quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Acreditar é melhor que sofrer

Eu acredito em Deus. Aquele que criou todas as formas de vida, as pessoas que concordam comigo e as que discordam, aqueles que eu prezo e os que nem tanto. Que criou as pessoas que um dia passaram pela minha vida fazendo dos meus dias alegres ou tristes, intensos ou leves, e dos quais eu também participei permitindo que fossem o que queriam ser. Mesmo nos momentos em que eu não entendia nada. Mesmo naqueles em que eu sabia tudo.

Acredito em deus. Que ele, ao criar todos os personagens que interagem nessa peça, o fez sem concluir o roteiro. Permitiu de forma bastante original que os atores mudassem cenas, alterassem falas, criassem suas próprias marcações no palco. Um deus que me deixa errar o momento de entrar. Me deixa errar o passo. Que faz vistas grossas para meus desatinos, meus erros de percurso. A mim e todos os outros que contracenam. Não adianta você olhar da coxia e achar que está tudo errado. Ele não interrompe a sessão. Ele não edita sozinho depois.

Sim, acredito num deus da mesma forma como acredito em cada célula do meu corpo, em cada neurônio que responde imediatamente a cada pensamento que sequer percebi que estava tendo. Como acredito que haja um universo imenso, repleto de mundos e seres que os habitam, seres diferentes de mim, que não choram ou riem, ou que temem e têm frio. Como há pessoas diferentes também onde vivo. Pessoas diferentes frente às suas respostas. Mas não importa, porque não tem um gabarito. Não tem um modelo.

E porque acredito em deus sei que tenho uma bússola interna me indicando a direção. É certo que nem sempre eu sigo. Nem sempre eu aceito. E, na maior parte das vezes, não entendo nada. Não é uma decisão. É apenas um sinal. A estrela polar. Uma constelação. A posição do sol. Algo que me aponta onde estão as traves para que eu chute a bola.

Mas e se deus não existir? E se esse for mais um dos meus enganos? E se não sou mais do que uma peça num grande quebra-cabeças que despencou da mesa por um braço descuidado? E se toda essa inteligência que vejo no mundo não for senão um reflexo torto do que meus olhos querem ver? Uma ilusão que chamo de realidade, um sonho que se apresenta como verdade?

Se deus não existir, repentinamente todo o meu mundo se resumirá em peças aleatórias que se encontram por acaso. Não desenham gestos, não encenam dramas. Não são mais personagens de coisa alguma, dado que não há roteiro, mesmo que incompleto, a ser criado. E quem sou nesse emaranhado de fios e teias caminhando ou parando pelos nós é apenas uma célula com um fim em si. Um fim que recrio a cada instante, a cada passo que dou. Ou não.

Posso escolher haver ou não um deus, ser ou não uma criatura co-criadora. Posso escolher essa ou aquela peça para encenar, esse ou aquele personagem mais simpático. Posso achar que faço escolhas inclusive. Tudo isso porque penso. Porque tenho uma mente autoconsciente. E isso não é nenhum prêmio porque fui boazinha a vida toda, porque não fui. Não sou melhor que qualquer outro animal do planeta. Então, quando volto a mim para me deparar com um ser dentre milhares em milhares e milhares de planetas num universo que é um dentre quantos?, então naturalmente me tranquilizo e vou dormir bem. Em seus braços.

domingo, 17 de janeiro de 2016

Procura-se uma casa

A casa que procuro é uma casa na roça. Não é difícil querer uma casa na roça. A roça muda todo dia: a cada estação é de uma cor. Tem poeira e barro se revezando. Tem pássaros cantando. Deve ter uns 50 tons de verde. Ou mais. Tem o frio quando é frio e tem calor quando é calor (verdade, não é um cenário). E quando esse campo é uma montanha, então, tudo fica ainda mais divertido. Os pinheiros são altíssimos. Neles, esquilos sobem e descem numa destreza que encanta. As copas das árvores se encontram contra o céu azul, desenhando rendas ao crepúsculo.

Nessa montanha está minha casa me esperando. Uma casa quentinha no frio e fresquinha no verão. Bem iluminada, que suporte cães e gatos no quintal. Não me importo se alguma galinha do vizinho vier me visitar. Quero uma casa simpática, cômoda. Que goste de receber amigos e onde meus amigos gostarão de vir. Com uma cozinha boa, espaçosa, que caiba uma grande mesa ao redor da qual todos se sentarão para conversar antes de comer.

