domingo, 29 de abril de 2012

Cordas do coração


Música sempre me pegou. Lembro que não tinha sequer um tocador de discos quando pedi tão insistentemente para minha mãe a Sinfonia número 5 de Beethoven, ela, que imaginava que eu nem saberia quem era esse Beethoven, nem sabia se eu sabia ler o nome dele, porque mal aprendera a ler, perplexa, cedeu e me deu ambos, uma vitrola e o disco. Ouvi tantas vezes, mas tantas vezes que a família começou a entender que já era hora de eu ouvir novos compositores, novos intérpretes, novidades, enfim.

Precisei crescer para gostar de outras músicas. E hoje, parece que não existe nada mais no mundo com consistência tão sutil e sublime que música. Música que toca, que canta, que batuca, que irrompe o silêncio precioso da alma para trazer mais significados, mais mistérios. O que é a beleza, afinal? Que coisa é essa que nos toca e nos prende e nos emociona e nos deixa sem sentidos? Ou ainda, nos deixa com sentidos mais aguçados, mais desenvoltos. Que é a beleza? Um olhar que prende, um toque sensível na pele dos braços, um gosto doce e salgado, azedo e amargo, um gosto que estala na língua, a boca ainda entreaberta.

A música é o ar que não respiramos, que não tem cheiro, não tem perfume. É o ar que dança em volta, fazendo de conta que é festa, fazendo a vez de segredo. Toca tão fundo que faz bater o coração em outro ritmo, traz lembranças, imagens, sonhos. 

Eu tentei tocar piano. Sucumbi à minha falta total de disciplina. Tentei tocar violão, flauta doce, sempre parando diante da primeira dificuldade: a dor. Quando você coloca o problema na frente do prazer, já é um sinal de que está insistindo no caminho errado. O que gosto mesmo é de ouvir. Contemplar. Assistir. Esqueço quase completamente que aquela pessoa que está ali desempenhando o papel de me dar beleza sofreu o flagelo de repetir até a exaustão cada nota, cada tom, semi-tom, fez calos nos dedos, fez inimigos no prédio em que morava. O que vejo é apenas a beleza transparente e doce da melodia que é matemática e é um fantasma de outro mundo. 

E tudo é uma forma de dizer o que se sente. Expressar. O pássaro que canta tem uma estratégia: seduzir. O violino que toca também. Os dedos ágeis de quem sobe e desce pelas cordas, esquecidos de si, mergulhados no êxtase, buscam o enlace. O momento exato em que fisgará a sua alma e a levará onde quiser levar porque, uma vez capturada, a vontade é uma com a música, é uníssono. 

Tem muita vibração nos aromas pungentes das ervas do jardim. Tem muita sonoridade no vento entre as árvores. Mas a melodia, aquela que faz seus olhos abrirem-se para dentro, traz humanidade para o dia-a-dia, traz emoção sincera, perdida nos caminhos tortuosos das rotinas. A música que encanta faz trocar a pele ressequida, as cascas endurecidas ainda remanescentes de outras dores, outras vidas, outros tempos. E o tempo, se existisse, o que seria? Um cruzamento de duas ruas? A passagem de dois trens na paisagem? Ou o vento que balança as folhas rentes ao chão, ora acalmando ora eriçando, numa canção de acordar? O tempo que a música engole sem solfejo. É preciso aprender a esquecer as regras para soltar as cordas do coração.

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