouvir o coração batendo no ritmo da respiração calma. Ser o que sou. Independente. Eu. Inteira. Sem tempo e sem explicação. Desprovida de justificativas. Apenas. Simples. Eu.

Não nasci para ninguém. Ninguém nasceu para mim. E, no entanto, tantos em mim vivem em plena harmonia e alegria. Tantos sem pátria, sem casa, sem nada. Não me traga nada. Não me traga nem respostas. Não me dê o que não pedi. Pode ser uma surpresa boa. Mas pode não agradar. Conte com isso.

Eu vou passar. Vou ser como o vento que nem disse a que veio. E já foi. Vou me entregar como quem pula na piscina de água translúcida. Já segurei a respiração. Já estou de olhos bem abertos. Em busca do silêncio profundo que faz tanto bem. A falta da gravidade. É isso que quero hoje. Nada grave. Nada pesado. Nada para amarrar meus pés como se houvesse apenas um jeito certo de ser. Deve haver um milhão de formas para viver a mesma vida. E não sei em que número estou, quantas vidas já se passaram e quantas tentativas ainda me restam. A vida que se renova como uma espiral.

Eu quero a mão que aperta a minha sem pressa. Quero sua busca da minha pele. Quero a boca que me diz amor. E depois pode ir. Pode ir dormir. Pode me deixar. Que fique o tempo que precisar ficar para haver essa entrega. Esse encontro. Esse momento único em que não há mais nada no mundo. Um istmo de segundo em que tudo fica em suspenso e a vida é inteira, toda ali, total. Eu quero a cumplicidade que não violenta, que não exclui, que não é restritiva. Que é justamente cumplicidade: o dobro. Quero tudo.

Já fiz todos os papéis na peça. Agora quero ser a peça. A dança, o quadro. Não quero mais dividir nada. Não quero regras como se a vida fosse um jogo. O jogo acabou. Não procuro relações tipo mar-e-praia, um entrando e o outro encolhendo. Não me interessa saber se existe vida na praia. Se existe vida no mar. Quero o ar solto e frio e quente e úmido e seco e – antes de tudo – volátil e desapegado que vem da maresia. Quero que o amor seja assim, brisa apenas sugerida pelo movimento dos cabelos. Me faz sentir o toque delicado de seus dedos.

Não vou fugir. Diante do rochedo – ah, a terra que ilude solidez – vou apenas seguir em frente, porque o que desejo está no topo e não no chão. Porque o que faz da vida movimento não é a permanência e sim o deixar ser. Ser o descontrole e ser o amparo. Ser o peito que acalenta e a mão que abana um adeus. A vida é onda. Vai e volta e desbanca a areia no fundo. Carrega junto o que pensava dar pé.

Pode escurecer, pode acabar a luz, podem tremular as sombras das pessoas na luz de velas. Pode ficar frio, não ter comida, acabar o dinheiro. Pode ser que eu tenha que devolver o brinquedo, ir embora mais cedo, carregar tudo que é meu, ficar de castigo. Pode até ser que tudo seja em vão e vazio, inútil, que tudo se perca, que não reste nem migalhas pelo chão para registrar a passagem. Se, no entanto, minha mão estendida alcançar a sua, se um abraço preencher todos os espaços, se o ar que me restar for o que você exalar, assim mesmo, saberei que vivi. E amei.

Não faço promessas. Não faço perguntas. Acredito. No meio do sobe e desce dessa gangorra, vou ficando só enquanto divertido. Enquanto encanto de criança. Porque criança ri de tudo e de nada. Criança dá a mão e acredita que estará bem. Criança se joga nos braços que se abrem e chamam para si, de olhos fechados, confiantes. E abre a boca para o alimento que vem. Quero esse amor criança, que se debruça perigosamente para o outro e que, não se esquecendo nunca de si mesma, se perde no outro. Quero a grande brincadeira de ser o outro do outro. Enfim, hoje, quero que o amor seja uma brincadeira de roda. Sem tempo. Sem medo. Novo.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

Partir

A gente tem que saber partir. Arrumar as coisas todas diligentemente, com calma, com decisão. Deixar para trás aquilo que não serve mais, não cabe mais, não pode mais. Carregar conosco apenas o que é essencial, o que faz sentido. E trocar os sentidos se preciso for. Buscar novos significados nos velhos que importam, e buscar novos em outros lugares, em outros caminhos. E, sobretudo, não olhar para trás com o sentimento de que deixa uma parte de si naquilo que não dá mais.