Minha casa tem lareira onde crepita a lenha fazendo uma chama brincante. O fogo é da mesma natureza da alma, então, na sala, o calor inspira poesias e amores incansáveis. Enquanto isso, lá fora pode a chuva cair e o frio branquear tudo. Pode fazer um breu nas noites sem lua ou silêncio de arrepiar. Podem os insetos ficar batendo na lâmpada, no vidro da janela, a vida toda que há quando escurece bem e tudo acalma. O fogo do coração não deixará que nasçam flores amarelas e medrosas no peito.

Dela, nos dias de azul infinito, verei passar um anjo escondido sob a forma de nuvem, magnífico. Cavalos passarão ruidosos na estrada, acompanhados de cães ruidosos. E sobre eles, homens e mulheres conversarão sobre a vida que passa olhando de mais em cima, por sobre os muros, sobre as cercas vivas, coloridas. Verei um olhar se esgueirar para dentro do meu quintal, buscando o cheiro do jasmim florido.

Essa casa, que procuro para viver a felicidade do agora, está pronta, ou está ficando pronta para mim. Está na urgência dos que têm sede e que sabem onde encontrar água. O vento já está varrendo o seu telhado de todas as emoções impregnadas e esquecidas de outrem. O sal da terra seca todos os animismos por ventura perdidos pelo caminho. O orvalho da manhã caído na grama e folhagens começa a preparar novas vidas, germinar o novo. Tudo para que eu leve o fogo da alegria para iluminar cada canto da casa.

Minha casa tem paredes que esperam por meus livros. Livros que contam histórias dessa vida e da outra. Livros que me fazem viajar para outros mundos, outros olhos, para além da paisagem da janela. Paredes cujas prateleiras esconderão a cor da pintura desenhando em seu lugar as cores das especiarias.

Ela tem dois quartos para que eu possa receber amigos buscando a aventura da montanha. Amigos que me privem de sua companhia para conversas da madrugada. Ou para um café da manhã na varanda. Ou apenas para registrar na minha vida mais um dia em que fui feliz.

Se você ao andar por essas estradas reconhecer essa casa, se você souber onde ela está ou como posso encontrá-la, por favor, me avise. Mande-me sinais de fumaça, acenda um laser no telhado, estoure rojões no quintal, empine uma pipa vermelha bem alta me apontando o local. Me avise que eu vou morar nela. E depois, venha tomar um café comigo.


O Rochedo e o Mar

A vida toda bateu no rochedo, o mar. Alguém pode dizer “que horror”, outro pode pensar “que paixão”. E se bem que no passar dos dias ninguém perceba nada, diminui o rochedo e aumenta a areia. Quanto ao mar, esse continua batendo.

Qual o sentido disso? Nenhum, exceto que eu paro para pensar nisso e me emocionar. Me emociona toda persistência e toda a resistência que a cena tem. E a espuma. Volátil, efêmera, perfeita no voo estraçalhado que percorre. E o som, repetindo e repetindo o vai e volta sem fim. Mas também o silêncio que preenche os espaços entre uma coisa e outra. Tal como o amor.

O amor é o silêncio entre uma onda e outra a quebrar na rocha. O amor é o momento que não tem movimento. Que não tem pensamento. Que não tem. O amor não tem. Quem pensa que tem amor, só pensou. Amar é não pensar. É um deixar-se ser. Quando o meu deixar-me ser encontra com o seu deixar-se ser, o amor nos tocou.

Já me fiz crer que amor fosse como um presente que se recebe por algum merecimento. Hoje sei perfeitamente que ele é um fio estendido sobre um precipício pelo qual tento andar. Precisa de equilíbrio. Não o equilíbrio do sóbrio, mas do ébrio, isso sim. Um andar sem olhar para o perigo, sem encarar a possibilidade do não. Precisa querer mais chegar ao outro lado do que ter medo do fim embaixo.

É por isso que o desejo serve ao amor. Se não houver desejo, a construção do amor é apenas um projeto burocrático. Cheio de assinaturas e identidades e pouco significado. O desejo faz de cada onda a energia necessária para manter-se sólido. Ou parecido com isso. A ilusão também serve ao amor. Para que ele possa amanhecer todo dia em festa, com o assombro do sobrevivente.

