Para mim a guerra acabou. Pode relaxar, abrir as portas e janelas, baixar a guarda. Acabou. Ainda há trincheiras do lado de fora, inertes, inúteis. E o silêncio voltou a reinar. Não há mais porque se preocupar. Não estoque mais comida, não se alimente demais. Pode ficar olhando a lua minguar, pode ficar esperando a rosa se abrir. E porque a guerra acabou, você não precisa mais ficar se protegendo dentro de uma estabilidade e permanência inexistente. Não precisa mais se esconder dentro de casa, cheia de pessoas para não pensar em nada, repleta de barulhos, risadas, completamente lotada de alegria e de tristeza, de saúde e de doença, e de unidos para sempre.
Mas ainda tem um momento difícil antes que todo o horizonte se abra em perspectiva, se abra em cachoeira abundante, se abra plenamente. Há que recolher os mortos. Há que enterrar os mortos. Há que se olhar para o que acabou, o que não conseguiu sobreviver, o que lutou em vão. E recolher partes que não resistiram, sonhos que mofaram, idéias feitas para passar o tempo. Tem que olhar para tudo isso de novo, e lembrar a dor que foi cortar a própria carne, lamber a própria ferida. Doer profundamente o ver ruir o mundo que idealizara, as pessoas que imaginara, a vida que não tivera.
Mas ao menos, a guerra acabou. Dispense a adrenalina, dispense o enrijecer os músculos, o coração de novo batendo pausadamente, a respiração ritmada e sutil. Olhe em volta e o que verá senão um passado tão distante que já não dá nem arrepios, não faz vertigem? Parece que nada mudou, e tudo mudou. Mudou a voz que diz ‘bom dia’, mudou o tom do meio dia, lentamente você vai vendo que o entardecer mudou.
Já não existem mais falsas promessas, nem falsos testemunhos. Não existem falsos sinais, nem falta mais a palavra certa, a coisa certa, o certo e o errado. Deus errou, por acaso? Quando tanta coisa foi extinta, tanta gente desapareceu sob escombros, sob água e lama, sob lavas e cinzas, terá Deus errado? Destruiu o que criou porque errou? Quando deu a mim e a você a escolha de acertar ou errar, terá deixado ir longe demais? E quando viu, não havia mais o que fazer senão desaparecer com tudo, sufocar esse braço torto? E agora, terá acertado? O esforço em acertar me fez cortar os cabelos, cortar os laços, cortar os punhos para que o sangue corresse solto, lépido, desatinado, para não haver mais lágrimas, não haver mais dor. Renascer no fogo, apenas luz. Personagem espírito que mergulha no ventre de volta para recuperar a alegria doce e leve dos que não sacrificam.
Talvez eu já tenha sacrificado. Talvez eu já tenha recolhido mortos de tantas outras guerras, de tantos outros templos defendidos. Guerras santas. Santificado o sangue. Mas agora o momento é uma oração. E o fogo que cai do céu é apenas para cauterizar. Feche os olhos por um instante. Escute o longe aqui perto. Escute o tempo que passou chegar tão perto dos teus ouvidos e sussurrar que a brisa é agora. A vida começa dessa morte. Enfim, a morte acabou.
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