Por mais que tenha feito as malas e partido inúmeras vezes, por mais que tenha procurado novos rumos e novos horizontes, e que saiu de terras que nunca mais pisou, partir é partir. Romper. Cindir. Existe uma natureza quase selvagem dentro de nós que não suporta a separação. Que não quer se mover, mesmo quando há uma pedra no sapato, quando tem goteira para todo lado ou quando não tem luz, não tem água e quase todos já se foram. Uma inércia, talvez, ou um apego. Porque nem tudo é completamente ruim. Pode não ter o que comer, mas a música é boa. O barulho é infernal, mas a conversa é ótima. A liberdade não existe, mas o abraço é forte.

Partir é a última coisa que pensamos quando tudo o mais não funciona. Você já tentou abrir a mão e fechar o olho, esperar do lado de fora até que o silêncio reinicie. Já tentou fazer comida para passar a raiva, pagar as contas para ver um sorriso, mesmo que amarelo, mesmo que rápido e superficial. Deixou o carro virado para sair fácil, pôs comida para os gatos, para os cães, aguou as plantas. Mas faltou alguma coisa ainda, algum detalhe escapou, algum efeito especial não deu certo. Faltou você falar a palavra mágica, fazer o gesto explícito ou teatral, abrir a cena de forma triunfal. Ou quem sabe ainda, o contrário disso, o contrário de tudo, faltou você ficar quieto, não fazer nada, ficar invisível. Você não sabe, nem eu.

Partir nessas circunstâncias é um pedido de socorro. Não bastava abrir a janela em busca de ar, precisava tirar a camisa, tirar a roupa, correr nu pela estrada, correr sem parar, sem olhar, sem pensar. Não foi o suficiente tirar os sapatos, também precisava ter tirado alguns vícios, alguns vocábulos, precisava ter esquecido a senha, aquela que sempre esquecemos quando o tempo afoba, e agora, no escuro do quarto, no meio da madrugada, está lá brilhando na memória, inútil.

Partir. Partir. Partir.

Vou esperar o horário do trem. Vou deixando tudo arrumado. Vou deixar a chave debaixo da porta. Vou, de novo. De novo, meu deus. De novo e de novo e de novo. Assim, vou acabar aprendendo a ser circense. Talvez me torne acróbata ou mágico ou domador de leões. Será que um dia aprendo a andar sobre o fio esticado no meio do salão? Sem rede embaixo? Com o rufar de tambores anunciando o perigo? Mas aprendo para quê?

Existe uma felicidade clandestina e sub-reptícia nas rotinas cotidianas, e nós sempre procurando a Grande Felicidade. Existe uma alegria frugal e leve do conviver, e nós ainda em busca do teatro de arena, do coro que traz consciência, da voz empostada. Parece simples, parece até natural, mas no fundo, é um exercício. Não falo de uniformidade porque não tenho sequer na escolha dos pronomes. Falo do reconhecimento de tudo o mais que deu certo diante de tão poucas que não deram. Refiro-me ao movimento, ao gesto mínimo do olhar, aquele que se perdeu e ninguém viu, a palavra que ficou na língua, e precisa do beijo para entender. Um abraço. Precisa apenas de compreensão.

Talvez eu não saiba traduzir compreensão em gestos. Não saiba achar a nota certa na corda do violão. E por isso, preciso partir. Vou ver em que caminho acho a cor que falta para completar o quadro. Em que árvore encontro a fruta que me mata a fome, até a próxima fome. Até que aprenda a não sentir fome, a ver no que me é dado tudo de que preciso para ser feliz. E que tudo o que procuro, encontro mesmo quando ainda não acendeu o dia. Uma hora, eu sei, deixarei de partir.