Se, no entanto, você tentar aprisionar o gesto, se ousar querer entender o olhar, um leve quase imperceptível levantar do canto dos lábios, então, você estará prestes a perder o amor. Ele escorrerá do peito até o dedo anelar gota a gota até secar. E restará apenas saudade ao final de tudo. Ou, se nem isso puder restar, no final de tudo você nem se lembrará do que ficou para trás, do que perdeu.

Porque tão insano como o mar bater no rochedo, tão surreal como o silêncio que segue a onda, é querer entender o amor. Amar é ritmo, não é o que. É a luz que projeta sombras na parede, não importa se você só veja terror ou diversão, se tremula, esconde ou envolve. É uma luz intocável. Que cega. Cala. Despe. Abraça. E só assim pode enfim penetrar delicadamente a pele. Não dá para queimar etapas.


Sim. E o amor não ensina nada. Não queira aprender com o amor. O amor é. No tempo e no espaço. É. Não conjuga pessoa, nem nada. Por isso, não espere amar para ser amado, não espere nenhuma condição especial para fazer amor. Amar é o mais intransitivo dos verbos. E ele pode existir independente de sua declaração. Mas, por favor, não deixe de declarar.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

Não faça nada por mim

Depois de escurecer repentinamente, e de cair uma chuva mole e fina, depois de parecer que não haveria mais dia seguinte, e que tudo, enfim, se quedou silente, então pude pensar um pouco, ouvir o coração batendo no ritmo da respiração calma. Ser o que sou. Independente. Eu. Inteira. Sem tempo e sem explicação. Desprovida de justificativas. Apenas. Simples. Eu.

Não nasci para ninguém. Ninguém nasceu para mim. E, no entanto, tantos em mim vivem em plena harmonia e alegria. Tantos sem pátria, sem casa, sem nada. Não me traga nada. Não me traga nem respostas. Não me dê o que não pedi. Pode ser uma surpresa boa. Mas pode não agradar. Conte com isso.

Eu vou passar. Vou ser como o vento que nem disse a que veio. E já foi. Vou me entregar como quem pula na piscina de água translúcida. Já segurei a respiração. Já estou de olhos bem abertos. Em busca do silêncio profundo que faz tanto bem. A falta da gravidade. É isso que quero hoje. Nada grave. Nada pesado. Nada para amarrar meus pés como se houvesse apenas um jeito certo de ser. Deve haver um milhão de formas para viver a mesma vida. E não sei em que número estou, quantas vidas já se passaram e quantas tentativas ainda me restam. A vida que se renova como uma espiral.

Eu quero a mão que aperta a minha sem pressa. Quero sua busca da minha pele. Quero a boca que me diz amor. E depois pode ir. Pode ir dormir. Pode me deixar. Que fique o tempo que precisar ficar para haver essa entrega. Esse encontro. Esse momento único em que não há mais nada no mundo. Um istmo de segundo em que tudo fica em suspenso e a vida é inteira, toda ali, total. Eu quero a cumplicidade que não violenta, que não exclui, que não é restritiva. Que é justamente cumplicidade: o dobro. Quero tudo.

Já fiz todos os papéis na peça. Agora quero ser a peça. A dança, o quadro. Não quero mais dividir nada. Não quero regras como se a vida fosse um jogo. O jogo acabou. Não procuro relações tipo mar-e-praia, um entrando e o outro encolhendo. Não me interessa saber se existe vida na praia. Se existe vida no mar. Quero o ar solto e frio e quente e úmido e seco e – antes de tudo – volátil e desapegado que vem da maresia. Quero que o amor seja assim, brisa apenas sugerida pelo movimento dos cabelos. Me faz sentir o toque delicado de seus dedos.

Não vou fugir. Diante do rochedo – ah, a terra que ilude solidez – vou apenas seguir em frente, porque o que desejo está no topo e não no chão. Porque o que faz da vida movimento não é a permanência e sim o deixar ser. Ser o descontrole e ser o amparo. Ser o peito que acalenta e a mão que abana um adeus. A vida é onda. Vai e volta e desbanca a areia no fundo. Carrega junto o que pensava dar pé.

Pode escurecer, pode acabar a luz, podem tremular as sombras das pessoas na luz de velas. Pode ficar frio, não ter comida, acabar o dinheiro. Pode ser que eu tenha que devolver o brinquedo, ir embora mais cedo, carregar tudo que é meu, ficar de castigo. Pode até ser que tudo seja em vão e vazio, inútil, que tudo se perca, que não reste nem migalhas pelo chão para registrar a passagem. Se, no entanto, minha mão estendida alcançar a sua, se um abraço preencher todos os espaços, se o ar que me restar for o que você exalar, assim mesmo, saberei que vivi. E amei.

