A gente tem que saber partir. Arrumar as coisas todas
diligentemente, com calma, com decisão. Deixar para trás aquilo que não serve
mais, não cabe mais, não pode mais. Carregar conosco apenas o que é essencial,
o que faz sentido. E trocar os sentidos se preciso for. Buscar novos
significados nos velhos que importam, e buscar novos em outros lugares, em
outros caminhos. E, sobretudo, não olhar para trás com o sentimento de que
deixa uma parte de si naquilo que não dá mais.
Por mais que tenha feito as malas e partido inúmeras vezes,
por mais que tenha procurado novos rumos e novos horizontes, e que saiu de
terras que nunca mais pisou, partir é partir. Romper. Cindir. Existe uma
natureza quase selvagem dentro de nós que não suporta a separação. Que não quer
se mover, mesmo quando há uma pedra no sapato, quando tem goteira para todo
lado ou quando não tem luz, não tem água e quase todos já se foram. Uma inércia,
talvez, ou um apego. Porque nem tudo é completamente ruim. Pode não ter o que
comer, mas a música é boa. O barulho é infernal, mas a conversa é ótima. A liberdade
não existe, mas o abraço é forte.
Partir é a última coisa que pensamos quando tudo o mais não
funciona. Você já tentou abrir a mão e fechar o olho, esperar do lado de fora
até que o silêncio reinicie. Já tentou fazer comida para passar a raiva, pagar
as contas para ver um sorriso, mesmo que amarelo, mesmo que rápido e
superficial. Deixou o carro virado para sair fácil, pôs comida para os gatos,
para os cães, aguou as plantas. Mas faltou alguma coisa ainda, algum detalhe
escapou, algum efeito especial não deu certo. Faltou você falar a palavra
mágica, fazer o gesto explícito ou teatral, abrir a cena de forma triunfal. Ou quem
sabe ainda, o contrário disso, o contrário de tudo, faltou você ficar quieto,
não fazer nada, ficar invisível. Você não sabe, nem eu.
Partir nessas circunstâncias é um pedido de socorro. Não bastava
abrir a janela em busca de ar, precisava tirar a camisa, tirar a roupa, correr
nu pela estrada, correr sem parar, sem olhar, sem pensar. Não foi o suficiente
tirar os sapatos, também precisava ter tirado alguns vícios, alguns vocábulos,
precisava ter esquecido a senha, aquela que sempre esquecemos quando o tempo
afoba, e agora, no escuro do quarto, no meio da madrugada, está lá brilhando na
memória, inútil.
Partir. Partir. Partir.
Vou esperar o horário do trem. Vou deixando tudo arrumado. Vou
deixar a chave debaixo da porta. Vou, de novo. De novo, meu deus. De novo e de
novo e de novo. Assim, vou acabar aprendendo a ser circense. Talvez me torne
acróbata ou mágico ou domador de leões. Será que um dia aprendo a andar sobre o
fio esticado no meio do salão? Sem rede embaixo? Com o rufar de tambores
anunciando o perigo? Mas aprendo para quê?
Existe uma felicidade clandestina e sub-reptícia nas rotinas
cotidianas, e nós sempre procurando a Grande Felicidade. Existe uma alegria
frugal e leve do conviver, e nós ainda em busca do teatro de arena, do coro que
traz consciência, da voz empostada. Parece simples, parece até natural, mas no
fundo, é um exercício. Não falo de uniformidade porque não tenho sequer na
escolha dos pronomes. Falo do reconhecimento de tudo o mais que deu certo
diante de tão poucas que não deram. Refiro-me ao movimento, ao gesto mínimo do
olhar, aquele que se perdeu e ninguém viu, a palavra que ficou na língua, e precisa do beijo para entender. Um abraço. Precisa apenas de compreensão.
Talvez eu não saiba traduzir compreensão em gestos. Não saiba
achar a nota certa na corda do violão. E por isso, preciso partir. Vou ver em
que caminho acho a cor que falta para completar o quadro. Em que árvore
encontro a fruta que me mata a fome, até a próxima fome. Até que aprenda a não
sentir fome, a ver no que me é dado tudo de que preciso para ser feliz. E que
tudo o que procuro, encontro mesmo quando ainda não acendeu o dia. Uma hora, eu
sei, deixarei de partir.
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