Tomei a primeira chuva do ano dançando. Chuva fina, que
molhava meus cabelos e permeava meu corpo, lavando-o do resto de poeira e
migalhas de medos por ventura impregnados ainda. Os olhos, regozijantes com as
lágrimas do céu, não se privaram de liberar as suas próprias. Enfim um novo
ciclo. Enfim, a vida que promete renovar-se.
A primeira chuva do ano encobriu as estrelas. Mesmo quando a
fartura se apresenta, não se pode querer tudo. Ainda assim, os finos pingos que
caiam resplandeciam como fagulhas anunciando a aurora que viria. A música que
embalava os meus pés não suplantou o silêncio do momento. Como se o tempo
parasse. A vida toda parasse. E, por instantes, só houvesse aquela chuva caindo
reconfortante nos meus braços abertos.
Eu reabri as portas para o provável e o improvável. Mergulhei
no infinito. Vesti-me de debutante, garganta seca, à memória a vida que passou
nos pequenos gestos. Lembrei-me da minha ansiedade, dos tempos em que derrapava
pela lama dessas montanhas, nessa época de chuvas. Derrapava com medo de
derrapar. Acelerava além da conta. Na ânsia de ser feliz, de me encontrar,
corria em busca do que já nem sabia se queria, se importava. Corria para não
sofrer. E corria para chegar. Mas só me fazia patinar escorregando para todo
lado, o andar em sobressalto.
A chuva era uma ameaça para minha vida. Eu, por via das
dúvidas, não saia de casa. Se havia uma possibilidade de chover, se houvesse
nuvens no céu, se fosse no céu, ainda que ao longe: no medo de que ela fizesse
doer minha pele, na angústia da tensão, me protegia no calor da casa. Eu fugia
dos dramas, das dores alheias, das pequenas aflições. Sentia-me pequena, frágil
demais, inconsistente demais. A chuva amolecia meu chão e precipitava meu
peito. A vida era uma ameaça.
Eu não sei quando foi que deixei de considerar o medo de
sair de casa. Não sei quando foi que me dei conta, o exato momento do salto
quântico, em que pisei em terra firme. Mudanças demais. Troquei a vida que
tinha por uma outra que me cabia melhor. Uma que não me impedia de caminhar,
falar o que pensava, querer o que queria. Fui para a beira do rio olhar a transparência
de suas águas e tremi um pouco, mas permaneci ali, apreciando a beleza possível
da corredeira.
Eu não sei quando fiz as pazes com a chuva. Que retomei à
leveza da criança que brincava nas poças, deixava-se molhar sem medo. Escorregava
de propósito. Me deixava sujar de lama sem culpa. E quando me dei conta de que
era a primeira chuva do ano, não hesitei em dançar nela. Dançar e dançar e
dançar. A vida voltando a ser leve e descomprometida. Voltando a ser ingênua e
delicada. Sem ansiedade.
Mais tarde, no primeiro sono do ano, madrugada plena, o
cansaço do corpo era uma alegria que me esquentava. O sono até cedera um pouco
para o alquebrantado de um corpo que se excedera, superara, se permitiu. Que foi
além. O gosto de ultrapassar limites, os seus próprios, é melhor que champanhe.
Parece-se mais com uma cachaça boa e vigorosa, forte como a vontade de viver e
delicada como tem que ser.
Eu renovei meus votos com a vida e com a paz de espírito. Vou
viver os próximos cinquenta anos comigo, na alegria e na tristeza, cumulada de
momentos felizes, com mais doçura do que os últimos. Mas com o mesmo fervor, a diferença
é que agora, sem a ansiedade de quem não sabe o que há depois da curva da
estrada. Agora sei. Não há nada que eu não possa resolver.
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