Não faço promessas. Não faço perguntas. Acredito. No meio do sobe e desce dessa gangorra, vou ficando só enquanto divertido. Enquanto encanto de criança. Porque criança ri de tudo e de nada. Criança dá a mão e acredita que estará bem. Criança se joga nos braços que se abrem e chamam para si, de olhos fechados, confiantes. E abre a boca para o alimento que vem. Quero esse amor criança, que se debruça perigosamente para o outro e que, não se esquecendo nunca de si mesma, se perde no outro. Quero a grande brincadeira de ser o outro do outro. Enfim, hoje, quero que o amor seja uma brincadeira de roda. Sem tempo. Sem medo. Novo.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

Partir

A gente tem que saber partir. Arrumar as coisas todas diligentemente, com calma, com decisão. Deixar para trás aquilo que não serve mais, não cabe mais, não pode mais. Carregar conosco apenas o que é essencial, o que faz sentido. E trocar os sentidos se preciso for. Buscar novos significados nos velhos que importam, e buscar novos em outros lugares, em outros caminhos. E, sobretudo, não olhar para trás com o sentimento de que deixa uma parte de si naquilo que não dá mais.

Por mais que tenha feito as malas e partido inúmeras vezes, por mais que tenha procurado novos rumos e novos horizontes, e que saiu de terras que nunca mais pisou, partir é partir. Romper. Cindir. Existe uma natureza quase selvagem dentro de nós que não suporta a separação. Que não quer se mover, mesmo quando há uma pedra no sapato, quando tem goteira para todo lado ou quando não tem luz, não tem água e quase todos já se foram. Uma inércia, talvez, ou um apego. Porque nem tudo é completamente ruim. Pode não ter o que comer, mas a música é boa. O barulho é infernal, mas a conversa é ótima. A liberdade não existe, mas o abraço é forte.

Partir é a última coisa que pensamos quando tudo o mais não funciona. Você já tentou abrir a mão e fechar o olho, esperar do lado de fora até que o silêncio reinicie. Já tentou fazer comida para passar a raiva, pagar as contas para ver um sorriso, mesmo que amarelo, mesmo que rápido e superficial. Deixou o carro virado para sair fácil, pôs comida para os gatos, para os cães, aguou as plantas. Mas faltou alguma coisa ainda, algum detalhe escapou, algum efeito especial não deu certo. Faltou você falar a palavra mágica, fazer o gesto explícito ou teatral, abrir a cena de forma triunfal. Ou quem sabe ainda, o contrário disso, o contrário de tudo, faltou você ficar quieto, não fazer nada, ficar invisível. Você não sabe, nem eu.

Partir nessas circunstâncias é um pedido de socorro. Não bastava abrir a janela em busca de ar, precisava tirar a camisa, tirar a roupa, correr nu pela estrada, correr sem parar, sem olhar, sem pensar. Não foi o suficiente tirar os sapatos, também precisava ter tirado alguns vícios, alguns vocábulos, precisava ter esquecido a senha, aquela que sempre esquecemos quando o tempo afoba, e agora, no escuro do quarto, no meio da madrugada, está lá brilhando na memória, inútil.

Partir. Partir. Partir.

Vou esperar o horário do trem. Vou deixando tudo arrumado. Vou deixar a chave debaixo da porta. Vou, de novo. De novo, meu deus. De novo e de novo e de novo. Assim, vou acabar aprendendo a ser circense. Talvez me torne acróbata ou mágico ou domador de leões. Será que um dia aprendo a andar sobre o fio esticado no meio do salão? Sem rede embaixo? Com o rufar de tambores anunciando o perigo? Mas aprendo para quê?

Existe uma felicidade clandestina e sub-reptícia nas rotinas cotidianas, e nós sempre procurando a Grande Felicidade. Existe uma alegria frugal e leve do conviver, e nós ainda em busca do teatro de arena, do coro que traz consciência, da voz empostada. Parece simples, parece até natural, mas no fundo, é um exercício. Não falo de uniformidade porque não tenho sequer na escolha dos pronomes. Falo do reconhecimento de tudo o mais que deu certo diante de tão poucas que não deram. Refiro-me ao movimento, ao gesto mínimo do olhar, aquele que se perdeu e ninguém viu, a palavra que ficou na língua, e precisa do beijo para entender. Um abraço. Precisa apenas de compreensão.

