Música sempre me pegou. Lembro que não tinha sequer um
tocador de discos quando pedi tão insistentemente para minha mãe a Sinfonia
número 5 de Beethoven, ela, que imaginava que eu nem saberia quem era esse
Beethoven, nem sabia se eu sabia ler o nome dele, porque mal aprendera a ler,
perplexa, cedeu e me deu ambos, uma vitrola e o disco. Ouvi tantas vezes, mas
tantas vezes que a família começou a entender que já era hora de eu ouvir novos
compositores, novos intérpretes, novidades, enfim.
Precisei crescer para gostar de outras músicas. E hoje,
parece que não existe nada mais no mundo com consistência tão sutil e sublime
que música. Música que toca, que canta, que batuca, que irrompe o silêncio
precioso da alma para trazer mais significados, mais mistérios. O que é a
beleza, afinal? Que coisa é essa que nos toca e nos prende e nos emociona e nos
deixa sem sentidos? Ou ainda, nos deixa com sentidos mais aguçados, mais
desenvoltos. Que é a beleza? Um olhar que prende, um toque sensível na pele dos
braços, um gosto doce e salgado, azedo e amargo, um gosto que estala na língua,
a boca ainda entreaberta.
A música é o ar que não respiramos, que não tem cheiro, não
tem perfume. É o ar que dança em volta, fazendo de conta que é festa, fazendo a
vez de segredo. Toca tão fundo que faz bater o coração em outro ritmo, traz
lembranças, imagens, sonhos.
Eu tentei tocar piano. Sucumbi à minha falta total de
disciplina. Tentei tocar violão, flauta doce, sempre parando diante da primeira
dificuldade: a dor. Quando você coloca o problema na frente do prazer, já é um
sinal de que está insistindo no caminho errado. O que gosto mesmo é de ouvir. Contemplar.
Assistir. Esqueço quase completamente que aquela pessoa que está ali
desempenhando o papel de me dar beleza sofreu o flagelo de repetir até a
exaustão cada nota, cada tom, semi-tom, fez calos nos dedos, fez inimigos no
prédio em que morava. O que vejo é apenas a beleza transparente e doce da
melodia que é matemática e é um fantasma de outro mundo.
E tudo é uma forma de dizer o que se sente. Expressar. O pássaro
que canta tem uma estratégia: seduzir. O violino que toca também. Os dedos
ágeis de quem sobe e desce pelas cordas, esquecidos de si, mergulhados no
êxtase, buscam o enlace. O momento exato em que fisgará a sua alma e a levará
onde quiser levar porque, uma vez capturada, a vontade é uma com a música, é
uníssono.
Tem muita vibração nos aromas pungentes das ervas do jardim.
Tem muita sonoridade no vento entre as árvores. Mas a melodia, aquela que faz
seus olhos abrirem-se para dentro, traz humanidade para o dia-a-dia, traz
emoção sincera, perdida nos caminhos tortuosos das rotinas. A música que
encanta faz trocar a pele ressequida, as cascas endurecidas ainda remanescentes
de outras dores, outras vidas, outros tempos. E o tempo, se existisse, o que
seria? Um cruzamento de duas ruas? A passagem de dois trens na paisagem? Ou o
vento que balança as folhas rentes ao chão, ora acalmando ora eriçando, numa
canção de acordar? O tempo que a música engole sem solfejo. É preciso aprender
a esquecer as regras para soltar as cordas do coração.