Talvez eu não saiba traduzir compreensão em gestos. Não saiba achar a nota certa na corda do violão. E por isso, preciso partir. Vou ver em que caminho acho a cor que falta para completar o quadro. Em que árvore encontro a fruta que me mata a fome, até a próxima fome. Até que aprenda a não sentir fome, a ver no que me é dado tudo de que preciso para ser feliz. E que tudo o que procuro, encontro mesmo quando ainda não acendeu o dia. Uma hora, eu sei, deixarei de partir.

domingo, 3 de janeiro de 2016

No fim de tudo

Acho que o amor é a crença de que tudo seja possível mesmo diante de uma catástrofe iminente. Ele faz a boca ficar aberta sem resposta, perplexa, diante de algo que é totalmente diferente do esperado. É como chupar bala, a última, sem se preocupar se perderá o apetite, ou se já escovou os dentes, ou ainda, se lhe pertence. Amor é uma total falta de culpa. Uma absoluta confiança no improvável.

Talvez por isso, eu resista em aceitar o fim. Resista em admitir que seja hora de partir. Que a água já está batendo forte no peito, hora de abandonar o barco. Difícil crer na descrença. Eu preferia ser dispensado do que pedir a conta; que me seja dito “fora!” do que dizer “estou indo”. Refuta-me, despreza-me, ignora-me. Assim, apesar da dor, tudo fica mais fácil.

Ou vai assim homeopaticamente me fazendo sofrer. Sofrer até perder a dignidade, até perder tudo, para ver se então me convenço de que não há nada mais a fazer. Que não me resta senão ir, de mãos abanando, os ombros ainda um pouco caídos, sem vontade alguma de olhar para trás. Vai me tirando a comida, depois a água, por último a luz. Vai me deixando com frio, com sono, me deixando com dúvidas. Revira minha gaveta em busca de alguma coisa, remexe meus bolsos, as ligações recebidas, as mensagens enviadas. Cheira meu rastro até adivinhar meus pensamentos. Depois me põe para secar na cerca.

Talvez assim, na marra, eu acabe por entender que minhas pernas têm que se mover, me levar para longe. Correndo. Quem sabe eu perceba que não trago nada nas mãos, e o que fui buscar, esvaiu. E eu aceite, mais que a morte, o definhamento.

Eu, que queria envelhecer ao lado de alguém, vejo murchar a emoção como um balão que perde o gás, perde o viço, enruga, desbota. Eu, que queria amadurecer com alguém uma vida possível, doce e suculenta, cotidiana. Eu, enfim, que ansiava por trocar olhares sem legendas, ou frases sem tradução, que esperava pela mão estendida para tocar a minha estendida, e levá-la delicadamente ao peito. Talvez eu ainda tenha que aprender muito.

Aprender o que é isso. O que é o outro. O que sou eu, meus limites, minhas fronteiras. E o que é a construção, a rede que entrelaça, ora invisível, ora permeável, dois caminhos, dois mundos, e o resto todo que os une. A vida contraída entre duas pessoas que se querem cruzando o espaço repleto de sinais, signos, pedras. A vida quase impossível no limiar de duas consciências. Num bombardeio de emoções viscerais e certeiras, capazes de consumir até o último neurônio normal. Aprender a ser alheio a tudo isso.

Aprender o que é estar junto, andar com. O que sei a respeito disso? Andar junto não é perder o chão, ou revezar os pés. Não é seguir sequer na mesma direção. Não é sincronizar a consciência para entender as mesmas coisas; não é voar o mesmo plano de voo. Também não é atrelar o vagão na mesma locomotiva, ou comprar o bilhete para o mesmo jogo. Não. Andar junto não pode ser bom se alguém vive o sonho do outro incondicionalmente, totalmente, mergulhado de cabeça. Até porque, de fato, nada é assim incondicional. E o preço não negociado antes é outro tipo de entrelaçamento. Outro tipo de compartilhamento. A conta que se apresenta quando houve demasiado empenho, demasiada entrega, não aceita pagamentos sem drama. Mas o que é, então?

Sei de mim apenas o que me faz acordar pela manhã. Sem querer ser herói de mim. Ter a coragem de me lançar no desconhecido de outro alguém. Com todos os medos que podem acompanhar um tal desejo. Tenho medo desses amores implantes, que fazem ponte de safena no meu peito arfante. Esses amores que se jogam como se eu fosse um precipício, sem fim. Tenho medo de me atirar em rios que não vejo o fundo, de me apoiar naquilo que não tem raiz. No trançado da vida, quero seguir criando e me recriando, sem me impor para ninguém, posto que também o outro queira se criar. Seguir sem salvar ninguém, eu mesma na trajetória de me perder. Correr. Voar a liberdade que tira o ar. A liberdade difícil no espaço entre dois. Entre dois e o mundo que há em torno.

sábado, 2 de janeiro de 2016

Daquilo que sei

Já me separei de pessoas as quais amava apenas por não ter estrutura emocional para acompanhar suas escolhas de vida, escolhas essas que me impactavam. No entanto, se tudo que nos ocorre é assim o que de certa forma atraímos ou buscamos, talvez eu tenha vivido essas experiências para sair daquela estrutura emocional que não dava conta desses impactos. Talvez eu devesse ter insistido, deixado acontecer, devesse ter me mexido e não reagido. Ainda assim, por via das dúvidas, já me perdoei por tudo isso.

Ocorre que a vida não tem ensaio geral, não tem script prévio, e, não sei, talvez também não tenha roteiro. Ela acontece e, acontecendo, vai criando uma nova realidade a cada momento. Como uma trama engendrada em vários fragmentos soltos, aparentemente desconexos, que vez por outra se encontram e se encaixam. Outras não.

Às vezes, se encaixam apenas temporariamente. No rápido espaço entre uma estação e outra. Ou apenas na espera de chegar a próxima parada para descer correndo sem olhar para trás. Como se a natureza de um pudesse interferir na natureza de outro pelo simples motivo de coexistirem. Como se não fosse possível separar o amontoado emocional que compõe cada um de nós dos aglomerados alheios. Por amor, a vida se torna permeável. Perigosamente permeável.

E do que era um movimento para subir a estrada, parece repentinamente levá-lo para o outro lado, a outra margem, um outro rumo, desconhecido, desacordado. Eu não sei se é exatamente isso que procuro quando encontro alguém em quem fiar-me, e unir-me. Um rumo desconhecido, uma proposta não pensada antes, um ritmo diferente. Ou se procuro alguém que possa me apoiar nas minhas escolhas, certas ou erradas, não importa, apoiar minhas decisões, acompanhar-me nos meus caminhos.

Parece que, sempre que quis de um jeito, encontrei alguém com expectativas no outro jeito. Mas não é verdade. Por um determinado tempo – que pode ter durado anos ou dias – caminhamos, sim, juntos em conexão. Numa comunhão espontânea de intenções. Numa alegria incontrolável de estar junto. Ou, ao menos, de fazer junto. Ou ainda, de ser reconhecido fazendo através do olhar do outro. Nesse istmo de tempo, o tempo não existe. A vida toma uma proporção assustadoramente grande. Tudo o mais que poderia atrapalhar, impedir, ou negar, diminui ou enfraquece. A emoção reconforta, alimenta e autorregenera.

E, dado que é vivo, um instante se precipita em morrer. Alguns, como a genética generosa de poucos, não chegam a agonizar. Outros, declinam em busca de bengalas, muletas, aparelhos até que alguém decida por desligar tudo.

Conheço muitos relacionamentos longevos, sinceramente duradouros, persistentemente tranquilos. As divergências existem, mas existe uma compaixão pela diferença. Cada um tem um ritmo, mas a dança é perfeita no resultado final. Ou as semelhanças são tão síncronas que o restante se torna supérfluo. São universos que muitas vezes passaram por buracos negros e sobreviveram, como um milagre. Uma forma de comprovar a existência de deus. Sim. Claro. Se duas pessoas convivem amorosamente no mesmo espaço por um longo período de tempo, seja em tempos do cólera ou da abastança, seja para a felicidade recíproca ou para a proteção de uma prole, então, deus existe.

Conheci deus em diversos momentos da minha vida. E ele se mostrou em tantas facetas, majestosas ou pedintes, que não posso nunca acreditar que estou nisso sozinha. Não posso imaginar que os desafios se apresentem apenas para me testar, o que seria frugal demais para valer a vida que está envolvida. Não. A minha busca é uma fé total na certeza de que pessoas – mesmo as mais complexas, as mais rebuscadas e as mais simples – elas querem se unir numa vontade maior alheia à sua própria, numa dimensão maior que a sua. O que elas esperam é uma vida mais rica, mais alguma coisa. E não menos.


Embora um relacionamento não seja uma aritmética simples, o resultado “menos” não pode ser aceito, porque isso expressará que as pessoas preferem esvaziar suas vidas a ter que procurar novos significados. A vida a dois deve ser mais, simples e mais, flexível e mais, apaixonante, apaziguadora, devotada. Dois é mais que um, embora não seja possível comparação. Embora o cada um mantenha seu próprio valor, sua própria luz e sua própria vida.

sexta-feira, 1 de janeiro de 2016

Chuva no Ano Novo



Tomei a primeira chuva do ano dançando. Chuva fina, que molhava meus cabelos e permeava meu corpo, lavando-o do resto de poeira e migalhas de medos por ventura impregnados ainda. Os olhos, regozijantes com as lágrimas do céu, não se privaram de liberar as suas próprias. Enfim um novo ciclo. Enfim, a vida que promete renovar-se.


A primeira chuva do ano encobriu as estrelas. Mesmo quando a fartura se apresenta, não se pode querer tudo. Ainda assim, os finos pingos que caiam resplandeciam como fagulhas anunciando a aurora que viria. A música que embalava os meus pés não suplantou o silêncio do momento. Como se o tempo parasse. A vida toda parasse. E, por instantes, só houvesse aquela chuva caindo reconfortante nos meus braços abertos.


Eu reabri as portas para o provável e o improvável. Mergulhei no infinito. Vesti-me de debutante, garganta seca, à memória a vida que passou nos pequenos gestos. Lembrei-me da minha ansiedade, dos tempos em que derrapava pela lama dessas montanhas, nessa época de chuvas. Derrapava com medo de derrapar. Acelerava além da conta. Na ânsia de ser feliz, de me encontrar, corria em busca do que já nem sabia se queria, se importava. Corria para não sofrer. E corria para chegar. Mas só me fazia patinar escorregando para todo lado, o andar em sobressalto.

A chuva era uma ameaça para minha vida. Eu, por via das dúvidas, não saia de casa. Se havia uma possibilidade de chover, se houvesse nuvens no céu, se fosse no céu, ainda que ao longe: no medo de que ela fizesse doer minha pele, na angústia da tensão, me protegia no calor da casa. Eu fugia dos dramas, das dores alheias, das pequenas aflições. Sentia-me pequena, frágil demais, inconsistente demais. A chuva amolecia meu chão e precipitava meu peito. A vida era uma ameaça.


Eu não sei quando foi que deixei de considerar o medo de sair de casa. Não sei quando foi que me dei conta, o exato momento do salto quântico, em que pisei em terra firme. Mudanças demais. Troquei a vida que tinha por uma outra que me cabia melhor. Uma que não me impedia de caminhar, falar o que pensava, querer o que queria. Fui para a beira do rio olhar a transparência de suas águas e tremi um pouco, mas permaneci ali, apreciando a beleza possível da corredeira.


Eu não sei quando fiz as pazes com a chuva. Que retomei à leveza da criança que brincava nas poças, deixava-se molhar sem medo. Escorregava de propósito. Me deixava sujar de lama sem culpa. E quando me dei conta de que era a primeira chuva do ano, não hesitei em dançar nela. Dançar e dançar e dançar. A vida voltando a ser leve e descomprometida. Voltando a ser ingênua e delicada. Sem ansiedade.


Mais tarde, no primeiro sono do ano, madrugada plena, o cansaço do corpo era uma alegria que me esquentava. O sono até cedera um pouco para o alquebrantado de um corpo que se excedera, superara, se permitiu. Que foi além. O gosto de ultrapassar limites, os seus próprios, é melhor que champanhe. Parece-se mais com uma cachaça boa e vigorosa, forte como a vontade de viver e delicada como tem que ser.


Eu renovei meus votos com a vida e com a paz de espírito. Vou viver os próximos cinquenta anos comigo, na alegria e na tristeza, cumulada de momentos felizes, com mais doçura do que os últimos. Mas com o mesmo fervor, a diferença é que agora, sem a ansiedade de quem não sabe o que há depois da curva da estrada. Agora sei. Não há nada que eu não possa resolver.